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Magazine na Lanterna

sexta-feira, 15 de abril de 2022

Filosofia política e direito - Teoria Geral e Filosofia do Direito


 

Filosofia política e direito

 

Teoria Geral e Filosofia do Direito

 

 


  “Hoje são os direitos do homem que exercem a função de valores eternos. É o estado de direito e outras noções,     que, todos sabem, são muito abstratas. E é em nome disso que se breca todo pensamento, que todas as análises em termos de movimentos são bloqueadas”. Gilles Deleuze1 

Nariz de cera

O conceito de filosofia é um problema filosófico. Por conseguinte, a questão “o que é filosofia?” é um dos temas clássicos da filosofia. Não por acaso é retomado pela filosofia contemporânea por dois de seus grandes nomes, Deleuze e Guattari,2 que a definem como a atividade de criar conceitos. Outros autores propõem outras definições ao longo da história. O raciocínio vale para a filosofia política. O que é? Eis um problema filosófico. Não há resposta precisa. O Dicionário de Política de Bobbio, Matteucci e Pasquino,3 ao trazer o verbete “filosofia da política”, que logo é identificado ao uso mais comum “filosofia política”, não faz outra coisa senão levantar o problema e buscar definições. Com efeito, o autor do verbete, professor Allessandro Passerin D’Entreves, procura estabelecer critérios para definir a filosofia da política (ou filosofia política). O movimento do verbete é o seguinte. Compreende o termo como idêntico, num primeiro momento, a teorias acerca do Estado, tais como as desenvolvidas pelos clássicos, como Platão, Morus – estes intitulados utopistas–, Cícero, Tomás de Aquino, etc. (p. 494). Após, faz um giro do caleidoscópio conceitual que permite outra visão acerca do mesmo objeto. Chega à definição de filosofia política como procura de um critério de legitimidade do poder (p. 494); como identificação da categoria do político (p. 495); como metodologia das ciências políticas (p. 495). Há, na sequência, uma aproximação entre o conceito de filosofia política e a análise de linguagem (p. 496), assim como uma confrontação entre os conceitos de filosofia política e ciência política (p. 496); filosofia política e ideologia (p. 497); filosofia política e teoria dos valores (p. 498). Por fim, disserta acerca da natureza do dever político (p. 499). Ou seja, tal como ocorre com a filosofia em sentido amplo, que se constitui como um problema para si mesma ao longo de sua história, a filosofia política é enigma a ser decifrado. Não há consenso quanto ao conceito mais preciso ou mais útil. O que existe é um campo variável de conceitos possíveis que, eventualmente, são postos em confronto.

Eis uma visão geral da questão. Uma proposta de definição – que é uma entre várias possíveis, como se procurou ressaltar nas linhas acima – de filosofia política é: a filosofia que toma como objeto a política. Nesse sentido, podem ser considerados pensadores da filosofia política os que trataram da política filosoficamente, a saber, Platão, Aristóteles, Agostinho, Tomás de Aquino, Maquiavel, Hobbes, Locke, Espinosa, Hegel, Foucault, etc. Isso, entretanto, apenas delimita uma proposta, não dá uma resposta.

É preciso levantar, igualmente, um segundo ponto importante: o verbete traz a conjuntiva “e”. Filosofia política e direito. O termo “direito” também pode ser considerado objeto de debates infindáveis. Pode ser definido como direito subjetivo – uma faculdade de um sujeito –; ou como direito objetivo – a norma positivada pelo Estado. Pode ser um fato social, a ser estudado pela sociologia, ou um valor, a ser investigado pela ética. Abrange, ao longo de sua história, o conceito de justiça: dar a cada um o que é seu, na conceituação clássica, restando saber o que é o seu de cada um, questão filosófica. E há ainda muitas definições que poderiam ser lembradas, facilmente encontráveis nos livros de Introdução ao Estudo do Direito.

A proposta do verbete é tratar do tema de forma diversa daquela encontrada nos dicionários e enciclopédias jurídicas. Para isso, serão feitos três giros no caleidoscópio. Num primeiro momento, o verbete traz esboço da proposta kelseniana. Nela, ficará claro o projeto que aparta direito de todas as demais áreas, na busca por uma Teoria Pura, com objeto e métodos próprios, intentando a autonomia da ciência do direito em face das demais áreas do saber. De acordo com essa proposta, filosofia política é uma coisa, direito outra. Kelsen importa aqui na medida em que permite um contraste didático com os conceitos de dois outros clássicos, anteriores a Kelsen, e que comporão o segundo giro argumentativo do caleidoscópio: Maquiavel (1469-1527), pensador dos séculos XV e XVI, e Espinosa (1632-1677), clássico anômalo4 do século XVII. Para ambos, cada qual a sua maneira, as análises de filosofia política e direito compõem um todo indissociável. Isto é, são autores para os quais discussões típicas do direito contemporâneo, como separação entre sistema político e sistema jurídico (Luhmann5), não têm lugar. 

Por meio desses dois autores, Maquiavel e Espinosa, o tema do verbete poderá ser tratado levando em conta, num sentido forte, a conjuntiva “e”.

O terceiro giro será novo contraste em face do retrato inicial, a saber, em relação a Kelsen. Nesse movimento do texto, a proposta de uma teoria da norma como promessa será desenvolvida. Assim, questões relacionadas aos dois campos, o do direito e o da filosofia política, serão trabalhadas com base na teoria da norma como promessa. Novamente um embaralhamento das áreas será notado pelo leitor.

· 1. O direito positivo como objeto de ciência: o projeto kelseniano ou a busca pela autonomia do campo jurídico

 

· 2. Filosofia política e direito como instâncias indissociáveis: Espinosa e Maquiavel

 

·  2.1. Espinosa: uma revolução copernicana na teoria do direito

 

·   2.2. Maquiavel: natureza humana, conflito social, lei, direito

 

· 3. Norma como promessa: entre legalidade e legitimidade

 

·  3.1. Estrutura da promessa

 

·   3.2. Texto legal como promessa

 

·     3.2.1. Pré-condições da proposição da promessa

 

·     3.2.2. A produção de textos legais como promessa

 

·   3.2.3. A promessa nos delitos e penas

 

·  3.3. Conclusão

 

· 4. Considerações finais

 

1. O direito positivo como objeto de ciência: o projeto kelseniano ou a busca pela autonomia do campo jurídico

Na segunda metade do século passado, o direito, compreendido estritamente como direito positivo, isto é, como conjunto de leis emanadas do Estado – constituindo, assim, o ordenamento jurídico –, sofreu uma série de tentativas de revisão de seus postulados e métodos. 

O projeto de uma ciência do direito positivo alcançou grande refinamento teórico com Kelsen, especialmente com a Teoria Pura do Direito.6 Kelsen intentou a aplicação do princípio de pureza ao direito como condição para sua cientificidade. A autonomia da ciência do direito frente às demais ciências deveria ser alcançada para que o direito não se tornasse objeto de variadas ciências, tornando a análise do fenômeno jurídico algo confuso, não objetivo, distante da ideia de um campo científico autônomo. A consequência dessa relação muito próxima entre direito como direito posto, por um lado, e psicologia, sociologia, moral, história, entre outras áreas, por outro, seria a perda de exatidão e objetividade. Em suma, o direito nesses moldes não poderia vir a ser uma ciência rigorosa.

Assim, nada mais importante à ciência do direito do que encontrar o seu próprio objeto de estudo, para além das ciências naturais – visto que o direito não é uma ciência cujo objeto é o mundo do ser, mas tem a peculiaridade de ter como objeto de estudo o dever-ser, isto é, a conduta positivada – e, simultaneamente, para além de qualquer conceito metafísico de direito natural, de qualquer valoração ético-política, que flertasse com conceitos de justiça. 

Kelsen propõe um corte epistemológico como método para se chegar à pureza do objeto da ciência do direito. Isto é, trata-se de estabelecer, a partir de uma teoria do conhecimento referente ao mundo jurídico, o objeto desta ciência: o dever-ser. O dever-ser que interessa à ciência do direito é a norma posta pelo Estado, o resultado da objetivação da vontade do legislador. Eis o campo que o direito, segundo a teoria pura, deveria estabelecer como matéria bruta que a ciência jurídica teria por papel lapidar, dando à matéria-prima a sistematicidade própria a toda ciência. Além de o estudo do direito, pela necessidade científica imposta pelo princípio de pureza, se distanciar do fato social – próprio das ciências sociais, como a sociologia, a história–, deveria, simultaneamente, apartar-se dos valores, objeto de parte da filosofia, isto é, da ética. Kelsen afirma, na Teoria Pura do Direito, que ao direito não pertence a exclusividade no mundo do dever-ser, pois a moral também faz parte do mundo do mandamento, da conduta. Ocorre que, para a moral, que também é formada por um conjunto de padrões de comportamento, não há uma instância responsável pela aplicação da sanção que, no limite, pode utilizar a força física. No caso do direito, o Estado – e alguns de seus órgãos – é a instância responsável pela aplicação da sanção caso haja infração da norma, isto é, caso haja o comportamento indesejado, inclusive com o uso da força física, se necessário. Assim, afirma Kelsen, o objeto da ciência do direito é a norma positivada pelo Estado, o seu material bruto, por assim dizer, é a vontade do legislador objetivada. A moral, também um aglomerado de padrões de conduta, muitas vezes advindos da tradição, não se confunde com a ética. Esta, para Kelsen, é a ciência cujo objeto de análise – sua matéria-prima – é a moral. Portanto, assim como a ciência do direito tem como objeto a vontade do legislador objetivada, a ciência ética, para Kelsen, tem por objeto a moral.

O preço pago pela busca da autonomia científica no campo do direito apenas se explicitou com as lições da história ocidental do século XX. Por meio da identificação do campo jurídico ao direito positivo – e sua cientificidade podendo apenas ser alcançada pelo estudo das normas postas pelo Estado –, regimes totalitários puderam ser compreendidos como legais. Kelsen, na segunda edição da Teoria Pura do Direito, ainda fundado nos seus postulados e métodos, traz a seguinte afirmação a respeito da legalidade dos regimes totalitários: 

“Segundo o Direito dos Estados totalitários, o governo tem poder para encerrar em campos de concentração, forçar a quaisquer trabalhos e até matar os indivíduos de opinião, religião ou raça indesejável. Podemos condenar com a maior veemência tais medidas, mas o que não podemos é considerá-las como situando-se fora da ordem jurídica desses Estados”.7

Dada a possibilidade, para o direito, de ser uma ciência avessa a qualquer ordem valorativa, bem como podendo, no limite, passar ao largo de questões relativas à vida de milhares de pessoas, e ainda assim ser considerado direito, houve a necessidade de revisão de postulados e métodos cujo refinamento teórico ocorrera com Kelsen. O estreitamento do objeto jurídico, com vistas à confecção de uma ciência autônoma, cobrou seu preço histórico.

Dois momentos explicativos podem ser salientados como motivos do fenômeno de revisão de métodos e postulados do projeto kelseniano. 

Um primeiro momento é o da mudança da significativa confiança nas instituições do início do século XX. Esta confiança se abala por razões históricas. Isto é, a confiança no Estado constitucional, na força das instituições jurídicas e na consistência dos ordenamentos jurídicos. Há pouco mais de um século, não havia qualquer suspeita no que se refere às nações organizadas sob o regime de governo da democracia constitucional, bem como no Estado de direito, tendo em vista o fato de que estas instituições satisfaziam às aspirações das nações e dos Estados. Porém – e este é o segundo momento explicativo –, sob essa convicção, se constituíram, sob a forma da mais estrita legalidade – no sentido do direito entendido apenas como direito posto pelo Estado institucionalizado –, catástrofes, como a forma institucional do fascismo e do nazismo na Europa da primeira metade do século passado.8  

A identificação do direito ao direito posto e a confiança nas instituições foi posta sob suspeição em razão do surgimento, no limite, de regimes totalitários absolutamente legais, que retiravam sua legitimidade dos ordenamentos jurídicos positivados. Esta constatação da legalidade de regimes totalitários, como salientado em citação acima, não é posta em dúvida por Kelsen. Não se pode negar, porém, a coerência do autor com seus pontos de partida metodológicos e teóricos. De fato, se a teoria do conhecimento referente ao mundo jurídico estabelece como objeto do direto apenas e tão-somente a norma positivada pelo Estado instituído, é simples a verificação de que é perfeitamente possível, a partir do postulado de que o direito é o ordenamento jurídico, um regime totalitário absolutamente legal.

O ponto para o qual se deve atentar é, entretanto, o da questão seguinte. Interessa ao direito, após os acontecimentos históricos do século passado, insistir nos mesmos postulados e métodos que permitem, no limite, que o ordenamento jurídico de um Estado totalitário, que atenta até mesmo contra a vida de seus cidadãos, possa ser compreendido, sem qualquer senão, como sendo o direito desse Estado?

Paradoxalmente, como assinala Dalmo Dallari,9 não obstante esses acontecimentos históricos, o ensino do direito na América Latina se manifesta de forma acrítica e desvinculada da realidade social. Basta que se atente para o fato segundo o qual o ensino jurídico oscila entre dois polos. De um lado, há uma infinidade de doutrinas, que se dão no plano das abstrações. Portanto, totalmente coerentes com os métodos kelsenianos, isto é, estudo de normas com vistas à sistematização do ordenamento. De outro, há as aulas que consistem em meras informações sobre artigos de lei. Nestas, o professor se limita à leitura do texto normativo, leitura que é seguida por comentários, no mais das vezes superficiais, que nada acrescem ao sentido já explícito na leitura do artigo de lei.10

2. Filosofia política e direito como instâncias indissociáveis: Espinosa e Maquiavel

2.1. Espinosa: uma revolução copernicana na teoria do direito

Alexandre Matheron afirma que Espinosa promoveu uma revolução copernicana no campo jurídico11 ao identificar direito a potência e a desejo,12 isto é, a um fundamento ontológico. De fato, na filosofia política e jurídica espinosanas – áreas indissociáveis –, o dever-ser normativo (a lei) somente é direito se for alimentado pela potência da multidão. E o direito individual, de cada homem como coisa singular, é sua própria potência. Em suma, direito é potentia, individual ou coletiva, e a potência tem fundamento ontológico. O direito não se identifica ao dever-ser posto pelo Estado. Essas teses serão desdobradas ao longo do presente item, explicitando a ligação entre os dois temas do verbete, a saber, a filosofia política e a teoria do direito. Kelsen, cujas principais teses foram anteriormente esboçadas, e que procura separar o direito das demais áreas, filosofia política inclusa, servirá como contraste para as elaborações espinosanas.

O que pode ser concebido como jurídico, tendo como horizonte a sociedade e o Estado, para Espinosa, depende exclusivamente da qualidade das instituições sociais produzidas pelos cidadãos que, quando em conjunto por um mesmo propósito, guiados “como que por uma só mente [una veluti mente ducuntur – G III, p. 281]” (TP II 16 p. 19, entre outras),13 podem ser definidos como multidão.14 A medida da qualidade das instituições sociais, no pensamento do autor, é o fato de elas serem não obstáculo, mas instrumento para a constituição da paz pública, a qual é definida não como ausência de guerra na cidade, mas como força de ânimo de cada cidadão que a compõe. Se os homens são levados a obedecer às instituições civis, é por um impulso de sua própria natureza – por medo civil da punição da lei, pela esperança de uma vida melhor, com mais potência e alegria, para zelarem pela segurança (definida como um afeto alegre, pois estimula o aumento da potência, do direito), etc. Apenas na democracia a qualidade das instituições com vistas à paz pública é instituída em melhores condições, e constantemente, pelo corpo coletivo, isto é, como exercício da potentia do corpo coletivo. Espinosa afirmará, no capítulo não findo do Tratado político, que a democracia se caracteriza pela possibilidade de participação no conselho supremo e nos cargos públicos – para elaboração e execução das leis – de todos aqueles que estão sob jurisdição de si próprios (que estão sui juris, ou seja, que tenham potência, que não dependam de outro) e de acordo com a lei, não com a vontade deste ou daquele, por favor ou outro critério não universal (TP, XI, 2 e 3, pp. 137-138). Assim, há a satisfação de um impulso natural segundo o qual ninguém quer ser governado e todos querem governar – eis o desejo como direito natural, como potência. No Tratado teológico-político, Espinosa chega a afirmar que a democracia é o mais natural dos regimes políticos, pois é o que mais satisfaz a natureza humana como potência, que quer governar e não ser governada (TTP, XVI, p. 242). Espinosa concebe a segurança e o interesse do Estado como a segurança e o interesse dos cidadãos: a preservação e a possibilidade do exercício, pelos cidadãos, do direito natural de cada um e de todos, visto que em estado de natureza, estado de baixíssima socialidade, o direito natural é opinião, não existe de fato (TP, II, 15, p.19). Isto significa dizer que não há separação, para o autor, entre Estado15 como poder soberano e sociedade como conjunto dos cidadãos (a multidão que alimenta e dá poder ao soberano). 

Ao invés, o Estado apenas é garantidor da paz pública caso seja a expressão de uma constante criação das instituições sociais responsáveis pela paz pública.16 Há uma tensão de potências entre a multidão, de um lado, que deve ter mais esperança que medo e visar à segurança como afeto esperança que se estabilizou com a cessação da dúvida (E, III, P 14, p. 347), e o poder soberano, de outro, o qual não pode gerar na multidão o afeto indignação. Veja-se que o poder soberano, se não estimula, pelo direito civil, nos súditos-cidadãos, afetos alegres, como a segurança de um futuro estável e, ao mesmo tempo, o medo civil da punição da lei, pode editar leis sem potência, ineficazes. Leis sem potência não são obedecidas pelos cidadãos, que podem, pelo afeto indignação espelhado em vários membros do corpo coletivo, por meio da imitação afetiva, levar à dissolução da cidade. Por esta razão, espinosanamente falando, a democracia será, num certo sentido, a realização de uma paixão alegre coletiva. Isto é, num regime democrático a predominância de afetos alegres é maior que a de afetos tristes nos súditos-cidadãos, e estes podem, da melhor maneira, ou seja, com distribuição do exercício do poder entre mais indivíduos, exercer sua natureza de potência. Assim, na democracia, dada a maior amplitude participativa dos homens, que são ontologicamente potentia, evita-se o que Espinosa chama de solidão, ou seja, a “cidade” cujos súditos são conduzidos como ovelhas por um ou poucos que instituem o medo como afeto de controle (TP, V, II, p. 44; TP, V, 4, pp. 44-45; TP, V, 5, p. 45). 

De volta ao fio kelseniano, para explicitar o contraste em face das teses espinosanas: entretanto, esse abalo na confiança da identificação entre direito posto pelo Estado como sendo o direito, em função dos regimes totalitários que tiveram como apoio a estrita legalidade, não formou um caldo cultural forte o bastante para derrubar a ideologia do positivismo jurídico como campo estreito em que se confina o direito.

Tercio Sampaio Ferraz Jr., na sua Introdução ao Estudo do Direito,17 elabora uma interessante reflexão sobre o direito contemporâneo e o preço pago pela maneira como se estrutura. 

Como primeiro movimento, trata-se da identificação do estudo do direito a uma técnica com vistas a atender aos profissionais do direito, tais como juízes, promotores, advogados, etc. nas suas profissões. Há, segundo Tércio, uma explicação para esta redução do escopo do que seja o direito em seu ensino e, consequentemente, em sua prática. 

De fato, de acordo com Tercio Sampaio Ferraz Jr., o estudo do direito como dogma está ligado a uma dupla abstração. Primeira: a abstração da norma enquanto dogma a partir do qual se pensa o direito. Segunda: as regras de interpretação das normas enquanto dogmas que estabelecem como devem ser entendidas as normas. A consequência é que o objeto do conhecimento jurídico não é senão essa dupla abstração. Como corolário, tem-se um caro preço pago pelo direito contemporâneo: a sua distância, cada vez mais significativa, da realidade social – e da realização da justiça, poder-se-ia acrescentar.

Na concepção espinosana, não se entende o direito como mera abstração. Em vez disso, o direito é entendido como potência do indivíduo humano – e das demais coisas singulares – para perseverar no ser. E a busca para perseverar no ser, por parte de cada coisa singular, enquanto isso está em suas forças, é o conceito mesmo de conatus. O direito é o desejo, que por sua vez é o conatus (E, III, P 6 e 7, p. 251; TP, II, 4, p. 12). E este conceito está intrinsecamente ligado à política, pois se trata de uma concepção do direito que não se dissocia de uma teoria da política (de uma filosofia política), bem como não se dissocia de uma ontologia – teses que serão mais desenvolvidas a seguir, e já esboçadas nos movimentos acima.

Ora, para Espinosa, no estado de natureza – mera hipótese teórica, visto que os seres humanos sempre estão em algum grau de socialidade –, o direito se identifica ao mero poder de exercício desse direito, como já indicado. Ou seja, o direito natural, no estado de natureza, é apenas e tão-somente o poder de cada indivíduo para perseverar em seu ser. Assim, na verdade, o poder de cada indivíduo isolado de efetivamente perseverar no seu ser é bastante limitado neste estado de precários vínculos (TP, II, 15, p.19). 

Em que sentido se dá este limite? No exato limite do bruto exercício da potência (E, IV, A, p. 381). Se cada um dos indivíduos pode tudo, nenhum deles pode nada. Assim, a intenção natural de cada conatus, que é a de perseverar no ser, fica bastante prejudicada. Afinal, como pensar em efetiva paz, em efetiva segurança, em efetivo exercício da natureza humana de perseverar no ser se há, na realidade, uma infinidade de potências que se anulam a todo momento, impossibilitando, desse modo, a realização da natureza humana, isto é, a liberdade como exercício do conatus, da potência de cada um? 

A solução para esse impasse é a seguinte: em vez de continuarem nesse precário estado em que, efetivamente, não se exerce a natureza humana em sua plenitude, na medida em que o perseverar no ser é sempre precário, isto é, as potências estão sempre se anulando reciprocamente, os seres humanos instituem a sociedade e escolhem uma forma de governo. 

Diferentemente de Hobbes (1588 – 1679), entretanto, Espinosa não afirma que a saída do estado de natureza se dá por um juízo racional, por um contrato, pela transferência de direitos naturais a uma assembleia de homens ou ao um (Leviatã, I, 16, p. 135; II, 17, p. 144).18 A instituição do campo político se dá por uma busca da natureza humana enquanto desejante – sendo esta a essência atual do modo finito humano –, não por uma abstração. Portanto, a instituição do campo político se dá por um desejo de perseverar no ser de modo efetivo. O estado civil em Espinosa é, por conseguinte, a realização do direito natural de maneira efetiva: é apenas nele que existe, em alguma medida, paz e concórdia entre os humanos. E tal união entre humanos apresenta-se como uma construção afetiva, pois é pela esperança de um futuro seguro que os homens juntam forças, e o fazem cotidianamente e afetivamente.19

Outra significativa diferença entre Espinosa e Hobbes – que aqui é citado para clarear, por oposição, as teses espinosanas –, no que se refere a este ponto, é que para Hobbes os homens devem obedecer ao soberano por medo. É o medo que garante a paz social. Por isso a ênfase na monarquia como melhor instância para disseminar o afeto medo como controle dos súditos e modo de se evitar a guerra civil. Com efeito, podendo apenas o Um – o monarca – dizer o que é lei e o que não é, facilita-se a manutenção do controle que, desfeito, redundaria em guerra civil, em guerra de todos contra todos. A segurança social é o resultado do medo coletivo. Entretanto, de acordo com Espinosa, isso não resulta em garantia da liberdade política. De fato, se a liberdade política, em Espinosa, por força de sua ontologia,20 não é senão a realização da natureza humana como potência na cidade – e, ademais, sendo o medo uma paixão triste, que diminui o desejo de perseverar no ser –, Espinosa nunca poderia defender a tese de um regime que institui o medo como garantidor da paz social e da liberdade humana, exceto se tal medo for o medo civil, em face da lei, mas com vistas à alegria da segurança da cidade, afeto alegre.

De fato, a liberdade é a realização da natureza da coisa, qualquer que seja ela, humana ou não humana. Os seres humanos são modos finitos (intensidades de potência) da substância21 que buscam persistir na existência. São conatus (E, III, P 6 a 9, pp. 251-253). O desejo de perseverar no ser, sob uma paixão triste, apenas diminui. Portanto, um regime que se institui sob a égide do medo não pode garantir a liberdade política. Muito ao invés, ao diminuir o conatus, diminui a liberdade dos homens na cidade, pois impede – na medida em que diminui o desejo – que o ser humano realize a sua natureza de potência, de desejo de perseverar. 

Em Espinosa, não basta que haja a garantia da paz social pela instituição do Estado. Caso fosse assim, seu pensamento ético-político não seria diferente daquele elaborado por Hobbes. Dessa maneira, para Espinosa, não basta a garantia da paz social como paz do isolamento e da barbárie (TP, VI, 4, p. 49). A paz é garantia do exercício efetivo do direito natural como exercício efetivo da potência de cada indivíduo. É exercício da fortaleza de ânimo. Com efeito, a paz social garantida pelo medo não possibilita, no limite, o exercício da potentia. Mas o motivo para tal é ontológico, isto é, o medo é, essencialmente, um afeto triste, de diminuição da potência, do direito natural.

O desafio espinosano consiste em dar conta de dois problemas que não devem ser excludentes um do outro, ou seja, deve resolver a questão da paz social sem que isto implique anulação da potentia (ou do direito, pois jus sive potentia – TP II 5 p. 12 – G III p. 277) dos indivíduos sob a égide do medo. Portanto, o desafio é duplo: em primeiro lugar, o Estado deve garantir a paz social, pois apenas assim o direito natural pode ser exercido efetivamente. Em segundo lugar, esta paz social não pode se dar pelo império do medo, uma vez que o medo é uma paixão triste que levaria, no limite, ao não exercício do direito natural como exercício da potência do indivíduo. Ora, o Estado, portanto, tem como condição necessária, mas não suficiente, a instituição da paz pública. É preciso, para além da paz pública, que ela venha orientada, no mais das vezes, por afetos alegres, uma vez que esses afetos são os que aumentam o grau dos conatus e, portanto, permitem o exercício do direito natural como exercício da potentia, efetivamente. E o afeto medo a ser sentido pelos súditos-cidadãos não pode ser o medo do tirano, do um, mas deve ser o medo civil da punição da lei – lei que é a única garantia da instituição de um futuro como segurança – um afeto, portanto (securitas) –, como já indicado. 

O regime mais adequado à natureza humana deve respeitar esta natureza e se instituir como garantidor da liberdade, entendida como realização da natureza humana: daí a razão pela qual a democracia assuma papel fundamental, como já explicado anteriormente. É apenas neste regime, fundado passionalmente, isto é, como possibilitador da alegria do conatus coletivo, que a natureza humana se realizará plenamente: realização de uma paixão alegre coletiva.

 Em suma: para Espinosa, o Estado deve ser o instrumento para a liberdade política, e deve ser estabelecido ou instrumentalizado de tal sorte que possibilite a efetiva participação, nas decisões políticas, de cada indivíduo, de acordo com sua natureza de indivíduo passional. Ou seja, sendo o indivíduo um desejo (seu direito natural) de perseverar no ser, submetido à força das paixões, a instauração do campo político deve, no limite, garantir que a maior parte participe do poder, que governe, pois ninguém, por ter sua natureza desejante, deseja ser governado. Todos querem governar. Daí a pertinência da democracia, que permite que as leis da Cidade sejam o produto da vontade do maior número, segundo leis que valem para todos e que são alimentadas pelos afetos da multidão, e não segundo o favor ou outro critério excludente. No governo de poucos, ou do um, o poder é menos distribuído e a participação limitada, o que contraria a disposição natural dos homens para o desejo de governarem e não serem governados.

As teses espinosanas permitem pôr em relevo o seguinte ponto: o direito como abstração normativa, como dever-ser advindo da fonte legislativa do Estado, ou como técnica com vistas a decisões que garantam a ordem social se distancia do conceito elaborado pelo autor. Para ele, com efeito, o direito é um constante instituir do poder soberano, o qual é alimentado pelas expectativas e desejos da multidão. Um campo afetivo é o que sustenta a tensão multidão versus poder soberano e garante a estabilidade da Cidade. Caso os membros do poder soberano não respeitem as leis que editam, instituam leis que contrariem a natureza humana – ao tentar controlar o que se pensa, ou instituir que se odeie o que se ama e vice-versa, ou decretar absurdos, como a espoliação dos súditos –, entre outros, o afeto indignação, espelhado, pela imitação afetiva, nos membros da multidão, toma o lugar da esperança e da segurança. O corpo político se dissolve e o medo civil da lei passa a não mais existir (TP, IV, 4, p. 39). Ou seja, há um trabalho da potência coletiva – do corpo político, isto é, da multitudo – de, a todo momento, instituir as leis da Cidade cujo horizonte é sempre a satisfação do desejo de cada humano para perseverar no ser. Ao se realizar coletivamente, este desejo é satisfeito de maneira mais plena.

Não há abstração alguma no direito espinosano, portanto. Em lugar do dever-ser, a potência. Há, assim, uma dignidade política do direito na teoria proposta pelo autor. Isto significa que o discurso espinosano referente ao direito é um contra-discurso cujo alvo é o direito como abstração, como deslocado da realidade concreta. Há direito na medida exata da potência do corpo coletivo para perseverar em seu ser-coletivo, ou, em vez disso, em estado de natureza bruta, cada qual tem tanto direito quanto tem poder para exercê-lo – realidade apenas teórica visto que os humanos sempre estão em algum grau de socialidade.

O direito em Espinosa não é o direito positivo como mera abstração, ou mesmo como dupla abstração – conforme assinala Tércio Sampaio Ferraz Jr.22 referindo-se ao ensino do direito contemporâneo –, mas se identifica à potentia, seja ela do corpo político – na cidade, na sociedade civil –, seja ela em seu estado bruto – no estado de natureza. Eis um esboço da revolução copernicana no campo jurídico proposta por Espinosa, para usar as palavras de Alexandre Matheron, indicadas no início deste item 3.1.23 Em Espinosa, portanto, filosofia política como reflexão sobre a cidade, sobre o papel dos súditos-cidadãos, sobre o problema da multidão e da fundação e manutenção do corpo político, por um lado, e direito como potentia, por outro, são temas indissociáveis e reciprocamente referentes.

***

Espinosa cita Maquiavel no Tratado político em duas ocasiões (TP, V, 7, pp. 45-46; TP, X, 1, p. 129). Sempre o faz de forma elogiosa, chamando-o agudíssimo. Não por acaso comentadores de peso estabelecem Maquiavel como linha inicial que chegará em Espinosa e avançará a Marx.24 Maquiavel é conhecido especialmente por ter sido o fundador de nova maneira de pensar a política. Portanto, pelo critério do presente verbete para tratar do tema, é autor que tomou filosoficamente como objeto a política. E como alinhavou sua filosofia política ao direito? É que se verá a seguir.

2.1. Maquiavel: natureza humana, conflito social, lei, direito

           

Segundo Eugenio Garin, a discussão acerca da lei ao tempo do Renascimento remonta ao debate movido entre os séculos XIV, XV adentrando o XVI, vez que os humanistas cívicos florentinos, Petrarca, Salutati, Bruni, Valla25 e, inclusive, o contemporâneo de Maquiavel, Agrippa (1486-1535),26 pensador do Norte da Europa, pautaram o tema com relevância para a compreensão dos ditames da justiça e do direito.27 Se Petrarca interessou-se pelo estatuto dos estudos jurídicos, como atualização de problema arrestado da antiguidade pelos nexos entre leis naturais e leis civis,28 no que tangencia o pensamento maquiaveliano, destaque à posição de Leonardo Bruni em vista de sua posição em relação ao tumulto ou revolta dos Ciompi, ocorrido em 1378, que colocara Florença sob o risco de desagregação social, como se fora uma prova dos nove das concepções de justiça, lei e de direito, de matizes aristocráticas, que visavam a estabilidade política da República Florentina. Para Maquiavel este foi o ponto de inflexão do debate acerca da lei, da justiça e do direito em relação à política, precipitado com o tumulto dos operários cardadores da indústria de lã, em Florença, que, na figura do seu líder Michele Lando, apropriou-se do poder e assumiu o lugar da Signoria, por praticamente um mês.29 Após, a Signoria retomou o poder e exilou Lando, em exercício político bastante comum em Florença, se relembrado – de modo emblemático – o exílio de Dante Alighieri, fato ligado à disputa entre guelfos e gibelinos, parte da crise política das relações entre o Sacro Império Romano Germânico e a Igreja. Em verdade, Maquiavel é um crítico severo da Signoria de Florença por ter perdido a oportunidade de explicitar e incorporar o conflito social dos Ciompi à política da cidade, na forma de instituição e ordenação, como ocorrerá na antiga República Romana, até o ponto da criação dos tribunos da plebe. Afinal, para Maquiavel, política é conflito, e o conflito é natural entre os cidadãos e entre as classes sociais, cedendo ao anacronismo. Mesmo que o Florentino não queira reformar nem o homem nem a sociedade. Mas, pensar a política desde sua dinâmica de forças em luta, mediadas por boas leis, de modo a assegurar a liberdade cívica e o bem comum, em uma sociedade rachada ao meio na forma de guerra de interesses dos Grandes e do Povo. De preferência sob o regime republicano, de governo misto, aos moldes do projetado pelos gregos, em particular por Aristóteles, e realizado pelos romanos. 

A discussão acerca do tumulto dos Ciompi ocuparia parte significativa do cenário político de Florença até meados do século XVI, pois para o também florentino, Francesco Guicciardini (1483-1540), advogado, historiador, político, de família aristocrata, primeiro discípulo e crítico de Maquiavel, a inclusão do conflito social explicitado e transformado em instituição é inaceitável, dentre outros argumentos, porque o homem tende para o bem por natureza e não para o mal.30 Em particular, os capítulos relativos aos tribunos da plebe, a desunião da plebe e do senado romano como fonte de liberdade, e a guarda da liberdade pelo povo e não pelos aristocratas, dentre outros temas na contramão do pensamento maquiaveliano.

Maquiavel (1469-1527), Cidadão Florentino, viveu ao tempo de um ensaio de transvaloração de todos os valores, que segundo Nietzsche (Anticristo, aforismo 61), não pôde ser concretizado, pois Lutero salvara o cristianismo com as bulas da Reforma Protestante, escritas em Latim, afixadas na porta de sua igreja paroquial num feriado. Viveu ao tempo em que a burguesia se auto reconhecia como “classe social”, detentora do primeiro projeto universal, identificado pela expressão “projeto burguês”.31 Viveu ao tempo da refeudalização da Itália, principiada por Lorenzo de Medici, político, industrial, banqueiro, comerciante, poeta, mecenas, falecido em 1492, o que significou a perda da possibilidade de uma revolução burguesa, avant la lettre, a ser disparada pelas ricas cidades do Norte italiano, Florença, Milão, Veneza. Confluência histórica poucas vezes registrada. Aparentemente, nada escapara de Maquiavel acerca do seu tempo, e findou por transformar o tempo contemporâneo em conceito, como mais tarde Hegel teorizou. 

Por que Maquiavel pauta-se pelo regime republicano romano para pensar o encaminhamento de solução política, na linha de um equilíbrio instável e estável, como o mais recomendado aos estados? Sob concepção política realista, inovadora, Maquiavel considera o regime republicano, aos moldes do que fora aperfeiçoado pela constituição e pela prática política da República Romana antiga, ao compor-se de elementos monárquicos – dois cônsules, que se consultavam antes de tomar decisões acerca das leis, da guerra e de disputas cotidianas sintomáticas da tensão social –, aristocráticos – senadores, que produziam leis –, e democráticos ou populares – tribunos da plebe, que por não terem poder de criar leis, tinham o poder de reprovar as leis elaboradas pelos senadores, se contrárias aos interesses de “classe” –, retratados nos Discorsi sopra la prima deca de Tito Livio ou, simplesmente, Discorsi, ou ainda Discursos,32  em Português, à sua vez inspirados nos dez primeiros livros da História de Roma, de Tito Lívio,33 correspondentes aos volumes que escaparam à voracidade dos tempos.  

A constituição da República Romana surgira sem a presença de um legislador, como ocorrera em Atenas e Esparta. O que poderia parecer um contratempo, ao contrário, resultou em oportunidade de construir e de realizar um regime com a marca registrada dos romanos. Pois a República Romana fora fruto da discórdia entre o povo e os poderosos romanos. Tendo sido fundada livre, Roma prosperou como potência política à medida que transformou o levante popular, os “quebra quebras” de rua, a greve geral e a população pobre, que abandonara a cidade, em oportunidade de explicitação do conflito social, considerado natural por Maquiavel, pois tudo é natural: os homens, a natureza, a política, os conflitos sociais. Assim, Roma não perdeu nenhuma oportunidade de explicitar conflitos e transformá-los, politicamente, em instituições e ordenações capazes de regular pela lei os limites do jogo político. Políbios escreveu que se um estrangeiro ouvisse o lugar de atuação política na palavra de um cônsul, imaginaria que Roma era governada pelos cônsules, somente; se ouvisse um tribuno da plebe, governada pelo tribuno da plebe; se um senador, pelos senadores. Tal harmonia fora construída na conjunção de regimes puros, assimilados e incluídos na forma de regime misto, o da república popular. Nos Discorsi, Maquiavel argumenta que “Rômulo e todos os outros reis fizeram muitas e boas leis, ainda em conformidade com a vida livre, mas, como sua finalidade foi fundar um reino, faltavam-lhe muitas coisas que cumpria ordenar em favor da liberdade, coisas que não haviam sido ordenadas por aqueles reis” (D, I, 2, p. 18). Após a queda dos Tarquínio, deu-se a necessidade de substituição do regime monárquico por outro, os que os depuseram constituíram “imediatamente dois cônsules para ficarem no lugar dos reis” (D, I, 2 p. 18), porém, em verdade, “depuseram em Roma o nome, mas não o poder régio: de tal forma que, como só tivesse cônsules e senado, aquela república vinha a ser mescla de duas qualidades das três acima citadas, ou seja, principado e optimates (aristocratas)” (D, I, 2, pp.18-19). Contudo, faltava “apenas dar lugar ao governo popular: motivo porque, tornando-se a nobreza romana insolente (...), o povo sublevou-se contra ela; e assim, para não perder tudo, ela foi obrigada a conceder ao povo a sua parte, e, por outro lado, o senado e os cônsules ficaram com tanta autoridade, que puderam manter suas respectivas posições naquela república” (D, I, 2 p. 19). Destarte, foram criados a ordenação dos “tribunos da plebe, tornando-se assim mais estável o estado daquela república, visto que as três formas de governo tinham sua parte” (D, I, 2, p. 19).34 Ao elogio de tal regime político, o Florentino adita a “tão favorável fortuna”, como também escrevera Políbios, mas, em outra passagem contrariando Plutarco, reforça a relevância da virtù dos romanos na construção do regime republicano. A propósito escreveu:

“(...) foi-lhe tão favorável a fortuna que, embora se passasse do governo dos reis e dos optimates ao povo, por aquelas mesmas fases e pelas razões acima narradas, nunca se privou de autoridade o governo régio para dá-la aos optimates; e não se diminiu de todo a autoridade dos optimates, para dá-la ao povo; mas, permanecendo mista, constituiu-se numa república perfeita: perfeição a que se chegou devido à desunião entre plebe e senado” (D, I, 2, p. 19).

Porém, Maquiavel registra que “no mais das vezes estes (enormes tumultos) são causados por aqueles que mais possuem, porque o medo de perder gera neles as mesmas vontades que há nos que desejam conquistar” (D, I, 5, p. 26). E arremata afirmando que “os homens só acham que possuem com segurança o que têm quando acabam de conquistá-lo do outro” (D, I, 5, p. 26). 

Como conectar conflito social e lei? O conflito, que é natural, é a marca fundante da sociedade e da política, ao passo que a lei, por sua natureza, é a demarcação da imutabilidade temporal, elevada de disputas reais. Sob este enquadre, a lei pode dar as cartas do jogo político desde demandas as mais diversas, em movimento de organização de tal jogo? Maquiavel atrela conflito e afirmação da liberdade cívica, que a lei busca contemplar de modo dialético, logo de fundo contraditório. Se a tensão social está posta desde o conflito, cabe expressar a norma regulatória de interesses díspares. Para Maquiavel, “todas as leis que se fazem em favor da liberdade nascem da desunião deles” (D, I, 4, p. 22), os Grandes e o Povo. Vez que o desejo do Povo não é o mesmo que a pretensão dos Grandes.35

Porém, no meio do caminho tem uma pedra, pois para Maquiavel a natureza humana encontra-se no epicentro da política e, por extensão, conexa ao direito, como causa de abalos sísmicos da ordem político-jurídico sempre por acontecer, se as providências advindas da virtù do governante e da população não forem antecipadoras da má fortuna. Nem da boa fortuna, se o exercício da virtù de enxergar o futuro dos desenlaces, daquilo que os fatos políticos não mostram por completo. Exercício complexo a levar em contas as variáveis em jogo e constante oscilação dos tempos da política. Afinal, como ensinara o Bispo Francesco Soderini, de Volterra, a Maquiavel, a decisão política acontece no último segundo, ao crepúsculo das negociações, e de nada importa os cálculos sempre incompletos e frágeis de antecipação e previsão. Importa a astúcia construída pela virtù. De par com necessária atenção ao cumprimento do bem comum e de leis, ordenações e boas armas, capazes de sustentá-lo. 

Para o Florentino, a maldade é constitutiva do ser humano, componente da natureza humana, sem resquícios do aporte bíblico da noção de queda, relatado em linguagem mito-poética nas páginas iniciais do Gênesis, nem ao modelo medieval sob inspiração agostiniana. Em muitas passagens de suas obras, Maquiavel registra os desígnios da natureza humana e, no limite, o remédio para tal, originado de boas leis, boa educação, boas armas, remédios derivados da necessidade de preservação da liberdade cívica pela via discórdia civil explicitada, como afirmado.  

O problema da maldade humana, detalhada por Maquiavel, torna-se o pressuposto necessário, preferencialmente, ao legislador e ao ator político para que não se decepcionem ao toparem com a malignidade humana emergir inesperada, de situações em que o desejo e os apetites se apresentam sem máscaras e escusas da formalidade social. A propósito, afirma o Florentino:

“Como demonstram todos aqueles que discorrem sobre a vida civil e todos os exemplos de que estão cheias todas as histórias, quem estabelece uma república e ordena suas leis precisa pressupor que todos os homens são maus (rei) e que usarão a malignidade de seu ânimo sempre que para tanto tiverem ocasião: e quando alguma maldade se oculta por algum tempo, assim procede por alguma razão oculta que não se conhece porque não se teve experiência do contrário; mas essa razão um dia é posta a descoberto pelo tempo, que, segundo dizem, é o pai da verdade” (D, I, 3, pp. 19-20).

Porque para Maquiavel sempre há um nexo entre o bem e a necessidade, pois

“(...) os homens nunca fazem bem algum, a não ser por necessidade; mas, onde são muitas as possibilidades de escolha e se pode usar da licença, tudo logo se enche de confusão e desordem. Por isso se diz que a fome e a pobreza tornam os homens industriosos, e que as leis os tornam bons. E quando uma coisa funciona bem por si mesma, não há necessidade de lei; mas, quando falta o bom costume, a lei logo se faz necessária” (D, I, 3, pp. 20-21).

E em O Príncipe,36  Maquiavel arremata: “(...) a pouca prudência dos homens não descobre o veneno que está escondido nas coisas que bem lhes parecem ao princípio (...)” (P, XIII, p. 57). A reflexão acerca da maldade humana prossegue, ao que Maquiavel pondera: “[é] que os homens geralmente são ingratos, volúveis, simuladores, covardes e ambiciosos de dinheiro, e, enquanto lhes fizeres bem, todos estão contigo, oferecem-te sangue, vida, filhos, como disse acima, desde que a necessidade esteja longe de ti. Mas, quando ela se avizinha, voltam-se para outra parte” (P, XVII, p. 70). Materializando o que pensa, argumenta que

“(...) os homens hesitam menos em ofender aos que se fazem amar do que aos que se fazem temer, porque o amor é mantido por um vínculo de obrigação, o qual, devido serem os homens pérfidos, é rompido sempre que lhes aprouver, ao passo que o temor que se infunde é alimentado pelo receio de castigo, que é um sentimento que não se abandona nunca” (P, XVII, p. 70).

Contudo, o fino psicólogo sugere que se deve sobremaneira “abster-se de se aproveitar dos bens dos outros, porque os homens esquecem mais depressa a morte do pai do que a perda de seu patrimônio” (P, XVII, p. 70). Ou ainda, estendendo o raciocínio, Maquiavel assevera que “não se tirem aos homens os bens e a honra, vivem estes satisfeitos e só se deverá combater a ambição de poucos, a qual se pode sofrear de muitos modos e com facilidade” (P, XIX, p. 77).

A maldade humana, segundo Maquiavel, deriva do desejo de conquistar. Pois, “...visto que os apetites humanos são insaciáveis, porque, tendo os homens sido dotados pela natureza do poder e da vontade de desejar todas as coisas e pela fortuna de poder conseguir poucas, o resultado é o contínuo descontentamento nas mentes humanas e o fastio das coisas possuídas...” (D, II, (Proêmio), p. 180.). E mesmo a República Romana, modelo de perfeição de regime político para o Florentino, construída desde a explicitação dos naturais conflitos políticos via “enormes tumultos” e do encaminhamento de solução através de ordenações e de instituições políticas excelentes, no entanto, “no mais das vezes estes (enormes tumultos) são causados por aqueles que mais possuem, porque o medo de perder gera neles as mesmas vontades que há nos que desejam conquistar: pois os homens só acham que possuem com segurança quando acabam de conquistá-lo do outro.” (D, I, 5, p. 26). Ilustrando o que se teorizou acima, Maquiavel argumenta, por tratar-se de discurso acerca dos “tumultos gerados em Roma pela lei agrária”, que desandariam a estabilidade política, a mostrar que também o Povo erra ao posicionar-se politicamente. Ao que adita:

“Tudo isso eu disse porque a plebe romana não se contentou em obter garantias contra os nobres com a instituição dos tribunos, desejo ao qual foi forçada por necessidade; pois ela, tão logo obteve isso, começou a lutar por ambição e a querer dividir cargos e patrimônios com a nobreza, como coisa mais valiosa para os homens. Daí surgiu a doença que gerou o conflito da lei agrária, que acabou por ser a causa da destruição da república” (D, I, 37, p. 113).

Como detectar as diferenças entre os Grandes e Povo? Pela diferença dos umori de um e de outro, que estão sempre em movimento. A análise dos umori é a chave de parte da compreensão do surgimento das intrínsecas inimizades nas cidades e seus reflexos na luta política. Maquiavel, segundo Zanzi,37 sob inspiração hipocrática da teoria dos quatros humores humanos, também desde a medicina galênica, pensa a alternância da ação política desde os humores dos Grandes, do Povo e da Plebe.38 A propósito de favorecer o entendimento dos tumultos em Roma, escreveu:

“Direi que quem condena os tumultos entre os nobres e a plebe parece censurar as coisas que foram a causa primeira da liberdade de Roma e considerar mais as assuadas e a grita que de tais tumultos nasciam do que os bons efeitos que eles geravam; e não consideram que em toda república há dois humores diferentes, o do povo e o dos grandes, e que todas as leis que se fazem em favor da liberdade nascem da desunião deles, como facilmente se pode ver que ocorreu em Roma” (D, I, 4, pp. 21-22).

Maquiavel apresenta a seguir a conhecida passagem, em que elogia o tumulto, sobremaneira o dos romanos. Tratando da tumultuária República Romana, escreve: “E não se pode ter razão para chamar de não ordenada uma república dessas (tumultuárias), onde há tantos exemplos de virtù; porque os bons exemplos nascem da boa educação; a boa educação, das boas leis, e as boas leis, dos tumultos que muitos condenam sem ponderar” (Ibidem). Em outra passagem, Maquiavel aplica a teoria dos umori a um caso específico da ação política, ao escrever: “Assim, conclui-se que sempre que forem chamadas forças estrangeiras por uma facção de homens que vivam nalguma cidade, pode-se acreditar que isso advém das más ordenações dessa cidade, por não haver, dentro de seus limites, uma ordenação que permita desafogar os humores malignos que nascem nos homens, sem o emprego de modos extraordinários...” (D, I, 7, p. 36). Contudo, 

“Maquiavel não funda, propriamente, uma antropologia filosófica. Porém, pelas assertivas, contidas em sua obra, acerca da natureza e da condição histórica humanas, delineia de modo realista, naturalista, pragmático39 e dinâmico o que tem sido o homem, sob a ótica do poder em movimento, e constrói, no limite, uma antropologia política.40 Contudo, de modo aparentemente paradoxal, pois Maquiavel escreve que os homens são sempre os mesmos, como o céu, o sol, os elementos por não terem mudado de movimento, ordem e poder. Se a antropologia política maquiaveliana inspira-se em grande parte no mundo antigo, contém um refendimento mais romano que grego”.41

Segundo Bignotto, “se a maldade dos homens é um dado universal da condição humana, como podemos esperar que as leis, produtos de seres defeituosos, possam corrigir os defeitos da natureza, a ponto de fazer, do mal, o bem?”42 

Uma das primeiras coisas a ser considerada acerca da natureza humana em ação na política é a existência de “dois humores diferentes, o do povo, e o dos grandes, e que todas as leis que se fazem em favor da liberdade nascem da desunião deles” (D, I, 4, p. 22). Se na República Romana o tumulto constituiu-se como causa da liberdade, para Maquiavel,

“(...) não se pode ter razão para chamar de não ordenada uma república..., onde há tantos exemplos de virtù; porque os bons exemplos nascem da boa educação; a boa educação, das boas leis; e as boas leis, dos tumultos que muitos condenam sem ponderar: porque quem examinar bem o resultado deles não descobrirá que eles deram origem a exílios ou violências em desfavor do bem comum, mas sim a leis e ordenações benéficas à liberdade pública” (D, I, 4, p. 22).

Maquiavel emenda o raciocínio, afirmando que

“(...) se alguém dissesse: os modos eram extraordinários, quase ferozes, ver o povo, a correr em tumulto pelas ruas, a fechar o comércio, a sair toda a plebe de Roma, são coisas que assustam quem lê, e não poderia ser diferente; digo que toda cidade deve ter os seus modos para permitir que o povo desafogue sua ambição, sobretudo as cidades que queiram valer-se do povo nas coisas importantes; a cidade de Roma, por exemplo, tinha este modo: quando o povo queira obter uma lei, .., ou se negava a arrolar seu nome para ir à guerra, de tal modo que, para aplacá-lo, era preciso satisfazê-lo em alguma coisa” (D, I, 4, pp. 22-23).

Vez que “os desejos dos povos livres raras vezes são perniciosos à liberdade, visto que nascem ou de serem oprimidos ou da suspeita de que virão a sê-lo” (D, I, 4, p, 23).

Ao tratar das cidades corrompidas, um dos temas recorrentes da reflexão acerca da conservação ou ruína dos estados, Maquiavel interroga se “poderia manter um estado livre”, que teria existido, ou seria necessário “ordená-lo, caso não exista”. Por ser assunto inevitável, para o andamento do raciocínio, sob forma próxima da hipérbole, pressupõe “uma cidade extremamente corrompida, a fim de aumentar ainda mais a dificuldade; porque não há lei nem ordenações bastantes para frear uma corrupção generalizada (universale). Porque, assim como os bons costumes precisam de leis para manter-se também as leis, para serem observadas, precisam de bons costumes” (D, I, 18, p. 72). Fugindo ao aparente aspecto tautológico do comentário, escreve que “as ordenações e as leis criadas numa república nascente, quando os homens ainda eram bons, mais tarde deixam de convir, quando eles se tornam malvados” (D, I, 18, p. 72). O que indica um acordo tácito primordial na linha da observância e do cumprimento dos bons costumes, que ao transbordarem, em geral da cúpula do estado para a população e não em movimento contrário, tornam-se ineficazes e abrem a expectativa do uso de remédios amargos, extraordinários, para restauração da ordem política. Sabendo-se que a depender do grau de corrupção, pode não haver remédio capaz de fazer uma cidade retornar aos seus princípios, o que é sempre desejado. Para tanto, em Roma, fora criada a instituição da ditadura, com o fim específico de que homem pleno de virtù, logo justo, honesto e com capacidade de ver – para além das aparências imediatas – os desgastes das ordenações e a corrupção, outrora latente, que se aproxima. Como ocorreu a Cincinato, que obteve poderes para colocar “a casa em ordem” na República Romana, e após seis meses de mandato, pôde voltar ao seu arado, sem dar golpe ou tirar vantagens pessoais pelo cumprimento do mais estrito dever cívico: as instituições e as ordenações de volta aos princípios matriciais. 

Contudo, será preciso variar com os tempos as ordenações, se se quiser manter a boa fortuna. Pois muitos agem, politicamente, ou com impetuosidade ou com cautela. Há uma grande potencialidade de ambas as formas darem erradas ao momento da ação política. Porém, “erra menos e tem fortuna próspera quem, (...), ajusta seu modo aos tempos e sempre procede conforme o força a natureza” (D, III, 9, p. 351). Piero Soderini, gonfaloniere de Florença, agia com humanidade e paciência. Os inimigos da família Medici, denunciados a ele por Maquiavel, avançam no interesse de retomar o poder em Florença. O que aconteceu, ao final de 1512. Maquiavel em um poema o coloca no Limbo, que é lugar de crianças não batizadas falecidas. Pela metáfora, Soderini não fora batizado para a vida nova da política. Afinal, política é para atores adultos, repletos de virtù, não amadores, mais ou menos bem e mal-intencionados. “O papa Júlio II, durante todo o tempo do seu pontificado, procedeu com ímpeto e fúria; e, como os tempos o acompanharam, ele teve sucesso em todas as suas empresas. Mas, se sobreviessem outros tempos que exigissem outra índole (consiglio), ele necessariamente se arruinaria, porque não teria mudado de modo nem maneira de agir” (D, III, 9, p. 353). De volta à trama dos desígnios da natureza humana, analisa que “são duas as razões pelas quais não podemos mudar: uma é não podermos nos opor àquilo que a natureza nos inclina; outra é que, quando alguém prospera muito com um modo de proceder, não é possível convencê-lo de que fará bem em proceder de outra maneira” (D, III, 9, p. 353). Destarte, “no homem a fortuna varia, porque variam os tempos, e ele não varia os modos” (D, III, 9, p. 353). Vez que “os homens não devem ter dos tempos as mesmas impressões, visto terem desejos, predileções e considerações diferentes na velhice e na juventude” (D, II, (Prôemio), p. 180). 

Por ser talvez o primeiro Filósofo a reconhecer o uso da crueldade para fins políticos, a fortuna crítica da obra maquiaveliana sofreu duros reveses. Para Maquiavel a crueldade deve ser bem utilizada, para fins de observância do cumprimento do bem público acima dos interesses privados. Nada de vingança pessoal, grupal. As decisões no campo da grande política, da ação política voltada para a realização dos fins do bem público, incluem a crueldade. Como a de Rômulo. A propósito, lê-se em O Príncipe que “[n]ão deve, portanto, importar ao príncipe a qualificação de cruel para manter os seus súditos unidos e com fé, porque com raras exceções, é ele mais piedoso do que aqueles que por muita clemência deixam acontecer desordens, das quais podem nascer assassínios ou rapinagem” (P, cap. XVII, p. 69). Pois, “ainda não lhe importe incorrer na fama de ter certos defeitos, defeitos estes sem os quais dificilmente poderia salvar o governo, pois que, se se considerar bem tudo, encontrar-se-ão coisas que parecem virtudes e que, se fossem praticadas, lhe acarretariam a ruína, e outras que poderão parecer vícios e que, sendo seguidas, trazem a segurança e o bem-estar do governante” (P, XV, p. 64). Prossegue Maquiavel: “[c]reio que isto seja consequência de serem as crueldades mal ou bem praticadas. Bem usadas se podem chamar aquelas (se é que se pode dizer bem do mal) que são feitas, de uma só vez, pela necessidade de prover alguém à própria segurança e depois são postas à margem, transformando-se o mais possível em vantagem para os súditos” (P, VIII, p. 38). Afinal as “injúrias devem ser feitas todas de uma vez, a fim de que, tomando-se-lhes menos o gosto, ofendam menos. E os benefícios devem ser realizados pouco a pouco, para que sejam mais bem saboreados” (P, VIII, p. 38). 

Sem perder a atenção à natureza humana, Maquiavel indica ao príncipe o uso das leis e o uso da força. 

“Deveis saber, portanto, que existem duas formas de se combater: uma, pelas leis, outra, pela força. A primeira é própria do homem; a segunda, dos animais. Como, porém, muitas vezes a primeira não seja suficiente, é preciso recorrer à segunda. Ao príncipe torna-se necessário, porém, saber empregar convenientemente o animal e o homem. Isto foi ensinado à socapa aos príncipes, pelos antigos escritores, que relatam o que aconteceu com Aquiles e outros príncipes antigos, entregues aos cuidados do centauro Quiron,43 que os educou. É que isso (ter um preceptor metade animal e metade homem) significa que o príncipe sabe empregar uma e outra natureza. E uma sem a outra é a origem da instabilidade. Sendo, portanto, um príncipe obrigado a bem servir-se da natureza da besta, deve dela tirar as qualidades da raposa e do leão, pois este não tem defesa alguma contra os laços, e a raposa, contra os lobos. Precisa, pois, ser raposa para conhecer os laços e leão para aterrorizar os lobos. Os que se fizerem unicamente de leões não serão bem sucedidos. Por isso, um príncipe prudente não pode nem deve guardar a palavra dada quando isso se lhe torne prejudicial e quando as causas que o determinaram cessem de existir” (P, XVIII, pp. 73-74).

Porque se “os homens todos fossem bons, este preceito seria mau. Mas, dado que são pérfidos...” (P, XVIII, p. 74). E mais, “tão simples são os homens, e obedecem tanto às necessidades presentes, que aquele que engana sempre encontrará quem se deixe enganar” (P, XVIII, p. 74). Com a ressalva de que “um príncipe, e especialmente um príncipe novo, não pode observar todas as coisas a que são obrigados os homens considerados bons, sendo frequentemente forçado, para manter o governo, a agir contra a caridade, a fé, a humanidade, a religião. É necessário, por isso, que possua ânimo disposto a voltar-se para a direção a que os ventos e as variações da sorte (fortuna) o impelirem, e, como disse mais acima, não partir do bem, mas podendo, saber entrar para o mal, se a isso estiver obrigado” (P, XVIII, p. 74). 

Porém, se o príncipe é pura aparência, mesmo devendo ser justo, religioso, parcimonioso, se não puder ser e ter tais qualidades, que devem compor sua virtù, de modo a compor com a frieza, o cálculo político, a rapidez da tomada de decisão – exemplarmente, em caso de guerra, pois adiar uma guerra é perdê-la de antemão –, deve ao menos parecer ser justo, etc. Pois, “o príncipe não precisa possuir todas as qualidades..., bastando que aparente possuí-las” (P, XVIII, p.74). Uma vez que “os homens, em geral, julgam mais pelos olhos do que pelas mãos, pois todos podem ver, mas poucos são os que sabem sentir. Todos veem o que tu pareces, mas poucos o que és realmente, e estes poucos não têm a audácia de contrariar a opinião dos que têm por si a majestade do Estado. Nas ações de todos os homens, máxime dos príncipes, onde não há tribunal para que recorrer, o que importa é o êxito bom ou mau” (P, XVIII, p. 75). Além do que “o comum dos homens [universale] se nutre tanto do que parece ser quanto do que é: aliás, muitas vezes se comovem mais com as coisas que parecem ser do que com as que são” (D, I, 25, p. 87). 

Talvez o juízo mais duro de Maquiavel ao tratar do homem advenha da constatação de que há três espécies de homens, desde a constatação de “como há três espécies (generazione) de cabeças (cercelli) – uma, que entende as coisas por si mesma, outra que sabe discernir o que os outros entendem, e, finalmente, uma que não entende nem sabe ajuizar do trabalho dos outros [a primeira é excelente (excellentissimo), a segunda muito boa (excellente) e a terceira inútil (inutile)] (P, XXII, p. 97). O príncipe deverá levar isto em conta ao pensar a ação política, ao escolher os conselheiros, ao formar seu exército e exercitar a virtù para ler os sinais dos tempos e tomar decisões que antecipem fatos políticos inconvenientes e a surpresa da fortuna, desde o conhecimento dos tipos de homens que existem. Assim, também as leis, de alguma forma, podem levar em conta tais desígnios.

A necessidade de criação da lei emergida do conflito social, conflito que é natural da sociedade desde a diferença de umori, como condição humana e história, pois Maquiavel, considera “que os apetites humanos são insaciáveis, porque, tendo os homens sido dotados pela natureza do poder e da vontade de desejar todas as coisas e pela fortuna de poder conseguir poucas, o resultado é o contínuo descontentamento nas mentes humanas e o fastio das coisas possuídas...” (D, II, (Proêmio), p. 180). Mormente, o apetite pelo poder, quase sempre dissimulado na forma de boas intenções, a ocultar o desejo de domínio. Com a ressalva de que “os homens não sabem ser maus com honra nem bons com perfeição, e que quando uma maldade tem em si grandeza ou é parcialmente generosa, eles não sabem praticá-la” (D, I, 27, 90). Contudo, para a tensionada relação entre bondade e maldade humanas, Maquiavel a infere de modo sintético, ao registrar que se “os homens todos fossem bons, este preceito seria mau. Mas dado que são pérfidos...” (P, XVIII, p. 74).

A lei e o direito, garantidores da liberdade cívica conquistada desde os conflitos sociais, podem ser cumpridos se ocorrer o mantenimento dos bons costumes, da boa educação, conjugadas com boas armas – ferros, em linguagem maquiaveliana. Pois, “as principais bases que um Estado tem, sejam novos, velhos ou mistos, são as boas leis e boas armas” (P, XII, p. 49). Ao que complementa: “não podem existir boas leis onde não há armas boas” (P, XII, p. 59). Assim, o Estado e o governante carecem armar-se dos homens na confiança e nas armas. Porém, sob a atenção omnipresente da virtù do governante e da virtù da população. Afinal, Maquiavel prevê a relevância da ação política desde a combinação contraditória de desejos e interesses de várias ordens, sob ordenações e instituições políticas legítimas e fundadas no cálculo do realismo político, fruto de observação das coisas modernas e da leitura dos antigos, calcado no chão seguro da História.

3. Norma como promessa: entre legalidade e legitimidade

3.1. Estrutura da promessa

Para dar um andamento distante daquele do Prof. Frederick Schauer e percorrendo vertentes outras de seus desiderata, tratar-se-á de revisitar o texto de Searle,44 notando-se que este – além de apresentar os fundamentos dos contratos em qualquer sistema de direito -implicitamente permite (embora não o faça) uma nova teoria da norma jurídica – o que se esboçará aqui.

Como a maior parte dos conceitos relevantes, pelo tratamento oferecido pelos diferentes estudiosos – acepções diversas se instauram e, entre outras, este de norma foi entendido como: valor, padrão, esquema, guia, regulação, lei, costume, código, pauta, preceito, regra, critério, métrica etc.

Nesta seção a norma será vista, também, como um conceito ainda mais tênue45 e que tende, na sociedade de informação, a receber outros sentidos e incorporar expressões vagas como boas práticas; as melhores condutas; segundo a praxe do setor; nos limites da boa-fé objetiva; de acordo com a legislação de regência etc.

Além desse sentido não se deixará de considerar sua inserção, por efeito de ser incorporada por via de representações sociais, como parte integrante do sujeito, entendido como uma atmosfera semântico pragmática com sua inafastável poluição.46  

Posto isso, para os não afeitos ao estilo e problemas de Searle, passa-se a apresentar uma síntese de suas posições, que interessam a esta seção, a partir de texto anterior.47

Executar um ato de fala consiste em:

1) expressar palavras (morfemas, frases) que realizam um ato expressivo; 

2) atribuir àquelas palavras uma predicação e uma referência que constituem o ato proposicional; 

3) um ato ilocutório ou promessa explícita; 

4) um ato perlocutório ou ato de compreensão do receptor da mensagem.

Tendo em vista o conceito de norma que se passará a desenvolver, a promessa merece particular análise, que pode ser assim compendiada:

Um sujeito S que enuncia uma frase F na presença de um receptor R, promete algo de modo sincero e sem defeitos a R se e somente se subsistem as seguintes condições:

a) há condições normais de recepção e emissão, isto é, os sujeitos em comunicação conhecem a língua, compreendem o que estão fazendo e não há impedimentos físicos à comunicação;

b) ao enunciar F, S enuncia um determinado conteúdo e predica um ato futuro sobre o próprio S. Não se pode emitir promessas sobre atos passados;

c) R prefere que S realize o fato mencionado a não o realizar e S crê que R prefere que cumpra sua promessa em lugar de não a cumprir;

d) não é óbvio nem para S nem para R que a realização do prometido por S seja uma decorrência normal dos acontecimentos. O ato deve buscar um resultado. Assim, por exemplo, a promessa “Um dia morrerei” não merece esse nome;

e) S quer fazer, realmente, o que promete;

f) S quer que a enunciação de F o obrigue a cumprir o ato prometido;

g) S pretende informar a R do conhecimento C que o enunciado de F deve conter e que obriga ao cumprimento do ato. S quer transmitir esse conhecimento C reconhecendo suas próprias intenções e quer que tais intenções sejam reconhecidas por meio do conhecimento que R tem do significado de F (intenção reflexiva);

h) as regras semânticas da língua falada por S e R são tais que F se enuncia correta e sinceramente se e somente se subsistem as condições acima, todas.

De tais regras, ínsitas a toda contratação, Searle obtém algumas que lhe permitem usar um indicador da força da ilocucional (o performativo “eu prometo”):

1) Regra do conteúdo proposicional: o “eu prometo” só pode ser usado em enunciado que predique um ato futuro de S.

2) Regra preparatória: uma promessa só pode ser cumprida se R prefere que S realize o ato prometido em lugar de não e se S acredita que R assim prefere, S não deve cumprir um ato que não tenha prometido cumprir.

3) Regra de sinceridade: só há promessa se S tem intenção de executar o que promete.

4) Regra essencial: o enunciar uma promessa obriga a cumprir o que se promete, isto é, toda promessa é uma obrigação.

Essas regras valem para todos os atos ilocutórios e a adoção de uma finalidade ilocutória para esclarecer os usos linguísticos promove a redução das coisas fundamentais que se faz com a linguagem. Diz-se aos outros como se desenvolvem as ocorrências e sobre o estado dessas; expressam-se os sentimentos e disposições e provocam-se mudanças quando se profere certos enunciados. Amiúde, com a emissão de um só enunciado provocam-se mais de uma dessas ações. E, como supedâneo de todas essas possibilidades radica a confiança. A comunicação requer, sempre, um voto de confiança ao interlocutor. 

Searle considera essenciais para efeito de uma taxonomia dos atos ilocutórios:

a) A adaptação palavra-mundo: a afirmação, por exemplo, busca adequar as palavras a um estado de coisas (mundo); a promessa busca realizar um estado de coisas que satisfaça a descrição linguística da promessa.

b) O estado psicológico expressado: uma decorrência da condição de sinceridade, ao executar um determinado ato linguístico, o emissor emite uma atitude mental ou psicológica quanto ao conteúdo da própria enunciação e, mercê desses requisitos, assim classifica os atos ilocutórios:

Representativos: caracterizados por sua finalidade ilocutória que obriga o emissor a expressar a verdade da proposição enunciada. Incluem-se nessa rubrica: as constatações, as assertivas, explicações, classificações, descrições, diagnósticos etc.

Diretivos: a finalidade ilocutória desse item consiste em provocar a ação do receptor. Seu conteúdo é sempre uma ação futura. Exemplos: o convite, a pergunta, o conselho, o pedido (o que se faz em petições, por exemplo) etc.

Promissórios: obrigam o emissor a realizar alguma ação futura. Entre outros: prometer, jurar, ameaçar, oferecer etc.

Expressivos: sua finalidade ilocutória coincide com a expressão do estado psicológico referente ao conteúdo proposicional. Incluem: agradecer, cumprimentar, lamentar, deplorar, desculpar (-se) etc.

Declarativos: determinam a correspondência entre o conteúdo proposicional e um estado. Exemplos: casar, legar, despedir, nomear etc. Nesse item a condição de sinceridade não subsiste, pois é substituída pela referência a um sistema normativo extralinguístico como: o ordenamento jurídico; as normas canônicas; os contratos particulares etc.

Como se pode notar, a abordagem analítica carece de muitas nuances postas pela análise do discurso e pelas tratativas do construcionismo de feição moscoviciana.48 Mas, para efeito da abordagem que se vai construir deve-se notar que a posição de Searle se preocupa com as relações entre interlocutores em relação de coordenação, em que se há alguma dominação essa se estabelece por efeito da enunciação de frases performáticas que implicam uma resposta ativa do interlocutor. 

A pressuposição presente neste texto é a de que, não apenas pela habitualidade relacional,49 mas ainda por questões de fatores atuantes,50 estratégias51 ou situações52 estabelecem-se pautas de conduta que estruturam relações de subordinação, além daquelas de coordenação, em situações comunicativas.

A atividade humana constitui um fenômeno sócio-histórico que surge, muda e se aperfeiçoa segundo o desenvolvimento das relações sociais (logo lastreadas em processos comunicativos e metacomunicativos) às quais se subordina e, contemporaneamente, transforma constantemente.

O enfoque genético da atividade humana permite lobrigar por que o processo de antroposociogênese foi essencial para que o animal em estado de natureza, capaz de satisfazer, exitosamente, suas necessidades materiais de sobrevivência, adviesse a um estado de civilidade e de comunicação. 

A explicação se dá pelo processo histórico de surgimento de novas necessidades em razão da formação dessas mesmas relações sociais e cuja satisfação exigia a aparição e aperfeiçoamento de novas atividades e habilidades – exigindo novos termos e novas relações. Seria por demais simples acreditar que os processos comunicativos pudessem surgir, sponte propria, da simples aproximação de dois seres em relação. Há um substrato de atividade humana que se impõe e permite a comunicação possível entre tais sujeitos, isto é, dois cérebros em tanques não seriam capazes, sem conexões adequadas, de estabelecer comunicação entre si.

O esfacelamento recente das categorias “sujeito” e “objeto” e mesmo da noção de processo, pelo reconhecimento implícito de que, embora o homem permaneça sendo o sujeito da atividade, não há uma continuidade nesse sujeito e mesmo sua intencionalidade53 não permanece constante, leva a uma necessária reavaliação do conceito de formação de processos comunicativos. 

É preciso, inicialmente, perceber que a História não é registro linear de ações mas, e até principalmente, de conflitos e rupturas na ordem estabelecida. Um largo período sem conflitos e decisões terá poucos registros de cunho histórico. Mas a atividade humana busca, por vezes, apesar de si, assegurar a conservação, a segurança e o desenvolvimento permanente da sociedade, isto é, busca reproduzir condições que extravasam a própria necessidade do agente, tais como: as relações sociais; a cultura e o modo de produção em que está inserido, até mesmo pelo uso de processos e instrumentos (meios de produção) característicos desse modo, como se essas rupturas e estados conflitivos inexistissem. Surge a grande ficção de um espírito absoluto capaz de conduzir a História a seu desígnio. Esse último grande sistema filosófico, o hegeliano, por seus continuadores de esquerda e de direita, influenciará todo o panorama filosófico e dará preponderância a abordagens consensualistas.

As versões conflitivistas insistiam na existência de um profundo hiato entre as aspirações de trabalhadores e capitalistas e desenvolviam todo um sistema filosófico a seu redor. Admitiam que o sujeito forma sua mundividência a partir do contato prático-sensorial com a realidade, mas também e principalmente através de seu contato com outros homens, cujos valores e objetivos extrapolam o contato sensorial direto com a “realidade”. A sociedade constituída pelo agir concreto dos homens dava-lhes, ao mesmo tempo, os conteúdos da consciência e, paradoxalmente, de sua alienação.

Embora reconhecendo que o homem frente à realidade não tem a atitude de um abstrato e imaterial sujeito cognoscente examinando a realidade especulativamente, deve-se reconhecer que, enquanto ser que age objetiva e praticamente na busca de seus interesses (utilidades), em relação com a natureza ou outros homens, no seio de relações sociais específicas a seu tempo, ainda assim, ao agir, necessita se comunicar e de forma direta ou indireta, os elementos componentes da atmosfera semântico-pragmática em comunicação com outra, expressam a consequência necessária das múltiplas interações e que se revelam pela alteração dessa atmosfera e de sua poluição, a cada contato. Ou seja, os seres humanos, em relação sempre, apesar da ação concreta a empreender – pois suas relações se dão no interior de um concreto estado de coisas –, estabelecem um processo comunicativo semântico pragmático. No dizer de Baquílides de Ceos (acme 466 a.C.):

"Agora como sempre,

com outro é que se obtém perícia:

pois não é fácil alcançar

a porta das palavras nunca ditas".54 

Como o horizonte possível para a comunicação permanece limitado pela interseção entre as distintas atmosferas em relação, a função pragmática será limitada por essa mesma interseção. Assim, os aspectos educacionais serão relevantes para efeito da aplicação de uma teoria pragmática como substrato de uma concepção do Direito e da sociedade em que este está imerso. E aqui fala-se em Direito precisamente porque as ações possíveis no seio de uma sociedade, em circunstâncias de agir normal e conforme, decorrerão nos limites postos pelo ordenamento jurídico, em decorrência de promessas implícitas que definem o funcionamento da sociedade e de seus processos.

Estes últimos são, com frequência, não planejados pois sua direção se define a partir da interdependência dos atos de vontade e dos planos de muitos seres humanos. Pensa-se aqui na soma vetorial de muitos vetores (atores) com resultante quase sempre distinta dos atos praticados isoladamente por aqueles atores.

A direção dos processos sociais advém, em larga parte, das configurações sociais e essas têm larga influência de grupos organizados (atores coletivos) que, na linguagem de Norbert Elias, promovem ofensivas civilizatórias (ações que visam a influenciar o comportamento social e introduzir mudanças), mas não dependem apenas dessas. O planejamento social parece ser uma possibilidade adveniente do curso de um processo não planejado – o planejamento é característico de uma fase do desenvolvimento não planejado e entrelaça-se continuamente com ele.

Assim, o projeto (seja o da consecução de uma determinada utilidade, seja o da produção de condições de domínio) defluirá de condições sociais pré-existentes. Entretanto, nem por isso deixará de propiciar a produção de novos projetos quando, no âmbito civilizatório, conduzir à criação de novos objetos.

3.2. Texto legal como promessa

Para reduzir a conflitividade inerente à imposição de estruturação de poder pelo ato constitutivo da forma de governo a implementar, por efeito de atuação de ofensiva civilizatória decorrente de projeto de grupos organizados – faz-se preciso oferecer uma promessa de gestão conforme que ofereça, para efeito de conflitividade diminuída, uma certa igualdade frente à lei (erradicação formal do privilégio).

É preciso refletir sobre a produção do texto legal (a Constituição, por exemplo) pelos que se apoderam, a qualquer título, do direito de fazê-lo. Para além dos mecanismos construídos pelo neoliberalismo de concessões tendentes a estabelecer uma equidade formal (como aqueles dos direitos e garantias individuais e dos direitos sociais) posta no texto legal constituidor do sistema de poder gerido pelo governo em seus diferentes aspectos, deve-se obter legitimidade mediante a persecução sistemática das promessas postas (pelos detentores do poder) nos textos legais.

3.2.1. Pré-condições da proposição da promessa

Conforme já se mostrou,55 uma forma pertinente de se pensar o sentido de Cultura e Civilização é o de entendê-las, respectivamente, como o conjunto de projetos e como o conjunto de objetos de uma sociedade.56 A cultura e a civilização de uma dada sociedade são, dessa forma, produtores e produtos do processo sócio histórico de cada sociedade: os projetos são pressupostos da produção dos objetos que, por sua vez, uma vez produzidos (raramente como se os projetou) levam à formulação de novos projetos.

É preciso ressaltar, entretanto, que os textos legais não são instituidores da sociedade – refletem e buscam manter suas condições de funcionamento – via de regra pela óptica dos poderosos.57

Dessarte – nem a constituição de Dracon,58 nem a de Sólon59 efetivamente constituem, conforme é habitual pensar, mas recolhem as regras do efetivo funcionamento sócio histórico, ao mesmo tempo que, por seu efeito premunitivo e ideológico, introduzem as pretensões dos poderosos que, para efeito de reduzir a conflitividade implícita ao ato de poder prefixam os rumos da sociedade que pretendem produzir e fazer conduzir e, em contrapartida, prometem regras e princípios que aceitam cumprir para obter homeostase social a mais baixo custo.

Entre as promessas mais relevantes encontram-se aquelas de manutenção do status quo e de produção de uma sociedade igualitária (vejam-se, no caso brasileiro, por exemplo, os arts. 1º, 3º, 4º e 5º da Constituição Federal); os princípios instituidores da nova ordem social e que fixam os limites da conduta dos promitentes em relação aos recipientes das promessas.

Nas sociedades ditas mais primitivas60 a progressiva instituição do domínio faz necessária a introdução de contrapartidas para efeito de instabilizar coalizações61 e o produzir de lideranças intestinas hostis. Ao longo da história são frequentes as concessões feitas pelos poderosos para a manutenção do estado de coisas – basta ver, por exemplo, a remissão das dívidas feitas na legislação atribuída a Sólon e de interesse dos optimates; as sucessivas revisões legislativas efetivadas pelo Senado Romano para a mantença do poder e redução de revoltas intestinas,62 a Magna Charta Libertatum Concordiam inter regem Johannen at barones pro concessione libertatum ecclesiae et regni angliae de 1215, que restringiu os poderes do Rei João de Inglaterra por efeito de suas dissensões com o papado e os nobres ingleses conduzindo ao constitucionalismo posterior –, entre outros exemplos possíveis.

Nas sociedades mais complexas, para além dos procedimentos,63 há expectativas que exigem satisfação. Assim, mesmo que todos os procedimentos tenham sido rigorosamente cumpridos, se a norma criada por intermédio desses e pelos homens autorizados (por outros procedimentos ou ficções) a fazê-lo – ainda assim –, caso essa norma não se coadune com os projetos da sociedade (capaz de manifestação), parecerá ilegítima64 e mesmo, por vezes, ilegal.65 Dessarte, tomando o texto cum grano salis, pode-se refletir sobre o que escreveu Agamben em O Mistério do Mal,66 porque volta a chamar a atenção para a distinção entre dois princípios essenciais de nossa tradição ético-política, das quais as sociedades parecem ter perdido qualquer consciência: a legitimidade e a legalidade. Se é tão profunda e grave a crise que nossa sociedade está atravessando é porque ela não questiona a legalidade das instituições, mas também sua legitimidade; não só, como se repete muito frequentemente, as regras e modalidades do exercício do poder, mas o próprio princípio que o fundamenta e legitima. 

Os poderes e as instituições não são hoje deslegitimados porque caíram na ilegalidade; é mais verdadeiro o contrário, ou seja, que a legitimidade é difundida e generalizada porque os poderes perderam toda consciência de sua legitimidade. Por isso é vão acreditar que se pode enfrentar a crise das sociedades por meio da ação (certamente necessária) do poder judiciário – uma crise que investe a legitimidade não pode ser resolvida somente no plano do direito. A hipertrofia do direito que tem a pretensão de legiferar sobre tudo, revela, isso sim, através de um excesso de legalidade formal, a perda de toda legitimidade substancial. A tentativa moderna de fazer coincidir legalidade e legitimidade, procurando assegurar, através do direito positivo, a legitimidade de um poder, é – como resulta do irrevogável processo de decadência em que ingressaram as instituições democráticas – totalmente insuficiente. As instituições de uma sociedade só continuarão vivas se ambos os princípios (que em nossa tradição também receberam o nome de direito natural e direito positivo, de poder espiritual e poder temporal ou, em Roma de auctoritas e potestas) se mantiverem presentes e nelas agirem, sem nunca pretender que coincidam. 

Esse divórcio entre os dois conceitos, fundamentais para a teoria política e para a do direito conduzirão a muitas questões relevantes, entre as quais se encontram a perda de sentido posta por Weber,67 uma vez que a metódica da vida perde seu fundamento moral e as ações racionais com vistas a fins se autonomizam – levando a uma perda de lugar no mundo (origem de toda violência no sentir de Hannah Arendt68). A legitimidade, por essa via, consistiria na legalidade das decisões, aquela do procedimento (e, portanto, meramente formal), de fraco suporte subjetivo.

De um outro ponto de vista, Habermas dirá que esse enfraquecimento da legitimidade se dá em função da burocratização da vida privada e pública, bem assim de sua monetarização.69 A instrumentalização do Lebenswelt (mundo da vida) por efeito das exigências sistêmicas, o desfazimento dos complexos de ação dotados de organização formal (estado e economia) conduz ao predomínio de ações cognitivo-instrumentais, rompendo a familiaridade necessária à produção de um sentido legítimo para os atos no espaço público e privado. A tradição cultural se empobrece e os processos de entendimento se esvanecem. 

Pensa-se, abandonando e adotando posições de ambos, que a produção dos textos legais (projetos de funcionamento da sociedade) terá como contrapartida sua efetiva aplicação para alcance dos interesses de seus endereçados ou de seus aplicadores por intermédio de normas concretas resultantes da compreensão (sentido) / interpretação (significado) desses atores (players) e, em particular, de terceiros autorizados (operadores) implicando, ao mesmo tempo, auctoritas e potestasNão por acaso pôde escrever Walzer:70  

The need for self-justification has, no doubt, a number of reasons; we can give both cynical and sympathetic accounts of it. Why did the pharaohs of ancient Egypt, for example, or the kings of Babylonia and Assyria, in the earliest inscriptions, proclaim their commitment to seeing justice done, the poor sustained, widows and orphans protected. Was it because the thought that their power would be more secure if their subjects believed in commitment? Or because their own self-esteem depended of thinking themselves committed? Or because the rituals of commitment (and their inscriptions) were required by gods? Or because this was what the rulers of states always said about themselves? (But why they said it?) It doesn’t matter. If the pharaoh promises that he will see justice done, then the way is open for some Egyptian scribe to take his courage in his hands and write out a catalogue of the injustices the pharaoh in fact condones”.

E, de fato, o enunciar de direitos e garantias (individuais ou sociais) em textos normativos consiste não apenas em prometer (do latim promittere – por adiante), mas permitir a exigência da promessa. Apenas se pode prometer ato futuro do próprio promitente (ou daqueles que o sucedam em cargo ou função) e, nesse sentido, a norma consiste em promessa que se faz para cumprir diante da exigência de qualquer interessado, em particular daqueles com o múnus da exigência e que atuam de ofício nesse exigir (polícia, ministério público, órgãos da sociedade civil etc.). Com isso se afirma: os optimates, por seus representantes, disciplinam a vida na civilização mediante projetos de conduta que admitem como adequados para cada um dos aspectos dessa civilização, em qualquer de seus estádios,71 vez que a mais sintética definição de poder consiste em assumir que o poder obtém as condutas que deseja.

3.2.2. A produção de textos legais como promessa

A grande variedade de teorias contratuais, segundo Arendt,72 lastreadas em sua maioria no poder estabilizador da promessa, deixava de considerar a imprevisibilidade das suas consequências ao se tornar ação, não obstante, o poder de fazer promessas ocupou e ocupa o centro do pensamento político.73

Desde o pacta sunt servanda, que persiste como marco orientador da inviolabilidade dos acordos e tratados em condições ceteris paribus, ao neminem laedere e o cuique sum tribuere – sempre se encontra à par da igualdade diante da promessa, ainda a persistência dessa como princípio organizador dos negócios da sociedade romana e, por persistência do sistema romano-germânico, de grande parte dos ordenamentos ocidentais contemporâneos.

Se, ao sentir de Arendt, as consequências da ação desencadeada são imprevisíveis e de longo prazo, por outra parte, a manutenção da promessa entre particulares é cláusula asseguradora do bom funcionamento da sociedade.  Por outra parte, quando a promessa se consubstancia em norma, essa, além prefixar as condutas esperadas, gera o compromisso (para quem a põe) de exigi-la uniformemente de todos os cidadãos endereçados pela norma (a igualdade frente a lei). Entretanto, e sobretudo, nada mais exigir senão o prometido, e nada mais conceder senão o prometido.

O cidadão, em Arendt,74 é aquele que age e fala, ou seja, ação e discurso são todo inconsútil afetando o presente e futuro.  Nessa circunstância a promessa antecipa a ação futura dando homeostase aos negócios dos homens, tendo como garantia a legalidade. A promessa, ao obrigar para o futuro, empresta significado aos atos que conduzem à sua realização. 

Os princípios75 de direito administrativo condicionam as promessas possíveis e as condições de sua realização. Normas que impõem responsabilidade fiscal e suas consectárias (que punem as condutas adversas) conferem substância à relação Governo – administrados.

Os projetos concebidos em dada sociedade são estruturados nos seus limites e condições de possibilidade – a partir das promessas do ordenamento jurídico –, conformando uma cultura76 compartilhável e uma civilização adequada a tais projetos. A própria concepção do programa77 do projeto depende do processo sócio histórico compartilhado pelo programador e pelo projetista. Quando o projetista é exógeno acrescentará as condições de sua (sócio historicamente adquirida) atmosfera semântico-pragmática,78 que compõe sua possibilidade de projetar à compreensão do programa que lhe for apresentado.

Assim, por exemplo, quando Rousseau versa sobre a reforma do governo da Polônia,79 aporta convicções oriundas de condições genebrinas (assim como já o fizera em Do Contrato Social80) e o mesmo se observa em Montesquieu em sua análise sobre a ascensão e decadência de Roma81 e dela, também, não escapa qualquer autor que se volte à busca de explicações sobre a cultura, a partir de informações civilizatórias.

3.2.3. A promessa nos delitos e penas

Delinquir significa, nessa conjetura, qualquer procedimento que impeça o cumprimento da promessa feita por via das normas à sociedade. O que se pune por esse abandono da norma é, precisamente, o impedimento do cumprir da promessa. 

O apenamento seria (vez que depende da ponderação de quem edita a lei) tanto mais rigoroso quanto mais danosa à manutenção geral da promessa fosse a transgressão cometida.

O regresso a Hart proposto por Frederick Schauer é apenas parte de um programa positivista – de fato as raízes são mais remotas e radicam no fértil solo do programa da Modernidade.   

O Marquês de Gualdrasco e Villareggi, Cesare Bonesana-Beccaria, já em 1764, preocupado com o uso das leis em benefício da minoria, publicou um ensaio que se tornou famoso sob o título Dos Delitos e das Penas.

De seu ponto de vista, essas leis facultam a alguns poucos o acúmulo de renda e privilégios, restando aos demais a miséria e o descaso das autoridades. As boas leis servem para dificultar os abusos das minorias promovendo o bem-estar mediante política distributiva equânime assegurada pelas vias legais.

Sua visão incorporava avanços relevantes entre os quais a visão de que a pena tinha função preventiva e não retributiva; a probabilidade da punição e não sua dureza produziria esse efeito de dissuasão. Além disso a pena deveria ser proporcional ao crime cometido. O processo e o apenamento decorrente deveriam ocorrer publicamente e terem aplicação em curto prazo – a fim de não perderem sua efetividade. O requisito de publicidade visava proteger o imputado de qualquer excesso das autoridades.

A influência de ideias de Rousseau em seu pensamento tem sido sublinhada, em particular para explicar a origem das penas que decorreriam da usurpação, pelo delinquente, da liberdade cedida pelos demais a fim de consolidar a república e assegurar o bem geral. 

As penas excessivas e odiosas contrariam o contrato social e, portanto, não são admissíveis e o julgamento, sempre pelo magistrado, deve tornar a delinquência desaconselhável e essa consiste no descumprimento da conduta compatível com a norma – condutas atípicas não são penalizáveis. Por essa razão, a norma deve ter caráter geral, erga omnes. Com isso, a finalidade da pena deve se restringir à preservação do bom cumprimento das leis para que se evitem males maiores – consoante a escola utilitarista –, punindo aquele que não se pautou nas normas, desviando-se do contrato social. Qualquer punição que a isso se exceda, de imediato, configurará um abuso.

Em matéria penal – não cabe ao magistrado a interpretação da lei, vez que não é legislador.  Assim exige a clareza do texto legal – pois o texto obscuro é tão nocivo quanto a interpretação arbitrária. A divulgação do texto legal deve ser ampla, pois o conhecimento da pena reduz o intuito do cometimento de crimes.

Outra limitação se impõe: as prisões arbitrárias não podem acontecer – a lei deve indicar os requisitos indiciários para autorizar a prisão dos imputados de delito. A liberdade é bem essencial a se proteger.

Para efeito probatório são perfeitas aquelas provas que independem de outras – vez que se alguma for mostrada falsa não alcançará as demais e o conjunto de provas (mesmo uma única perfeita) deve conduzir à necessidade da emissão do edito condenatório. Caso isso não ocorresse, o imputado deveria ser mantido livre. Se houver apenas provas imperfeitas que não consigam afastar a possibilidade de inocência, o réu deveria ser mantido livre.  

Dessa forma, pode-se observar com clareza o princípio da ampla defesa e do contraditório, em que as provas podem tanto fazer com que um agente seja considerado inocente como culpado ao final de seu julgamento.

Outro princípio a ser observado é o de igualdade diante da lei, e para tanto Beccaria pretendia que o julgamento fosse efetivado por iguais ao réu, isto é, por um júri popular e que houvesse publicidade dos atos. 

As penas deveriam ser moderadas – penas cruéis induzem a novos crimes –, mas deveriam ser eficazes, em particular, sem demora entre o crime e o castigo. Dessarte, a pena de morte só poderia ser admissível em casos de grande conturbação social.

A pena de caráter moral estudada por Beccaria consiste na decretação da morte social do delinquente mediante a infâmia, o sacrifício da honra do apenado para benefício coletivo. O banimento difere da infâmia, vez que afasta fisicamente o infrator do território e serve para punir, por exemplo, o ócio político, o descumprimento do dever de laborar para o crescimento e desenvolvimento da sociedade.

Beccaria indicou que a pena não poderia ser excessiva, nem muito branda – um equilíbrio buscado pela dosimetria penal contemporânea –, para efeito de dar esperanças ao apenado de que regressaria ao convívio social. Essa leitura humanitária das penas e sua concepção de que o método mais eficaz para reduzir a criminalidade repousaria no processo educativo influenciou a legislação penal de muitos países. De seu ponto de vista somente a boa orientação civilizada e ética pode influir sobre os impulsos naturais. A prevenção decorrente das leis úteis, claras e simples que conduzam ao bem-estar e à mantença da paz são mais eficazes que o temor da pena – que, para ser eficaz, tem de ser imediata. 

Em outra vertente, Marat, ao elaborar seu Plan de Législation criminelle, escreveu:82

Ce qu’on appelle de ce nom (les lois) qu’est-ce autre chose que les ordres d’un maître superbe ?  Leur empire n’est donc qu’une sourde tyrannie exercée par le petit nombre contre la multitude. (…) Qu’importe, après tout, par qui les lois sont faites, pourvu qu’elles soient justes; e qu’importe qui en est le ministre, pourvu qu’il les fasse observer. (…) Périssent donc enfin ces lois arbitraires, faites pour le bonheur de quelques individus au préjudice du genre humain ; et périssent aussi ces distinctions odieuses, qui rendent certaines classes du peuple ennemies des autres, qui font que la multitude doit s’affliger du bonheur du petit nombre et que le petit doit redouter le bonheur de la multitude!

Ideias que são complementadas, consistentemente, em seu Chaînes de l’esclavage:83 “C‘est à la violence que les états doivent leur origine, presque toujours quelque heureux brigand en est le fondateur et presque partout les lois ne furent, dans leur principe, que des règlements de police, propres à maintenir à chacun la tranquille jouissance de ses rapines”.

E, se a fundação do estado lhe parece ato de força, as normas também teriam o mesmo fundamento. Assim foi na perspectiva de uma tentativa de explicitar a formação do Estado. 

Prefere-se, contudo, optar por outro posicionamento: se o ato de força acompanha a fundação do estado, por outra parte, essa tensão precisa se resolver em estado conflitivo de menor impacto para que a máxima eficiência possa ser alcançada – a norma precisa conceder – pelo menos – uma identidade de tratamento: uma isonomia. O que se promete (ao súdito, ao endereçado pela norma) ao normatizar é que ela, a norma, será exigida de forma igual a todos – sem excetuar o próprio legislador, nem mesmo ao que a aplica e ao que julga segundo suas condições. 

As diferentes escolas contemporâneas de política penal84 e que se coordenam segundo três correntes dominantes: a liberal, a igualitária e a totalitária – terminam por convergir, mesmo na abordagem estrutural sistêmica, em um ponto: será preciso reintegrar o condenado (a qualquer pena) ao sistema social. Considerando, ainda, que a conduta infracional sempre dependerá da definição dos detentores do poder sobre quais serão essas condutas apenáveis – verifica-se, de todo modo, que as fronteiras dessas possibilidades são definidas no interior do conjunto de promessas feitas pelas demais normas. Só pode haver pena aplicável se houver norma que a determine (nulla poena, nullum crimen – sine praevia lege poenali) e essa só pode ser posta se o conjunto das demais normas o permitir. E, mesmo a aplicação desse princípio geral que estabelece, por seu enunciado, as limitações decorrentes dos tipos penais à aplicação da sanção, ainda assim, traz implicitamente aquelas decorrentes do aparato estatal, como as estatais defluentes do controle de constitucionalidade final de corte superior, que pode levar a aberrações;85 e as internacionais – com a redução de eficácia decorrentes de soberanias estatais e, enfim, com o mais constante dos desvios – a imposição de sanções penais conforme a jurisprudência assente e que leva à desconsideração das particularidades dos casos.

Mas, a sanção penal só cobrará sentido com o afastamento do infrator se houver a possibilidade de o Estado cumprir suas promessas para com os demais jungidos pelo ordenamento (impedir as condutas tipificadas) – essa isonomia diante da lei será a pedra de toque de uma possível justiça tribunalícia86 tendo em vista as promessas implícitas no ordenamento.

3.3. Conclusão

Desta seção do verbete, que trata da norma como promessa, várias consequências podem ser derivadas: a norma consiste em promessa que a própria obtenção do domínio impõe aos poderosos para redução da conflitividade por efeito do acesso ao poder; a norma penal não apenas penaliza a conduta do infrator, mas (e principalmente) busca afastar o impedimento do cumprimento da promessa do Estado de impedir as condutas tipificadas; o objetivo da ação penal é reforçar o princípio da igualdade perante a lei; a legitimidade dos poderosos decorre do cumprimento das promessas postas pelo sistema normativo. Afastam-se com isso as leituras aderentes às propostas de Hart e prepara-se uma possível transição para o Direito da sociedade de controle e informação – que necessitará de uma aproximação com aquele da Common Law. Outra conclusão, mais geral, é a que segue. A teoria do direito e a filosofia política se apresentam como áreas cujo olhar recíproco pode produzir mais compreensão dos seus respectivos objetos do que a separação, proposta pelos positivismos, de uma área em face da outra. A teoria da norma como promessa caminha nessa estrada mais ampla, que aglutina áreas e permite olhares mais espraiados – e simultaneamente mais precisos – sobre os temas de intersecção do direito com a filosofia política. Sob esse olhar recíproco entre áreas, o direito é muito melhor compreendido, o que não ocorre com as limitações decorrentes do recorte metodológico dos positivismos.

4. Considerações finais

O estudo de autores dos séculos quinze, dezesseis e dezessete pode parecer, ao leitor desatento, no mínimo um diletantismo e, no máximo, um disparate. Uma teoria da norma que abranja o direito e a teoria do poder também pode parecer flertar com a imprecisão.

No entanto, caso se pense que o autor clássico é aquele que, por ter pensado, dá a pensar, a perspectiva se inverte. Isto é, o autor clássico, por ter pensado em profundidade uma série de problemas e temas, pode lançar luz no contemporâneo, retirando o leitor do estado dogmático e cristalizado. Estudos mais abrangentes acerca de temas estritamente jurídicos, como a norma, podem produzir o mesmo efeito.

Não é novidade alguma àquele minimamente habituado a leituras de sociologia jurídica e de filosofia do direito que há uma grave crise no estudo e na prática do direito contemporâneo (pode-se afirmar isso, até com um rol maior de argumentos, acerca do Brasil). Pois o chamado estado democrático de direito, no que se refere a sua existência substantiva, certamente sofre abalos cotidianos, e não é com leituras abstratas do conceito de direito e de Estado que se chegará a alguma compreensão dos fenômenos. É preciso tomar o direito como movimento, à luz de filosofias políticas que buscam, por exemplo, na “verdade efetiva da coisa” (Maquiavel), ou na imanência e na potência (Espinosa), suas fontes para compreensão dos temas.

No que se refere à existência substantiva de um exercício democrático como corolário de um estado democrático de direito, algumas questões podem ser levantadas.

E sobre as questões político-jurídicas particularmente, o mundo contemporâneo é fértil em problemas que podem ser objeto de análise à luz de conceitos esboçados no verbete.

Nesse sentido, algumas indagações, a seguir. Como se pode falar em democracia no momento em que grande parte dos cidadãos se vê excluída do corpo político? Ainda se pode falar em corpo político quando os ditos cidadãos são sujeitos apolíticos,87 isto é, têm apenas uma prática cidadã formal? Uma democracia apenas formal – na qual a participação política consiste em que se vote de tempos em tempos – pode ser chamada de democracia? Uma democracia representativa seria mesmo uma democracia? Não seria, em vez disso, uma oligarquia, isto é, uma aristocracia que se transmutou em oligarquia porque houve transferência da potência do corpo político para as mãos de poucos? Faz sentido que se pense a democracia em uma sociedade dominada pelos interesses das empresas transnacionais88 e pelo capital financeiro, e, ainda, no caso dos países em desenvolvimento, por políticas econômicas de organismos internacionais? Qual o peso do conceito de soberania dos países sob a batuta desses organismos, nesse caso? Existe um verdadeiro campo de ação política das democracias de países apontados como em desenvolvimento? O estreitamento do campo de ação política não representaria a anulação da democracia representativa? Uma democracia pode suportar altos graus de exclusão social e baixos níveis de participação política sem se degenerar em tirania travestida de democracia, ou em outro tipo de regime sob trajes democráticos? Qual a conseqüência política de ações humanas que se dão, em larga medida, no campo estrito do privado? Um regime democrático pode suportar altos graus de violência imediata e mediata?89

No que se refere ao direito, em seu estudo e em sua práxis, podem ser formuladas questões que se ligam às formuladas acima.

A inflação legislativa contemporânea possibilita que se afirme que as normas vigentes representam efetivamente os interesses do corpo político? Pode-se dizer que os cidadãos conhecem as leis no momento mesmo em que nem o jurista mais erudito é capaz de conhecer todo o ordenamento jurídico? O estudo de normas, de modo deslocado da realidade social, tem alguma utilidade social e política efetiva? A tentativa inútil de sistematização de um ordenamento inflado pode ser considerada relevante para o direito? Que legitimidade têm regulamentações de leis90 que inflam o ordenamento, não têm sua fonte no poder legislativo – pois advêm de braços do executivo –, e acabam por deformar, muitas vezes, o sentido original da lei que pretendem regulamentar? Isso não explicita uma crise da representação ainda mais profunda? Afinal, que legitimidade tem um burocrata para fazer regulamentos que, sob a intenção de aclarar e dar eficácia a leis, deformam o sentido da norma geral resultante do poder legislativo e acabam, muitas vezes, ocupando seu lugar? Por outro lado, a existência de uma série de direitos, para além do direito estatal, os quais são totalmente ignorados nos estabelecimentos de ensino, não significa alienação daquele que estuda e daquele que trabalha com o direito?

Um Estado, como o brasileiro, que nem mesmo constituiu uma rede de proteção social efetiva, tem legitimidade para fortalecer seu aparato penal no momento mesmo em que se esquece de itens fundantes do corpo político, tais como educação para a cidadania plena, direitos sociais em sentido amplo, etc.?

O fato de a concepção espinosana de direito implicar a noção de que o direito se funda no social, no corpo coletivo, na potentia – individual ou coletiva –, é suficiente para que se possa suspeitar das teorias e práticas contemporâneas acerca do direito e da democracia. E um autor como Maquiavel – só recentemente lido no Brasil sem as amarras equivocadas do maquiavelismo, construído desde a Contrarreforma e descontruído, em parte, sob a aragem do Esclarecimento, utilizado, no século passado, de modo periférico pela ideologia fascista –, para quem o problema da grande política é a explicitação do conflito político, conflito que é natural, pois depende das oscilações dos humores dos Grandes e do Povo, pode ser de grande valia à teoria do direito. Explicitado o conflito político de base, segue-se a sua transformação em instituições e ordenações políticas, capazes prover o cumprimento do bem público, única meta da ação política e do Estado. Maquiavel não pretende reformar a sociedade nem o homem, uma vez que o humor dos Grandes pauta-se pelo desejo de conquistar sempre mais e dominar, e o humor do Povo se move contra o apetite voraz dos Grandes. E muito mais que isto.

Do mesmo modo, uma teoria da norma como promessa, unindo os temas da legalidade e da legitimidade, abre novas portas à compreensão do fenômeno jurídico. É possível um diagnóstico da crise social, econômica, ambiental, política e jurídica contemporânea à luz dos conceitos da filosofia política, especialmente quando esses estão, pela teoria adotada – como é o caso dos autores trabalhados neste verbete –, imbricados aos respectivos conceitos de direito de cada autor. É certo, como conclusão mais ampla, que é o caso de compreender o direito à luz da filosofia política – e das demais áreas das humanidades –, especialmente por meio de autores que fazem a ponte entre as áreas em suas obras, e, por esta razão, lançam luz nas crises atuais. A compreensão estrutural dos problemas sociais, econômicos, ambientais, políticos e jurídicos do período contemporâneo não serão alcançados apenas com leitura e hermenêutica de textos de lei.

É preciso dar dignidade política ao direito, para que sua natureza não seja apenas a de técnica com vistas à decisão, nem mera norma a ser estudada nos tubos de ensaio da doutrina. Daí a pertinência do enfoque de duas áreas tão fundamentais ao pensamento (a filosofia política e o direito) com a conjuntiva e. Talvez a inserção do direito em filosofias políticas realistas, com base na História, mestra dos homens (Maquiavel), ou na imanência e na potência (Espinosa), ou em teorias da norma de espectro mais alargado (norma como promessa), possa ser caminho frutífero no qual a união de áreas do saber resulta em algo além da mera somatória de campos específicos.

Notas

1 DELEUZE, Gilles. Pourparlers, p. 166. Tradução: Conversações, pp. 155-156.

2 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Qu'est-ce que la philosophie? Tradução brasileira em: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia?

3 BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política, v. 1.

4 É famoso o livro de Antonio Negri, sobre Espinosa, que trata do tema da filosofia espinosana como uma "anomalia selvagem". Ver: NEGRI, Antonio. L'anomalia selvaggia: saggio su potere e potenza in Baruch Spinoza. Spinoza. Tradução: NEGRI, Antonio. A anomalia selvagem: poder e potência em Spinoza. Spinoza. Afirma Negri: “(...) um verdadeiro escândalo (para o saber ‘racional’ comum do mundo em que vivemos): é um filósofo do ser que realiza imediatamente uma reversão total do enraizamento da causalidade na transcendência, colocando uma causa produtiva imanente, transparente e direta do mundo; um democrata radical e revolucionário que elimina imediatamente até mesmo a simples possibilidade abstrata de Estado de direito e de jacobinismo; um analista das paixões que não as define como padecer, mas como agir histórico, materialista e, portanto, positivo” (p. 28 da tradução citada).

5 LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento.

6 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito.

7 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, p. 44.

8 ANDRADE, Fernando Dias. Pax spinozana: direito natural e direito justo em Espinosa, especialmente pp. 14 a 18.

9 DALLARI, Dalmo. O poder dos juízes, p. 28. Para uma proposta inovadora de ensino do direito e problematização das existentes, ver: PUGLIESI, Marcio. O ensino do direito como prática transformadora.

10 Idem, p. 28.

11 MATHERON, Alexandre. Le pouvoir politique chez Spinoza. La multitude libre: nouvelles lectures du Traité politique de Spinoza, p. 134.

12 Idem, p. 135.

13 As obras de Espinosa que serão citadas se encontram na edição crítica de Carl Gebhardt (ESPINOSA. Opera). As traduções citadas são as seguintes: ESPINOSA. Ética. Trad por Tomaz Tadeu, 2008. Foi consultada também a tradução do Grupo de Estudos Espinosanos, da FFLCH USP, indicada nas Referências. A paginação é a desta edição. Tratado político. Tradução, introdução e notas de Diogo Pires Aurélio. Tratado Teológico-político. Tradução, introdução e notas de Diogo Pires Aurélio. Correspondencia. Introducción, traducción, notas e índices de Atilano Domínguez, 1988. Quando citada a edição de Gebhardt, usa-se “G” e, após, o volume em romano e a página em arábico. Para a E e o TP, usar-se-á a seguinte abreviação: para a Ética “E”, seguido da parte em romano, “D” para definições, “Def af” para definição dos afetos, “A” para axiomas, “Dem” para demonstrações, “P” para proposições, “Cor” para corolários, “Ap” para apêndices, “L” para lemas, “Esc” para escólios, “Post” para postulados, “Explic” para explicações. Um numeral arábico indicará o número de cada um desses itens. Após, a página em arábico, da edição do Grupo de Estudos Espinosanos, indicada nas referências. Para o TP, numeral romano indica o capítulo e numeral arábico indica o parágrafo. Após, a página em arábico. Para o TTP, numeral romano indica o capítulo. Após, a página em arábico. Para a Correspondência, Ep. E página em arábico, da edição de Atilano Dominguez, citada nas Referências. Essa forma de citação facilita a consulta a qualquer edição das obras de Espinosa.

14 AURÉLIO, Diogo Pires. Imaginação e poder: estudo sobre a filosofia política de Espinosa. Afirma o comentador: “A multidão é um termo charneira [dobradiça], onde se articulam, por um lado, a multiplicidade de desejos ou receios, por outro, a potência comum que se afirma em resultado da sua insustentável dispersão” (p. 275).

15 Espinosa usa o termo imperium, e quando trata de Estado, especificamente, usa ou civitas ou res publica. Usa-se neste verbete Estado para traduzir imperium (acompanhando a tradução de Diogo Pires Aurélio, citada nas referências bibliográficas), mas tendo em mente esta ressalva, que muda o conceito, como se verá no decorrer do texto.

16 ANDRADE, Fernando Dias. Pax spinozana: direito natural e direito justo em Espinosa, especialmente p. 22. 

17 SAMPAIO FERRAZ JR., Tércio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação (item 1.5).

18 Cita-se o Leviatã, de Hobbes, com romano para Parte, e arábico para capítulo. A página é da edição brasileira, cotejada com a edição inglesa. Assim, facilita-se a consulta a qualquer edição. Para este verbete, consultou-se: HOBBES. Leviatã. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva, 1997; Leviathan. J.C. A Gaskin (ed.), 1998.

19 Para aprofundamento do tema da construção afetiva da política em Espinosa, consultar: MONTANS BRAGA, Luiz Carlos. Trama afetiva da política: uma leitura da filosofia de Espinosa.

20 Para o tema da ontologia espinosana, e de como ela importa para a definição dos conceitos da filosofia política do autor, ver: CHAUI, Marilena. A nervura do real, vol. I.; Política em Espinosa.

21 Para o conceito de substância, ver: CHAUI, Marilena. A nervura do real, v. I. Para os fins deste verbete, basta compreender que substância, para o autor, é o mesmo que natureza imanente (ou o mesmo que Deus): é única, nada há fora dela e tudo o que há é expressão da potência da e na substância.

22 SAMPAIO FERRAZ JR., Tércio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação, p. 49. Apenas recapitulando: dupla abstração na medida que o direito é identificado às normas postas pelo Estado – primeiro grau de abstração – e às regras para interpretação destas normas – segundo grau de abstração. A consequência desta dupla abstração é a distância, cada vez maior, entre direito e realidade social. No que se refere à distância entre realidade social e direito, muito abrangentes e instigantes, bem como esclarecedoras, são as análises de José Eduardo Faria em suas obras. Que o leitor se remeta às seguintes obras do autor: FARIA, José Eduardo. O direito na economia globalizada. FARIA, José Eduardo; KUNTZ, Rolf Nelson. Qual o futuro dos direitos?

23 MATHERON, Alexandre. Pax spinozana: direito natural e direito justo em Espinosa, p. 134.

24 Conferir: NEGRI, Antonio. O poder constituinte: ensaio sobra as alternativas da modernidade, p. 32. BOVE, Laurent. Introduction. Traité politique, pp. 09-101.

25 Para comentários acerca da posição de Coluccio Salutati, Leonardo Bruni e Lorenzo Valla acerca da lei e do direito, conferir “Leyes, Derecho e Historia en las discusiones de los siglos XV e XVI”, em La revolucion cultural do Renascimiento, de Eugenio Garin, pp. 237-242.

26 Segundo Garin, ecos da quentura da discussão acerca do direito e das leis ressoaram em carta de Cantiuncula (Claudio Chansonette) escrita a Cornélio Agrippa, de Basiléia, em 1518, com o propósito de posicionar-se com o fim de “perfeccionar y corregir sus estudios en disciplinas juridicas... sin las cuales el estudio del derecho le parece mutilado e insuficiente” (GARIN, Eugenio. La revolución cultural do Renascimiento, p. 221). Em verdade, a carta mostra “una necessaria armonización entre estudios juridicos y cultura literaria” (Idem, p. 221). Agrippa observara que “el derecho arroga una especie de supremacia sobre todos las ciencias. No obstante, como solo examinar la tradición jurídica se captan de imediato las contradicciones que culminan en el conflito permanente entre leyes y justicia” (Idem, p. 223).

27 Idem, pp. 217-242.

28 “Petrarca a modo de punto de referencia, lo primero que nos sorpreende de su obra es el impulso dado a primera gran polémica sobre los estudios juridicos, destinada a prolongarse a lo largo de todo el siglo XV. Nos  estamos referiendo a la contenda desatada en torno a la relación entre los estudios de medicina y los estudios de moral y de derecho, donde ressurge, aunque esta vez con tonos originales, el antigo paralelismo, de timbre platónico, entre justicia (y leyes) naturales y justicia (y leyes) civiles” (Idem, p. 231).

29 Em História de Florença, Maquiavel detalha e analisa a luta política em vista dos ditames republicanos, postos à prova pelo tumulto dos Ciompi, a mostrar a fragilidade das instituições e ordenações políticas florentinas. A propósito, conferir “10. O Tumulto dos Ciompi”; “11.Guicciardini em vão faz diversas concessões aos sublevados” (como registro de passagem, Luigi Guicciardini, ancestral de Francesco Guicciardini, era o gonfalonieiro ao momento da revolta dos Ciompi); “12. As causas da rebelião”; “13. Um discurso de incitação à revolta” (o discurso traz o pronunciamento de um operário fictício, com lucidez de classe analisa a situação político-social dos trabalhadores); “14. Os Ciompi incendeiam as casas dos mesmos que nomeiam cavaleiros. As desordens continuam”; 15. “Inutilmente os Senhores aceitam exigências gravosas e desonrosas. O palácio em mãos da plebe”; 16. O cardador Miguel de Lando, gonfalonieiro”; “17. A plebe se rebela contra Lando que a supera em ânimo, prudência e bondade”; “18. Tria e Baroccio, do povo miúdo, excluídos da Senhoria”; “19. Piero degli Albizzi executado”; “20. Scali é decapitado e Strozzi obrigado a fugir”; “21. Novo ordenamento da Senhoria desfavorece a plebe”; “22. Confinados Miguel de Lando, notáveis e chefes plebeus. Os florentinos compram Arezzo”; “23. Confinados Miguel de Lando, notáveis e chefes plebeus. Os florentinos compram Arezzo”; “24. Outros repreendidos e confinados”, In MAQUIAVEL, N., História de Florença, pp. 154-176. Ver também GARIN, Eugenio et al. Il tumulto dei ciompi: un momento di storia Fiorentina ed Europe.

30 GUICCIARDINI, Francesco. Considerazioni intorno ai Discorsi del Machiavelli. AntiMachiavelli, pp. 35-96.

31 BORNHEIM, Gerd. O sujeito e a norma. Ética, pp. 248 ss.

32 MAQUIAVEL, N. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio.

33 Conferir TITO LIVIO. Storia di Roma. Ab urbe condita libri

34 A propósito das disputas entre os Grandes e a Plebe, ver LEFORT, C. Le travail de l’ouevre Machiavel, pp. 473-477.

35 Ver BIGNOTTO, Newton. Maquiavel republicano, p. 87. Ver também LEFORT, C. Le Travail d’ouevre Machiavel, pp. 386 e 477. 

36 MAQUIAVEL, N. O príncipe. Escritos políticos (Coleção “Os Pensadores”). 

37 Conferir “Parte Seconda: Modelli Naturalistico-Medicali nella ‘Rivoluzione Scientifica’ dello Studi della Politica ad Opera di Machiavelli”, em ZANZI, Luigi. Il metodo del Machiavelli, pp. 331-500. 

38 Exemplificando a tensão entre os umori, desde a concepção hipocrática e galênica, pode ser conferida em O Príncipe, Caps. IX e XIX; Discorsi, I, 4 e 5 e História de Florença, II, 12; III, 1 e IV, 1. Um exemplo pontual pode ser lido em “A semente dos humores guelfos e gibelinos”. História de Florença, Livro I, 15, pp. 54-55. Ver também considerações acerca dos “humores agitados” e “aquietou esses humores”, Idem, Livro IV, p. 201.  

39 “Pragmático” no sentido conferido por Políbios à história escrita por ele. A tradução para o Português contém  o uso do termo “pragmática”, nas passagens de POLÌBIOS. História, Livro I, 1, “minha história pragmática”, p. 41; Livro I, 35, ‘História pragmática”, p. 70; Livro IX, 1, “história pragmática”, p. 373.  A propósito, conferir a tradução para o Francês, Livro I, 35, de POLYBE. Histoire, p. 108, em que consta a expressão “l’histoire ‘pragmatique’”. No Livro IX, 1.6, ao invés do termo “pragmatique”, a expressão empregada - na tradução francesa - é “histoire politique”, Idem, p. 664. É consensual que a concepção de história polibiana tem caráter pragmático. Como registrado: “a própria singularidade dos eventos escolhidos (da História de Roma) por mim para meu tema será suficiente para desafiar e incitar a totalidade dos leitores, sejam eles jovens ou idosos, a conhecer a minha história pragmática” (POLÌBIOS, História, p. 41).  

40 Acerca da expressão “antropologia política”, conferir Deuxième Partie, “L’anthropologie politique”. Machiavel l’antropologie politique, pp. 241-337.

41 VALVERDE, Antonio José Romero. Maquiavel: a natureza humana e o reino deste mundo. Natureza humana em movimento: ensaios de antropologia filosófica, p. 51.

42 BIGNOTTO, Newton. Maquiavel republicano, p. 83.

43 Acerca do Centauro Quíron, educador de Aquiles, Dante Alighieri escreveu: “Lo mio maestro disse: ‘La risposta / farem noi a Chirón costa di presso: / mal fu la voglia tua sempre sí tosta’. / Poi mi tentò, e disse: ‘Quell’ è Nesso, / che morí per la bela Deianira, / e fé di sé la vendeta elli stesso. / E quel di mezzo, ch’al petto si mira, / è il gran Chirón, il qual nodrí Achille;” ALIGHIERI, Dante. Divina Commedia / Inferno, Canto XII, 64-71. Tutte le opere, p. 100. Ver também “La figura del ‘doppio’ nell’immagine machiavelliana del Centauro”, em ESPOSITO, R. Ordine e conflito: Machiavelli e la letteratura política del Rinascimento italiano, pp. 13-39.

44 SEARLE, John R. Os actos de fala: um ensaio de filosofia da linguagem

45 SOUSA SANTOS, Boaventura. Law: A map of misreading. Toward a postmodern conception of Law. Journal of law and society, v. 14, nº 3, p. 293. O autor afirmou, em tradução livre: “Vivemos num tempo de realidade porosa, ou de porosidade jurídica de uma rede múltipla de ordens jurídicas que nos forçam a constantes transições e passagens. A nossa vida jurídica constitui-se pela intersecção de várias ordens jurídicas, isto é, pela interlegalidade. A interlegalidade é a contrapartida fenomenológica do pluralismo jurídico, e assim o segundo conceito-chave de uma concepção pós-moderna do direito.  Reflete um processo altamente dinâmico, visto que os diferentes espaços jurídicos são não-sincrônicos, advindo daí mistura desigual e instável dos códigos jurídicos”.

46 Noção próxima daquela de ideologia em suas múltiplas acepções - a respeito: ECCCLESHAL, Robert et alii. Political ideologies: an introduction.

47 PUGLIESI, Márcio. Teoria do direito, p. 45 e seguintes.

48 Em particular, vejam-se:  MOSCOVICI, Serge. A representação social da psicanálise e JODELET, Denise (org.). As representações sociais e, ainda JUNQUEIRA DE AGUIAR, Wanda Maria et al. Reflexões sobre sentido e significado. A dimensão subjetiva da realidade: uma leitura sócio-histórica, Ana Mercês Bahia Bock e Maria da Graça Marchina Gonçalves (orgs.), pp. 54-72 e, das organizadoras da obra, A dimensão subjetiva dos fatos sociais, pp. 116-157 – para efeito de uma abordagem da psicologia social. 

49 Que definem um “quem manda” nas relações de longo prazo. Pense-se, por exemplo, naquelas familiais.

50 Como, por exemplo, normas preexistentes (legais ou consuetudinárias); hábitos sociais arraigados; conjuntura econômica etc.

51 Conjunto de ações visando uma utilidade. A respeito, conveniente a leitura de MULGAN, Tim. Utilitarismo – para uma busca de compreensão das diversas vertentes do utilitarismo. 

52 O lugar da ação.

53 Conjunto de atos de vontade (escolhas) direcionados a utilidades.

54 SILVA RAMOS, Péricles Eugênio da (org.). Poesia grega e latina, p. 126.

55 PUGLIESI, Márcio. Teoria do direito: aspectos macrossistêmicos.

56 Assim, por exemplo, a produção do texto de uma peça teatral será um projeto (aquilo que se lança à frente) que se tornará objeto mediante a montagem dessa peça. Quando se vai a um museu vê-se objetos e não o projeto – logo se tem acesso a uma visão restrita de uma civilização e, nunca, a de uma cultura.

57 Assinale-se por exemplo, que durante o período de maior paz interna em Roma, naquele período que se situa entre a tirania patrícia e a insurgência dos Gracos, a organização do poder funciona pela reunião das três formas de base: os cônsules operam segundo o regime monárquico; o Senado pelo aristocrático e os comícios e tribunos conforme aquele democrático. Ao final do período, já no tribunato dos Gracos – denunciava-se a atitude de o Senado alterar as normas para manter o poder. Essa flagrante ilegitimidade levou a revoltas demoradas e profundas causadoras da centralização do poder nas mãos dos optimates.  A respeito vejam-se: PAIS, Ettore. Storia dell’Italia antica, v. I e II; Storia critica di Roma durante i primi cinque secoli. E também: MOMMSEN, Theodor. O mundo de los Césares.

58 Veja-se o texto de CLOCHÉ, Paul. Remarques sur la prétendue Constitution de Dracon. Revue des études anciennes, v. 42, nº 1, pp. 64-73. Aristóteles, em seu Constitution des Athéniens (ARISTOTE. Œuvres complètes, pp. 2537-2595), traz importantes referências para dar suporte a esta conjetura, em particular nos capítulos 4-12 e 29- 31.

59 Mesmas referências da nota acima. 

60 Vejam-se, por exemplo, FRAZER, James George, Sir. The golden bough; MORGAN, Lewis Henry. A conjectural solution of the origin of the classificatory system of relationship; FALLERS, Lloyd A. The social anthropology of nation-state; ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado; WEBER, Max. Economía y sociedad: esbozo de sociología compreensiva.

61 O poder, no campo da cultura, busca por intermédio do Governo, no campo da civilidade, dividir, desencorajar coalizações e dissociá-las sempre que formadas, operando por concessões, autorizações e benefícios assemelhados que, antes de socializar o poder, favorecem a sua concentração. Nota-se que a economia privada recebe dos poderes públicos as condições prévias para seu crescimento, por exemplo: a formação básica da mão de obra; a confiança na ordem econômica e social; o monopólio da violência e da administração de justiça; a cultura e, em particular, a organização civilizacional. E, mais diretamente, nas economias contemporâneas, mais de metade dos recursos postos em circulação, como investimento, advém do Governo. Ademais, em qualquer sistema econômico contemporâneo, a minoria persiste decidindo o que fará a maioria (PUGLIESI, Márcio. Teoria do direito, pp. 78-79).

62 DUCOS, Michele. Roma e o direito.

63 LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento.

64 Para além dos requisitos jurídicos para a legitimidade (formal/material) de uma norma – validade, justiça e eficácia –, pensa-se aqui em legitimidade política que supõe sejam as normas aceitas e cumpridas com o mínimo de coerção do aparato de estado. Isto é, não basta a legitimidade formal relacionada com o procedimento dos órgãos estatais em conformidade com o estabelecido pelo sistema normativo, mas - e principalmente - aprovação popular às normas existentes por sua conformidade com o projeto da sociedade (cultura) e com a atuação governamental parra sua aplicação/concretização (civilização). 

Tercio Sampaio Ferraz Junior (2012, item 4.1), por outra via, afirmou: “Vivendo numa sociedade juridicamente organizada, o jurista sabe que há critérios gerais, direitos comuns, configurados em normas chamadas leis, estabelecidas conforme a constituição do país. Nesse contexto, ele invoca um primeiro princípio geral para iniciar seu raciocínio: o princípio da legalidade. Ninguém está obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Ele pode ter dúvidas quanto à legitimidade da ordem jurídica em que vive. Pode, por exemplo, segundo um juízo subjetivo, considerar aquela ordem como autoritária, antidemocrática. Para seus objetivos, porém, é preciso encontrar um ponto inegável de partida, que possa ser generalizado. Atém-se, pois, ao princípio. E busca nas leis do país uma regra que lhe seja conveniente”.  E aqui o autor se refere às questões de validade e eficácia – no item 7.2 (2012, item 7.2) volta-se ao problema da justiça: “Em suma, se a legitimidade repousa puramente num sentimento, subjetivo e irracional, ou se existe uma estrutura universal e racional que legitime o direito ou nos faça reconhecê-lo como ilegítimo. Enquanto se pode postular como certo que as normas jurídicas são regras que de alguma forma se adaptam às mudanças sociais, posto que podem deixar de valer ao serem revogadas, conforme o interesse da decidibilidade dos conflitos, o que se procura é uma espécie de estrutura de resistência à mudança, que assegure à experiência jurídica um sentido persistente. Desde a Antiguidade, foi na ideia de justiça que se buscou essa estrutura”. Essa abordagem tem seus benefícios, mas, prefere-se aceitar aquela de que a legitimidade se vincula à correlação de fatores de ordem política e que defluem da busca concentrada e persistente de realizar os projetos da sociedade nos limites da legalidade (que pode ser elastecida – por efeito de ativismo judicial; por novas disposições normativas (algumas ao arrepio da lei por instâncias administrativas etc.).

65 Basta ver a grande quantidade de Ações Diretas de Inconstitucionalidade para normas municipais, estaduais e federais que não prosperam nos tribunais. 

66 AGAMBEN, Giorgio. O mistério do mal, pp. 10-11. 

67 WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo, pp. 130-131.

68 Consulte-se, por exemplo, GOMBI BORGES DOS SANTOS, Sílvia. Em busca de um lugar no mundo: o conceito de violência em Hannah Arendt.

69 Ver WHITE, Stephen K. Razão, justiça e modernidade: a obra recente de Jürgen Habermas.

70 WALZER, Michael. Thick and thin: moral argument at home and abroad, p. 42. Em tradução livre: “A necessidade de auto justificação tem, sem dúvida, algumas razões; podemos apresentar tanto relatos cínicos quanto simpáticos disto. O que fez os faraós do antigo Egito, por exemplo, ou os reis da Babilônia e Assíria, em suas primeiríssimas inscrições, proclamar seu propósito de realizar justiça, os pobres com sustento, viúvas e órfãos protegidos? Foi devido ao pensamento de que seu poder seria mais seguro se seus súditos acreditassem em promessa (commitment)? Ou porque sua autoestima dependia de se sentirem comprometidos? Ou porque os rituais de promessa (e suas inscrições) eram exigidos por deuses? Ou, porque isso foi que os governantes (rulers) dos estados sempre disseram sobre si mesmos? (Mas, por que disseram isso?) Isso não importa. Se o faraó promete que quer seja feita a justiça, então se abre o caminho para que algum escriba egípcio adquira coragem e escreva um catálogo das injustiças que o faraó, efetivamente, consente”. 

71 Para ter em conta posições como as de RIBEIRO, Darcy. O processo civilizatório: etapas de evolução sociocultural e, mesmo as de ELIAS, Norbert. O processo civilizacional: investigações sociogenéticas e psicogenéticas, 1º vol. (Transformações do comportamento das camadas superiores seculares do ocidente). E ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Formação do Estado e civilização, v. 2 – com as quais se concorda parcialmente conforme se pode ver em Pugliesi (2015).

72 ARENDT, Hannah. A condição humana, p. 289.

73 Idem, p. 304.

74 ARENDT, Hannah. A condição humana, p. 198.

75 De primus capere – aquilo que deve ser tomado primeiro, o que vem antes.

76 PUGLIESI, Márcio. Teoria do direito: aspectos macrossistêmicos – para efeito de discussão dos conceitos de cultura e civilização.

77 A palavra programa advém do grego programma que deriva do verbo prografo – escrever antes. Na Grécia constituía a ordem do dia, a agenda – que é o gerundivo de agere – levar adiante, executar o que deve ser feito, agir. 

78 O conjunto formado pela doxa, representações sociais e epistême constitui a atmosfera semântico-pragmática individual, ou seja, o sujeito. Inclui-se nas representações sociais a linguagem, aqui entendida como subconjunto próprio da língua, i.e., a porção individualmente adquirida e construída da língua por dada atmosfera semântico-pragmática.  

79 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Considerações sobre o governo da Polônia e sua reforma projetada.

80 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social.

81 MONTESQUIEU, Charles Louis de Secondat et Barón de La Brède et. Considération sur les causes de la grandeur des Romains et de leur décadence.

82 MARAT, Jean-Paul. Plan de legislation criminelle, p. 35. Em tradução livre: “O que se chama por esse nome (as leis) senão as ordens de um senhor soberbo. Seu império é apenas surda tirania exercida pela minoria contra multidão. (...) Que importa, afinal, por quem as leis são feitas desde que sejam justas; e que importa quem as aplique, desde que as faça observar. (...). Pereçam, então, enfim, essas leis arbitrárias feitas para a felicidade de alguns indivíduos e em prejuízo do gênero humano e pereçam, também, essas distinções odiosas que tornam certas classes do povo inimigas das outras, que fazem com que a multidão deva se afligir com a felicidade da minoria e que a minoria deva temer a felicidade da multidão!”

83 MARAT, Jean-Paul. Chaînes de l’esclavage, pp. 58-59, em tradução livre: “é à violência que os estados devem sua origem; quase sempre algum feliz aventureiro é o seu fundador e quase em toda parte as leis foram, tão só, em suas origens, apenas regras de polícia, próprias para garantir para cada um a tranquila fruição de suas rapinas”.

84 Pensa-se aqui, a partir de DELMAS-MARTY, Mireille. Os grandes sistemas de política criminal.

85 Veja-se o caso de recente releitura e reinterpretação do Supremo Tribunal Federal que descaracterizou o texto do artigo 5º, inciso LVII, in verbis: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória - sob o véu de uma reconsideração. Isso será sempre inadmissível comportando no ativismo judiciário, neste caso, uma claríssima tentativa de legislar, em nível constitucional, para atender a questões de política. Isso fere promessa de base do sistema”.

86 Entende-se a justiça tribunalícia como aquela em que as partes em litígio – embora possam recorrer da decisão – preferem acatar a decisão da instância.

87 Quanto à crise ética gerada por uma cultura narcísica e apolítica, que o leitor se reporte ao seguinte ensaio: COSTA, Jurandir Freire. A ética e o espelho da cultura. Principalmente a Introdução.

88 Usa-se o termo transnacional para designar uma certa maneira de organização das corporações empresariais no plano internacional. O termo multinacional já não dá mais conta do fenômeno. De fato, pode-se entender por multinacional uma empresa que se estabelece em múltiplos Estados. Por exemplo, sua manufatura se estabelece em países cuja mão-de-obra é mais barata, enquanto seus diretores se estabelecem em países que dão formação intelectual mais sólida a seus cidadãos.

O que ocorre com a empresa transnacional é algo mais dinâmico. A mudança de localidade de seus vários setores se dá de tal modo que, a rigor, é mais preciso que sua natureza seja designada como transnacional, isto é, o empreendimento se torna de tal modo dinâmico que as várias seções da empresa mudam de acordo com variáveis cada vez mais complexas e em maior número. Por exemplo, a seção de manufatura de uma empresa transnacional pode ir de país a país em busca, sempre, da mão-de-obra mais barata para que seu produto seja mais competitivo na economia globalizada. Em uma palavra: o termo transnacional talvez explicite uma dinâmica mais próxima da realidade das empresas internacionais que o termo multinacional, o qual representa uma ideia mais estática. 

89 Pode-se entender por violência imediata o conjunto das práticas coibidas pelos institutos de direito penal, como roubo, furto, latrocínio, etc. Pode-se entender por violência estrutural ou mediata condições históricas e muitas vezes institucionalizadas que impossibilitam uma prática cidadã. Por exemplo, a impossibilidade, a todos os cidadãos, de um mínimo cultural crítico para o exercício da ação ética, bem como um mínimo material, para a manutenção da dignidade.

90 Exemplos são abundantes, e vêm de órgãos como Receita Federal, Ministério do Trabalho, Banco Central, Secretarias Estaduais e Municipais de Fazenda, etc. Tais instituições, a pretexto de regulamentar, deformam e esvaziam as leis que deveriam ser objeto dos regulamentos. Além disso, ferem mortalmente o conceito de representação.

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Citação

VALVERDE, Antonio José Romera, BRAGA, Luiz Carlos Montans, PUGLIESI, Márcio. Filosofia política e direito. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Teoria Geral e Filosofia do Direito. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga, André Luiz Freire (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/136/edicao-1/filosofia-politica-e-direito

Edições

Tomo Teoria Geral e Filosofia do Direito, Edição 1, Maio de 2017

 Fonte de referência, estudo e pesquisa:

Enciclopédia Jurídica da PUC SP 


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