O QUE OS FILÓSOFOS DA GRÉCIA ANTIGA ENSINAM SOBRE
LIBERDADE
Quando estudamos a Filosofia Antiga, suas reflexões podem parecer
distantes. Em termos de Filosofia Política, teóricos liberais e libertários já
escreveram muito bem sobre liberdade e propriedade. Por que, então, se importar
com os gregos, que viveram há 25 séculos?
A verdade é que o nascimento da Filosofia na Grécia mudou, de maneira
decisiva, a história do Ocidente e, por consequência, de todo o mundo.
Inaugurando um novo modo de racionalidade, lá originou-se não apenas a
mentalidade científica, mas também temas de espírito liberal.
Os filósofos gregos foram precursores de muitos pontos que, séculos
depois, seriam incorporados por John Locke, Ludwig
von Mises e Ayn
Rand. Essa é a tese de Dennys
Xavier, professor de Filosofia Antiga da Universidade Federal de
Uberlândia. Para ele, o liberalismo é o resultado de 2.500 anos de pensamento
filosófico, algo que é completamente ignorado por liberais e libertários
contemporâneos.
Os motivos que levaram os gregos a serem os primeiros filósofos são
vários. O Professor Xavier elenca alguns deles, como a consolidação da escrita
silábica e de um calendário mais preciso, o uso corriqueiro da moeda e o
incremento de navegações marítimas pelo Mediterrâneo.
Todavia, dois elementos merecem destaque: a liberdade religiosa e política
presentes no mundo Antigo. Sem elas, seria inconcebível o surgimento da
Filosofia na Grécia.
A FILOSOFIA ANTIGA É FILHA DA LIBERDADE
De todos esses fatores determinantes, um deriva dos demais, mas, de
certa maneira, se sobrepõe a eles: o nascimento da pólis. Elas, que eram as cidades-estado gregas,
possuíam autonomia administrativa, eram autárquicas e impunham limites claros à
soberania.
Antes, existiam apenas povoados e pequenas aldeias. Mas com a inclinação
comercial e o desenvolvimento de uma economia local nas poleis (plural de pólis),
muitas das explicações mítico-religiosas passaram a ser insuficientes para
desvendar a vida social. Não bastava mais dizer que o homem foi criado do barro
e do fogo pelos titãs Epimeteu e Prometeu.
Mas, antes de tudo, as poleis só
puderam se formar nas colônias, antes da mãe pátria. Isso, justamente porque lá
é que se encontrava maior grau de liberdade. Nas palavras do historiador da
filosofia Giovanni Reale:
Por que isso aconteceu? Porque, como há tempo se notou, as colônias
puderam, com a sua operosidade e com o seu comércio, alcançar o bem-estar e,
portanto, a cultura. E por causa de certa mobilidade que a distância da mãe
pátria lhes deixava, puderam também dar-se livres constituições antes daquela.
Pré-socráticos
e Orfismo, p. 27
Em termos religiosos, a liberdade também foi determinante, já que a
religião pública grega era descentralizada. Não havia, como no Egito Antigo, um
representante oficial como o Faraó e os sacerdotes:
Os gregos não possuíam livros tidos como sagrados ou fruto de divina
revelação. Eles não tinham uma dogmática teológica fixa e imodificável.
Consequentemente, na Grécia não podia haver sequer uma casta sacerdotal que
custodiasse os dogmas.
Ora, a falta de um dogma e de guardiões dele deixou a mais ampla
liberdade à especulação filosófica, a qual não encontrou obstáculos de caráter
religioso semelhantes aos que se encontrariam entre os povos orientais,
dificilmente superáveis.
Pré-socráticos
e Orfismo, p. 23
O NASCIMENTO DO
INDIVIDUALISMO E DO CONCEITO DE PROPRIEDADE PRIVADA
Portanto, longe de ser uma tentativa de puxar sardinha para o
liberalismo, esse é um fato reconhecido pelos maiores estudiosos do assunto.
Pela primeira vez, um povo fez a distinção clara entre o que é público (res publica) e o que é privado (res privata). Como resume bem Werner Jaeger:
Dissemos que a importância universal dos Gregos como educadores deriva
da sua nova concepção do lugar do indivíduo na sociedade. E, com efeito, se
contemplamos o povo grego sobre o fundo histórico do antigo Oriente, a
diferença é tão profunda que os Gregos parecem fundir-se em uma unidade com o
mundo europeu dos tempos modernos. E isto chega ao ponto de podermos sem
dificuldade interpretá-los na linha da liberdade do individualismo moderno.
Paideia:
A Formação do Homem Grego, p. 9
E isso não é necessariamente uma conclusão difícil de alcançar. Basta
contrastarmos esse período com seu predecessor: o Período Micênico. Nele, a
Grécia era organizada em estados, chamados de palacianos, em que o
rei (anax) controlava tudo. Nas palavras do historiador
Jean-Pierre Vernant:
A vida social aparece centralizada em torno do palácio cujo papel é ao
mesmo tempo religioso, militar, administrativo e econômico. Nesse sistema de
economia que se denominou palaciana, o rei concentra e unifica em sua pessoa
todos os elementos do poder […] ele controla e regulamenta minuciosamente todos
os setores da vida econômica, todos os domínios da atividade social.
As
Origens do Pensamento Grego, p. 24
Há, portanto, uma relação de reciprocidade entre as condições que
possibilitaram o surgimento da Filosofia Antiga e o próprio espírito e as
ideias dos seus filósofos.
A INFLUÊNCIA DA
FILOSOFIA ANTIGA NA TRADIÇÃO LIBERAL
O Professor Dennys identifica, em especial, quatro características
essenciais que pensadores gregos discutiram e que reverberariam séculos depois
em liberais e libertários. A saber: liberdade, pragmatismo, razão e incerteza
do futuro.
A primeira delas é justamente o que foi discutido até aqui: a liberdade
e sua influência na formação do homem grego.
O pragmatismo, por sua vez, refere-se à ideia de estudar a realidade
como ela é e não como gostaríamos que fosse. Essa é uma posição central para
liberais como Thomas Sowell. Especialmente em seu último livro, A Farmácia de Ayn Rand,
Dennys destaca como esse ponto reflete a filosofia
objetivista, que o repete quase como um mantra:
Essa visão pragmática de mundo […] é importante não só para o nascimento
da Filosofia; ela impacta de maneira decisiva o Objetivismo […] É necessário
colocar as paixões de lado, que deixam a leitura dos fatos enviesada, e
observá-los em si.
A
Farmácia de Ayn Rand, p. 32
O terceiro ponto, a razão, está no cerne da revolução filosófica. Esse
modo de pensamento é fundamental para as concepções liberais, já que é comum
que elas sejam construídas tijolo a tijolo, de baixo para cima:
Fazer derivar da complexa multiplicidade das coisas um todo tanto quanto
possível ordenado, captado pela razão, explorado nele mesmo, segundo as suas
possibilidades construtivas: eis as bases da Filosofia já em seu nascimento e
um arcabouço de inafastável importância para a posterior especulação
científica.
A
Farmácia de Ayn Rand, p. 36
Já a incerteza do futuro aparece no próprio conceito de práxis. Por relacionar-se a um caminho marcado pelas
dúvidas, o seu sentido original remetia a “passar por”, “realizar”, “cumprir”.
Isso traz à tona a atitude de que “saber o que fazer não é suficiente. É
preciso agir”, o que o próprio Aristóteles chamou de Filosofia Prática.
OS PERIGOS DE
INTERPRETAR OS FILÓSOFOS DA GRÉCIA ANTIGA
Não suficiente, além de não reconhecerem as sementes do liberalismo na
Filosofia Antiga, muitos liberais e libertários vão no sentido contrário. Jesus
Huerta de Soto, por exemplo, diz que Sócrates e Platão pecaram com sua
arrogância intelectual, visitando “extremos socialistas”. Murray
Rothbard, também, diz que Platão almejava uma “utopia coletivista”.
Aqui, o Professor Xavier promove um grande esforço de clarificação. Segundo ele, o problema
é que esses intelectuais lêem Platão como se houvesse escrito em 2021, ou seja,
com o referencial teórico dos Séculos XX e XXI. Não se lê Platão como lê-se
Mises, e a tentativa de tal é anacronismo puro. Ele continua:
Seria um contrassenso extraordinário exigir de um Homem do V ou do IV
séc. a.C um dado de realidade que depende exatamente de “ordem espontânea”,
cujos pressupostos históricos, portanto, estavam longe de ser disponíveis aos
espíritos daquele tempo.
Isso, claro, poderia ter acontecido pontualmente, mas muito mais como um
“acidente argumentativo” ou intuição arbitrária, dificilmente como construção
intelectual meditada. “Acusar” um Antigo neste sentido equivale a dizer que
Aristóteles merece o nosso desprezo por ter defendido a escravidão, num momento
em que isso era tão comum quanto ter um smartphone hoje em dia.
A obra sujeita a maior frequência de críticas é A República, de Platão. Nela, o filósofo põe-se a
responder a pergunta: o que é Justiça?
Para isso, ele propõe construir uma pólis perfeita, mas apenas para entender
melhor como funciona o indivíduo, como cidadão.
Assim, as classes e estrutura sociais da pólis representam faculdades
mentais do cidadão. Platão ilustra, por exemplo, virtudes como a sapiência, a
coragem, a temperança e, naturalmente, a justiça. Nesse sentido, A República é muito mais um tratado sobre a alma,
e nada tem a ver com um plano utópico de estado, como eram os espelhos de príncipe da Idade Média, por exemplo.
A UTILIDADE DA
FILOSOFIA NOS DIAS DE HOJE
Demonstrada a importância da Filosofia Antiga para o desenvolvimento do
liberalismo, não podemos deixar de apreciar o escopo da Filosofia como um todo.
Na sua concepção, ela representou uma evolução em relação às explicações
míticas. Entretanto, não houve uma ruptura. Até hoje, passamos por esse
processo.
Como, então, diferenciar políticos messiânicos, empresários demagogos e
cientistas corruptos daqueles bem-intencionados e com boas ideias? Aqui, a
Filosofia é o único caminho. Nas palavras de Giovanni Reale:
Mas, para que serve filosofar, hoje, num mundo onde ciência, técnica e
política parecem dividir entre si os poderes, num mundo onde cientistas, técnicos,
políticos, transformados em novos magos, movem todos os fios?
O propósito, a nosso ver, continua sendo o mesmo que a filosofia teve
desde a origem: desmitizar. Os antigos mitos eram
os da poesia, da fantasia, da imaginação; os novos mitos são os da ciência, da
técnica e das ideologias, vale dizer, os mitos do poder.
Pré-socráticos
e Orfismo, p. 3
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