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segunda-feira, 18 de outubro de 2021

Violência psicológica contra a mulher: comentários à Lei nº 14.188/2021

 Violência psicológica contra a mulher: comentários à Lei nº 14.188/2021


INTRODUÇÃO

No dia 28/07/2021 houve a sanção da Lei nº 14.188/21, que define o programa de cooperação “Sinal Vermelho contra a Violência Doméstica” como uma das medidas de enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher e altera o art. 12-C da Lei nº 11.340/2006 para prever a possibilidade de o risco atual ou iminente à integridade psicológica (não apenas à integridade física) justificar o deferimento de medida protetiva de urgência. Na seara criminal, as alterações mais relevantes foram a criação de uma modalidade qualificada de lesão corporal em contexto de violência doméstica contra a mulher (Código Penal, art. 129, § 13) e o novo crime de violência psicológica (Código Penal, art. 147-B). O presente artigo tem por objetivo analisar as repercussões jurídicas da nova lei.

 


1. QUALIFICADORA DA LESÃO CORPORAL COMETIDA CONTRA A MULHER POR RAZÕES DA CONDIÇÃO DO SEXO FEMININO

A lesão corporal leve, até o advento da Lei nº 14.188/2021, tinha duas modalidades no art. 129 do Código Penal. A simples, do caput, punida com detenção de 3 meses a 1 ano, e a qualificada, do § 9º, quando cometida contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade, esta punida com detenção de 3 meses a 3 anos. Esta última era qualificada pela relação com a vítima, não pelo resultado. Nestas duas figuras (caput e § 9º), o legislador objetiva a proteção de pessoas de ambos os sexos.

Com a novel lei, o art. 129 passa a contar com mais um parágrafo (§ 13), com a seguinte redação:

Art. 129. […]

§ 13. Se a lesão for praticada contra a mulher, por razões da condição do sexo feminino, nos termos do § 2º-A do art. 121 deste Código:

Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro anos).

Como se nota, trata-se de nova qualificadora da lesão corporal de natureza leve, mirando como vítima somente a mulher ferida no ambiente doméstico e familiar, ou ainda por preconceito, menosprezo ou discriminação quanto ao sexo.

O conceito de violência doméstica ou familiar é obtido da leitura do art. 5º da Lei nº 11.340/2006, definida como qualquer ação ou omissão baseada no gênero contra a mulher, em três contextos relacionais: relações domésticas, familiares e íntimas de afeto:

I – no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas.

II – no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa.

III – em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.

A agressão no âmbito da unidade doméstica compreende aquela praticada no espaço caseiro, envolvendo pessoas com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas. Inclui-se a agressão do patrão em face da empregada doméstica, contra colegas de república ou contra pessoa temporariamente agregada à unidade doméstica. A respeito, temos a lição de Damásio de Jesus e Hermelino de Oliveira (2007, online):

Não se pode afirmar que essas normas foram expressas visando à proteção da empregada doméstica. De ver-se, entretanto, que não se pode dizer que a excluíram de sua incidência, até porque o mandamento constitucional proíbe a violência no âmbito das relações familiares. (…) Para que se possa opinar sobre a questão proposta, é também necessário relembrar o conceito legal de empregado doméstico como sendo ‘aquele que presta serviços de natureza contínua e de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família no âmbito residencial destas’ (art. 1.º da Lei 5.859, de 11 de dezembro de 1972). Essa prestação de serviços no seio das famílias e no ambiente residencial é que justifica o tratamento legal dado à relação de trabalho doméstico e sua forma de proteção (…). A propósito, os escritores nunca desprezaram os empregados domésticos. No passado, encontramos a figura do mordomo fiel, que muito se prestou a tantas peças literárias, sendo, amiúde, a chave do deslinde de histórias policiais misteriosas. Hoje, diante das transformações da família e da vida moderna, a figura da empregada da casa passou a ser objeto de peças teatrais, algumas de muito sucesso, aparecendo como protagonista principal do enredo, tal o seu envolvimento com a vida das pessoas da residência. De se concluir, pois, que ela merece a proteção da Lei nº 11.340/2006.

As empregadas domésticas estão sujeitas a uma dupla discriminação, de gênero e de classe social (esta última normalmente com um forte recorte de raça). Esta forma de trabalho doméstico é uma continuidade da colonialidade de gênero e raça sobre as mulheres negras (ANDRADE; TEODORO, 2020).

Nesses ambientes, são comuns as abordagens sexuais e o STJ já decidiu pela aplicação da Lei Maria da Penha em crime de assédio sexual contra empregada doméstica. Assim:

Assédio sexual. Lei Maria da Penha. Crime cometido contra empregada doméstica. Condição de vulnerabilidade comprovada. Coabitação entre agressor e vítima. Violência doméstica e familiar contra a mulher. Requisitos atendidos. Competência do juízo especializado. Omissão. Inocorrência. Rediscussão do julgado. Impossibilidade. Aclaratórios rejeitados.

(STJ, EDcl no Habeas Corpus nº 500.314/PE, 5ª T., rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 15/08/2019)

A violência no âmbito da família engloba aquela praticada entre pessoas unidas por vínculo jurídico de natureza familiar, podendo ser conjugal, em razão de parentesco (em linha reta e por afinidade), ou por vontade expressa (adoção). Nesse sentido, já decidiu o STJ:

A Lei Maria da Penha objetiva proteger a mulher da violência doméstica e familiar que, cometida no âmbito da unidade doméstica, da família ou em qualquer relação íntima de afeto, cause-lhe morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico, e dano moral ou patrimonial. Estão no âmbito de abrangência do delito de violência doméstica, podendo integrar o polo passivo da ação delituosa as esposas, as companheiras ou amantes, bem como a mãe, as filhas, as netas, a sogra, a avó, ou qualquer outra parente que mantenha vínculo familiar ou afetivo com o agressor.

(STJ, AgRg no AREsp 1.626.825/GO, rel. Min. Felix Fischer, j. 05/05/2020)

Ao incauto pode parecer que apenas nesta terceira situação fica dispensada a coabitação entre os envolvidos. Mas não. Na linha do entendimento sumulado pelo STJ na Súmula 600: “Para a configuração da violência doméstica e familiar prevista no art. 5º da Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) não se exige a coabitação entre autor e vítima”.

Ainda de acordo com o parágrafo único do art. 5º da Lei n. 11.340/2006, as relações pessoais nele enunciadas independem de orientação sexual. Notável a inovação trazida pela lei nesse dispositivo legal, ao prever que também a mulher homossexual, quando vítima de ataque perpetrado pela parceira, no âmbito da família ou relação íntima de afeto encontra-se sob a proteção do diploma legal protetivo. Na hipótese de relação homoafetiva entre homens, não tem aplicação a Lei Maria da Penha, pois não se trata de violência de gênero.

A lei também se aplica às mulheres transexuais, ou seja, pessoas que têm identidade de gênero de mulher. Nesse sentido:

A Lei Maria da Penha pode ser aplicada a mulheres transexuais e/ou travestis, independentemente de cirurgia de transgenitalização, alteração do nome ou sexo no documento civil. (Enunciado n. 30 da COPEVID)

A Lei Maria da Penha se aplica às mulheres trans, independentemente de alteração registral do nome e de cirurgia de redesignação sexual, sempre que configuradas as hipóteses do art. 5º, da Lei nº 11.340/2006. (Enunciado n. 46 do FONAVID)

Note-se que, embora a norma explicativa (Código Penal, art. 121, § 2º-A, inc. I) contenha a expressão violência doméstica e familiar, deve ser lida como violência doméstica ou familiar, pois nada impede que o fato ocorra no âmbito doméstico sem que haja vínculo familiar (como a empregada doméstica), nem há óbice a que ocorra fora do âmbito doméstico entre familiares (como a irmã sem coabitação). Tal decorre da própria definição do art. 5º da Lei nº 11.340/2006, que se refere expressamente aos crimes cometidos no âmbito da unidade doméstica e no âmbito da família.

No caso do menosprezo e da discriminação à condição de mulher, o tipo se torna aberto, pois compete ao julgador estabelecer, diante do caso concreto, se o crime teve como móvel a discriminação derivada da condição feminina. Para a adequada compreensão e aplicação da norma, deve-se analisar as circunstâncias do fato, à luz dos estudos sobre as relações de gênero.

Nesse sentido, estabelece o Enunciado n. 25 da COPEVID: “Configura a qualificadora do feminicídio do art. 121, § 2º-A, inc. II, do Código Penal o contexto de: tráfico de mulheres, exploração sexual, violência sexual, mortes coletivas de mulheres, mutilação ou desfiguração do corpo, exercício de profissões do sexo, entre outras”. Outro exemplo de feminicídio não-íntimo presente na legislação de outros países (Colômbia, Nicarágua, Venezuela) é a situação de se ofender a mulher como forma de humilhar um adversário, como no conflito de grupos criminosos.

De uma forma geral, costuma-se indicar como ataque ou discriminação de gênero o ataque ao feminino ou ao fato de a mulher descumprir “papeis tradicionais”, ou mesmo ocupar espaços tradicionalmente reservados aos homens. Exemplos: a agressão a uma mulher porque está com roupas curtas, porque teve relacionamento com homem casado, porque se recusou a amamentar uma criança, a universitária porque “paquerou” dois homens, a uma mulher porque se recusou a sair com um desconhecido, além de outros exemplos.

Importante mencionar, outrossim, que o corte de cabelo forçado de mulher configura violência de gênero. Assim:

Caso dos autos em que o corte de cabelo, como realizado, sem autorização e de forma vexatória, com gravação de vídeo e exposição, constitui lesão corporal, tendo provocado clara alteração desfavorável no aspecto físico e exterior da vítima.

(TJ-RS, APR 70083288860 RS, rel. Des. Luiz Mello Guimarães, 2ª Câm. Crim., j. 17/12/2019)

É interessante notar que, incidentes as circunstâncias do § 9º bem como alguma das qualificadoras dos §§ 1º, 2º ou 3º do art. 129, o § 10 determina que se imponha a pena da respectiva qualificadora, aumentada em 1/3 (um terço) em razão da violência doméstica. A Lei nº 14.188/2021, no entanto, não inseriu disposição semelhante. A qualificadora do § 13, aplicável no caso de lesão corporal simples, cede, se for o caso, seu lugar aos §§ 1º, 2º ou 3º, e não há disposição que determine o aumento da pena porque a lesão, qualificada na forma daqueles dispositivos, foi praticada no âmbito doméstico ou familiar contra a mulher ou por menosprezo ou discriminação à condição de mulher. Nesse caso, a circunstância especial deve ser considerada na aplicação da pena-base, considerando-se que a violência doméstica contra a mulher possui uma reprovabilidade mais acentuada que a violência doméstica contra homem, exatamente por reforçar a discriminação de gênero, que fomenta uma violência mais incisiva sobre um grupo vulnerável.

Em nenhuma situação se admite o acordo de não persecução penal (art. 28-A do CPP), seja em razão da sua proibição para crimes cometidos com violência ou grave ameaça, seja em face da sua não aplicação para delitos contra a mulher por razões da condição de sexo feminino (art. 28-A, §2º, IV, do CPP).

Em tese, pela pena mínima, seria admissível a suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei n. 9.099/1995). Todavia, para os crimes praticados em contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher, o art. 41 da Lei nº 11.340/2006 proíbe a suspensão condicional do processo (v. Súmula 536 do STJ). Para as situações de lesão corporal por menosprezo ou discriminação à mulher, fora do contexto da Lei nº 11.340/2006, em tese seria cabível o benefício, todavia deve-se atentar para a presença dos requisitos subjetivos, diante da motivação discriminatória. A interpretação sistemática com o art. 41 da Lei n. 11.340/2006 e com o art. 28-A, § 2º, inc. IV, do CPP, sinaliza que crimes com motivação discriminatória possuem uma gravidade mais acentuada, de forma que os motivos e as circunstâncias do crime não autorizam a concessão do benefício (Lei nº 9.099/1995, art. 89, caput, c/c Código Penal, art. 77, II). Por exemplo, há diretriz para a não utilização da suspensão condicional do processo para a resolução de casos de racismo, “pois desproporcional e incompatível com a infração penal dessa natureza, violadora de valores sociais” (MPSP, Aviso n. 206/2020 da PGJ).

Em relação à ação penal, vale relembrar que tanto a lesão corporal leve (caput), quanto a lesão corporal em contexto de violência doméstica (§ 9º) praticada contra vítima homem, são crimes sujeitos à ação pública condicionada à representação, por força do art. 88 da Lei nº 9.099/1995. Quando se tratar do crime do § 13 em contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher, a ação penal será pública incondicionada, diante do regramento do art. 41 da Lei nº 11.340/2006. Todavia, na hipótese de crime de lesão corporal do § 13 fora do contexto de violência doméstica, por menosprezo ou discriminação à condição da mulher, não será possível realizar-se analogia in malam partam; portanto, a ação penal será pública condicionada à representação.

Verifica-se que a nova legislação traz uma significativa exasperação da pena, que passa a ser de 1 a 4 anos. Aparentemente, a elevação é feita para se assegurar que a lesão corporal tenha pena mais elevada que a violência psicológica. Esta elevação de pena pode trazer alguns efeitos positivos na prática. Por exemplo, a antiga pena mínima de três meses do § 9º virtualmente inviabilizava a efetiva aplicação do art. 152, parágrafo único, da Lei de Execuções Penais, introduzido pela Lei Maria da Penha, que prevê que “Nos casos de violência doméstica contra a mulher, o juiz poderá determinar o comparecimento obrigatório do agressor a programas de recuperação e reeducação”. Isso porque o breve tempo de pena não permitia a inclusão do apenado em programa reflexivo, que usualmente exigem alguns meses para sua realização (além do eventual tempo em lista de espera). Agora, estas intervenções serão mais factíveis na execução penal.

 

2. ART. 147-B DO CÓDIGO PENAL: VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA CONTRA A MULHER

Art. 147-B. Causar dano emocional à mulher que a prejudique e perturbe seu pleno desenvolvimento ou que vise a degradar ou a controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação:

Pena — reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa, se a conduta não constitui crime mais grave.

2.1. Considerações iniciais

Embora a Lei Maria da Penha contemple a violência psicológica no art. 7º, inc. II, até a entrada em vigor da Lei nº 14.188/2021 não havia no ordenamento jurídico brasileiro um tipo penal correspondente. Era contraditório constar expressamente essa forma de violência em uma das leis mais conhecidas e importantes do país, que a define como uma “violação dos direitos humanos” (art. 6º) e, ao mesmo tempo, a conduta correspondente não configurar necessariamente um ilícito penal. Diversas condutas consistentes em violência psicológica – como manipulação, humilhação, ridicularização, rebaixamento, vigilância, isolamento – não configuravam, na imensa maioria dos casos, infração penal. Apesar de serem ilícitos civis, não configuravam crime. Não raras vezes, vítimas compareciam perante autoridades para registrar boletins de ocorrência por violência psicológica e eram informadas de que a conduta não configurava infração penal (sequer contravenção).

A ausência de tipificação também dificultava o deferimento de medidas protetivas de urgência, pois, embora os tribunais superiores e o art. 24-A da Lei Maria da Penha permitam a medida protetiva civil autônoma, ainda há, lamentavelmente, muita resistência em se conceder instrumentos de proteção divorciados da infração penal, de um registro de boletim de ocorrência ou procedimento criminal.

Com a inserção do art. 147-B no Código Penal, essa lacuna é preenchida e passa a ser crime praticar violência psicológica contra a mulher. Tutela-se, no novel crime, o direito fundamental “a uma vida livre de violência, tanto na esfera pública como na esfera privada” (Convenção de Belém do Pará, Decreto n. 1.973/1996, art. 3º), em especial a liberdade da ofendida de viver sem medo, traumas ou fragilidades emocionais impostos dolosamente por terceiro.

A pena cominada ao delito admitiria a aplicação de ambos os benefícios da Lei n. 9.099/1995 (transação penal e suspensão condicional do processo). Para o contexto de violência doméstica contra a mulher são vedados estes benefícios, cf. art. 41 da Lei nº 11.340/2006 (Súmula 536 do STJ) e, para os demais casos, caberá avaliar a presença dos requisitos subjetivos. Eventualmente admitida a transação penal, fica inviabilizado o acordo de não persecução penal, nos exatos termos do art. 28-A, § 2º, inc. I, do CPP.

De qualquer forma, tão ou mais importantes do que as consequências jurídicas para o agressor, deve o operador ficar atento para garantir a proteção da mulher, estabelecendo-se medidas que assegurem sua segurança, intimidade, privacidade, mesmo que a infração admita algum benefício despenalizador. De certo modo, pecou o legislador.

2.2. Sujeitos do crime

O crime é comum, razão pela qual pode ser cometido por qualquer pessoa, homem ou mulher.

Quanto ao sujeito passivo, o crime é próprio, só podendo figurar como ofendida a mulher. Como mencionado acima, inclui-se na tutela penal a mulher transgênero, ainda que não tenha se submetido a cirurgia de redesignação sexual ou alterado o nome e sexo no registro civil. Basta que se trate de pessoa com identidade de gênero feminina.

2.3. Conduta, resultado e nexo de causalidade

O legislador, de forma curiosa, iniciou a descrição típica indicando o resultado e, em seguida, traz uma relação exemplificativa de condutas que podem causar o resultado. O resultado típico é “causar dano emocional à mulher que a prejudique e perturbe seu pleno desenvolvimento ou que vise a degradar ou a controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões”. O resultado central é “causar dano emocional à mulher”, já que as locuções seguintes são predicados alternativos do dano emocional.

As condutas executivas vêm em seguida: mediante ameaça (promessa de mal injusto e grave), constrangimento (insistência importuna), humilhação (rebaixamento moral), manipulação (manobra para influenciar a vontade), isolamento (impedimento da convivência com outras pessoas), chantagem (pressão sob ameaça de utilização de fatos criminosos ou imorais, verdadeiros ou falsos), ridicularização (escarnecimento, zombaria, que não passa de uma forma de humilhação), limitação do direito de ir e vir (restrição da livre movimentação) ou qualquer outro meio que cause prejuízo à saúde psicológica e autodeterminação. Por esta última fórmula analógica estende-se o tipo a quaisquer outras condutas que possam interferir na saúde psicológica e no exercício de se decidir. Portanto, o rol de comportamentos é meramente exemplificativo.

Nota-se que a redação do tipo penal é muito semelhante à do art. 7º, inc. II, da Lei nº 11.340/2006. Há, contudo, determinados meios de praticar a violência psicológica que não foram repetidos no art. 147-B. De fato, o dispositivo da lei especial menciona, por exemplo, vigilância constante, perseguição contumaz e violação de intimidade, que propositalmente não compõem o tipo penal da violência psicológica para evitar sobreposição com o comportamento incriminado no art. 147-A do CP (crime de perseguição ou stalking).

A violência psicológica é uma forma de slow violence, uma violência cumulativa que gera, de forma silenciosa e invisível, uma progressiva redução da esfera de autodeterminação da mulher, com abalos emocionais significativos. São exemplos de danos psicológicos as crises de choro, angústia, flashbacks (rememoração constante), pesadelos, insônia, irritabilidade, distúrbios alimentares, hipervigilância (v.g., medo de andar em locais públicos), dores crônicas, medo de iniciar novos relacionamentos afetivos, incapacidade de tomar decisões relevantes, perda de concentração e memória, redução da capacidade laborativa (absenteísmo, desemprego), indução ao alcoolismo e outros (SILVA; COELHO; CAPONI, 2007; OMS, 2012; RIBEMBOIM, 2012; CAMPOS; ZANELLO, 2016; SAAD, TEIXEIRA, 2017; PINHEIRO, 2019). Usualmente, uma sucessão de pequenos atos de controle coercitivo e manipulação reduzem a capacidade de resistência da vítima para adaptar-se à situação de violência, que ao final vem paralisar sua reação. Portanto, um dos maiores desafios da violência psicológica é dar-lhe visibilidade, pois a própria vítima usualmente tem dificuldades de reconhecer que está diante de uma situação abusiva, apesar das evidentes consequências negativas à sua qualidade de vida. Como destacam Silva, Coelho e Caponi (2007, p. 101):

Dificilmente, a vítima procura ajuda externa nos casos de violência psicológica. A mulher tende a aceitar e justificar as atitudes do agressor, protelando a exposição de suas angústias até que uma situação de violência física, muitas vezes grave, ocorra. […] A prevenção da violência psicológica pode ser pensada como uma estratégia de prevenção da violência de modo geral, isto é, não só da violência familiar, mas também da institucional e social. O fato de uma pessoa crescer e desenvolver-se numa família violenta pode repercutir na forma de aprendizado de solução de problemas, produzindo um padrão de comportamento violento.

Pesquisa realizada por Carvalho e Oliveira (2017, p. 7) documentou que “a violência doméstica comumente afeta a saúde mental das mulheres vitimadas”, em alguns locais indicando que até 48% das mulheres que sofreram violência doméstica indicam ter sua saúde mental afetada. Comparando as mulheres que sofreram e as que não sofreram violência doméstica, os autores elaboraram o quadro abaixo correlacionando o agravo ao estado emocional da mulher em razão da violência doméstica (CARVALHO; OLIVEIRA, 2017, p. 8):

Violência Doméstica nos últimos 12 meses
NãoSim
Frequentemente consegue se concentrar65,6%51.1%
Frequentemente consegue dormir bem68.6%56,7%
Frequentemente consegue tomar decisões74,3%58,3%
Frequentemente se sente estressada42,8%60,6%
Frequentemente se sente feliz74,5%50,6%

 

O dano psíquico e a violência psicológica não se confundem. Segundo Machado (2013, p. 189), a “violência psíquica seria causadora de uma patologia médica; enquanto a psicológica não poderia gerar qualquer tipo de patologia somática, estando restrita ao campo do sofrimento não qualificável enquanto doença”. No mesmo sentido é a lição de Pinheiro (2019, p. 178):

[…] o dano psíquico implica a existência, nele mesmo, de um “transtorno mental”, como consta da classificação internacional de doenças (DSM, CID) […] o dano psíquico distingue-se do sofrimento por inserir em seu conceito a noção de lesão às faculdades mentais, incluindo o afetivo, enquanto o dano moral não implica em conformação patológica. As vítimas de agressões crônicas, como é o caso da maioria das mulheres que sofre violência doméstica, apresentam níveis mais baixos de sintoma de Transtorno de Estresse Pós-traumático (TEPT), em relação à violação sexual (sintoma agudo).

Como aprofundaremos adiante (seção 2.8), caso advenha uma patologia médica haverá o crime de lesão corporal à saúde psicológica; para o dano emocional (sem a correspondente patologia) é que haverá o crime do art. 147-B. O dano emocional corresponde a um sofrimento emocional significativo, a inflição dolosa de dor e angústia, com potencial de influenciar o desenvolvimento cognitivo, social, emocional e afetivo da mulher.

Comentando o tema do dano psíquico (como forma de lesão corporal à saúde psicológica), Saad e Teixeira (2017) discutem a conveniência de as ciências psicológicas elaborarem uma tabela de dano emocional que discrimine os diversos graus: levíssimo, leve, moderado, grave e total. O novo tipo penal deixa de transcrever a hipótese de “diminuição da autoestima” (disposta no art. 7º, inc. II, da Lei nº 11.340/2006), indicando que a configuração criminal da conduta exigiria algo a mais que apenas essa redução da autoestima, como um dano levíssimo, portanto alcançado pelo princípio da fragmentariedade do Direito Penal. Todavia, o novo crime de violência psicológica não exige um estado total e catatônico de dano psicológico, mas uma interferência significativa na integridade psicológica, de forma que outras modalidades de dano leve e moderado podem ser contempladas. Em suas modalidades mais graves, é possível a configuração do transtorno de estresse pós-traumático (CID 10 F43.1), que é forma de lesão à saúde psicológica (e não o crime do art. 147-B).

Estudos na psicologia e nas neurociências indicam que a persistência da violência psicológica, consistente nos comportamentos já indicados no art. 7º, inc. II, da Lei nº 11.340/2006 e, agora, no art. 147-B, gera o incremento do risco de danos psicológicos (v. CAMPOS; ZANELLO, 2016). Nesse sentido (RIBEMBOIM, 2012, p. 71):

[…] a violência afeta o desenvolvimento cognitivo, social, emocional e afetivo da mulher. São comuns os sentimentos de insegurança e impotência, a fragilização das relações sociais decorrentes de seu isolamento, e os estados constantes de tristeza, ansiedade e medo.

Novidade no Brasil, a tipificação da violência psicológica tem correspondentes no direito comparado. Por exemplo, em Portugal, desde 2007, há o crime de “violência doméstica”, previsto no art. 152 do Código Penal, que pune com pena de 1 a 5 anos de prisão a conduta de “Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais”. Ou seja, a conduta de infligir maus tratos psíquicos é uma modalidade autônoma do crime de violência doméstica. Na Espanha, o art. 153 do Código Penal também tipifica um crime semelhante de violência psicológica, consistente em “causar menoscabo psíquico” ou “ou bater ou maltratar outra pessoa sem causar ferimentos” no âmbito das relações íntimas de afeto.

Na Inglaterra, o § 76 do Serious Crime Act 2015 criou o delito de “controlling or coercive behaviour in an intimate or family relationship”. O crime exige, basicamente, comportamento repetitivo ou contínuo de controle e um “efeito sério” sobre a vítima. Na França, há o crime de “assédio moral conjugal”, previsto no art. 222-33-2-1 do Código Penal, que exige atos repetidos que tenham o efeito de degradar suas condições de vida gerando uma alteração da saúde física ou mental.

Em 2016, refletindo sobre a eventual criação de um tipo penal de violência doméstica, Ela Wiecko Wolkmer de Castilho afirmava que esse crime seria desejável, dada a insuficiência do crime de lesão corporal para abranger todas as modalidades de dano psicológico e a necessidade de se “atender à demanda da Organização dos Estados Americanos pela produção de estatísticas desagregadas por espécies de violências, como violência intrafamiliar, sexual e psicológica, entre outros” (CASTILHO, 2016, p. 58).

Por outro lado, em países anglófonos que introduziram a criminalização do controle coercitivo, argumenta-se que haveria uma inabilidade do Direito, tanto na teoria quanto na prática, em efetivamente reconhecer a complexidade da violência psicológica, gerando eventualmente consequências negativas à própria mulher. Por exemplo, Walklate e Fitz-Gibbons (2021, p. 1) alertam para o risco de “responsabilizar as mulheres que são vítimas por essas mesmas experiências [de controle coercitivo] e dar sustentação ao poder do Estado patriarcal em responder a tal violência”. Portanto, a nova legislação deve ser aplicada com esta mesma cautela de não trazer nova invisibilidade a experiências de violência psicológica pelas mulheres, frustrando expectativas de proteção.

O tipo penal não se restringe aos âmbitos afetivo, doméstico e familiar de que trata a Lei Maria da Penha (art. 5º, inc. I, II e III). Abrange outras formas de violência contra a mulher ocorridas no âmbito estatal ou comunitário. O art. 147-B é mais amplo, aplicando-se a diversas formas de violência de gênero contra a mulher, na linha do que estabelece a Convenção de Belém do Pará (Decreto n. 1.973/1996), que dispõe no art. 2º:

Entende-se que a violência contra a mulher abrange a violência física, sexual e psicológica:

a. ocorrida no âmbito da família ou unidade doméstica ou em qualquer relação interpessoal, quer o agressor compartilhe, tenha compartilhado ou não a sua residência, incluindo-se, entre outras formas, o estupro, maus-tratos e abuso sexual;

b. ocorrida na comunidade e cometida por qualquer pessoa, incluindo, entre outras formas, o estupro, abuso sexual, tortura, tráfico de mulheres, prostituição forçada, seqüestro e assédio sexual no local de trabalho, bem como em instituições educacionais, serviços de saúde ou qualquer outro local; e

c. perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, onde quer que ocorra.

O crime pode ocorrer, portanto, em estabelecimentos de ensino, serviços de saúde (violência obstétrica), templos religiosos, locais públicos, ambientes de trabalho, serviços de atendimento à mulher. E, além das tradicionais condutas de controle, isolamento, humilhação por parte de parceiros, a descrição ampla do tipo penal permite, por exemplo, que se considerem violência psicológica condutas como a de autoridade policial que ridiculariza e humilha a mulher durante atendimento ou a pressiona a não registrar ocorrência e a “fazer as pazes com o agressor”, desde que se gere um dano emocional.

Condutas como ameaças, humilhações ou insultos que não derivem das relações de gênero podem configurar outras infrações penais, como constrangimento ilegal, ameaça ou injúria.

2.4. Voluntariedade

O crime é doloso quanto à conduta de praticar atos de violência psicológica. O agressor, com consciência e vontade, ameaça, constrange, humilha, manipula, isola, chantageia, ridiculariza, limita o direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação.

Entendemos que, em relação ao resultado, este pode ocorrer tanto a título de dolo quanto de culpa. Na maioria das situações, os atos de violência psicológica serão praticados com a finalidade imediata de afirmar o autoritarismo masculino, por puro exercício de poder e suposta superioridade, de forma que o agente prevê o resultado (dano emocional) e lhe é indiferente, o que configura o dolo eventual. Sendo a violência psicológica um ilícito jurídico (desde 2006, com o advento da Lei Maria da Penha), o seu potencial de gerar dor, sofrimento e angústia à mulher, no contexto das relações domésticas, familiares e íntimas de afeto é um verdadeiro fato notório. Portanto, aquele que pratica dolosamente tais atos de ameaça, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação da liberdade ou similares, não poderá afirmar que não sabia que tais condutas tinham o potencial de causar danos emocionais. O contexto de abusividade relacional será indicativo posição de indiferença quanto ao resultado.

Essa conclusão de dolo quanto à conduta e dolo/culpa quanto ao resultado não deve causar espécie. Já está presente em delitos diversos (mas semelhantes), como na lesão corporal. O ofensor responde pelo crime de lesão corporal de natureza grave quando da conduta resultar os eventos descritos nos §§1º e 2º do art. 129, em regra não importando se queridos ou não pelo agente, desde que previsível (que não se confunde com previsto).

2.5. Consumação e tentativa

O crime se consuma com a provocação do dano emocional à vítima. Cuida-se de delito material. Como dito, esse resultado, contudo, pode ser perseguido ou não pelo agente.

O tipo penal do art. 147-B não exige habitualidade (reiteração de condutas), consumando-se com apenas um ato, cuja gravidade concreta já cause um dano emocional significativo. Certamente, relações abusivas e violentas que se prolongam no tempo gerarão danos emocionais e, portanto, configurarão o delito. Nessa situação, não sendo possível separar atos individualizados de danos emocionais específicos, o conjunto dos atos abusivos será considerado como uma conduta única. Caso haja reiteradas condutas de violência psicológica, não é necessário que todas sejam imputadas individualmente, sob pena de inviabilizar a denúncia do Ministério Público. Basta que se faça referência ao período aproximado em que ocorreram as condutas e que os danos emocionais sejam comprovados. Este entendimento já é utilizado pelos Tribunais para o caso de estupros reiterados no âmbito doméstico contra pessoa vulnerável (v.g., STJ, RHC 129.490/BA, rel. Min. Laurita Vaz, 6ª T., j. 25/05/2021). A prescrição será regulada pela prática do último ato de violência psicológica individualizado.

Embora a tentativa seja, em tese, possível, é improvável sua configuração. Na prática, ou se tem a execução de atos como humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ou há somente preparação para sua prática. Dificilmente alguém já em atos de execução do crime é impedido de provocar o dano emocional por circunstâncias alheias à sua vontade.

2.6. Ação penal

A ação penal é pública incondicionada, não dependendo o Ministério Público do pedido-autorização da vítima.

2.7. Standard probatório

A prova do resultado pode ser feita pelo depoimento da ofendida, por depoimentos de testemunhas, relatórios de atendimento médico, relatórios psicológicos ou outros elementos que demonstrem o impacto do crime para o pleno desenvolvimento da mulher, o controle de suas ações, o abalo de sua saúde psicológica ou algum impedimento à sua autodeterminação. Considerando que o resultado do crime não é a lesão à saúde psíquica, mas o dano emocional (dor, sofrimento ou angústia significativos), laudos técnicos não são necessários.

Importante alertar que a instrução probatória não pode ser campo fértil para revitimização e indevida invasão da vida privada, com detalhamentos desnecessários acerca do dano emocional, do grau de humilhação, da dor sofrida, se a própria conduta criminosa empregada pelo agressor já está imbuída de desonra, descrédito e menosprezo à dignidade e ao valor da mulher como pessoa.

A prova deverá ter por fim o atendimento integral à mulher em situação de violência doméstica, de sorte a reduzir sua revitimização e as possibilidades de violência institucional, consubstanciadas em sucessivas oitivas e pleitos perante juízos diversos.

Em que pese na esfera penal não se admitir a presunção do resultado, vale relembrar que, segundo o STJ, em contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher não há necessidade de prova do dano à esfera moral para efeito de reparação civil, tratando-se de dano moral presumido, decorrente da própria conduta violenta (propter rem). Com efeito, a Terceira Seção Tribunal da Cidadania decidiu que, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, é possível a fixação de valor mínimo indenizatório a título de dano moral, desde que haja pedido expresso da acusação ou da parte ofendida, ainda que não especificada a quantia, e independentemente de instrução probatória (STJ, REsp 1.643.051/MS, rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, j. 28/02/2018). A Corte Cidadã, com fundamento nos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III), da igualdade (CF, art. 5º, I) e da vedação a qualquer discriminação atentatória dos direitos e das liberdades fundamentais (CF, art. 5º, XLI), e em razão do dever jus-fundamental de criar “mecanismos para coibir a violência no âmbito [das] relações [de família]” (CF, art. 226, § 8º), tem avançado na maximização dos princípios e das regras do subsistema jurídico introduzido em nosso ordenamento com a Lei nº 11.340/2006, vencendo a timidez hermenêutica na censura à violência doméstica e familiar contra a mulher, como deixam claro os verbetes sumulares n. 542, 588, 589 e 600. Ou seja, o Tribunal da Cidadania presume que a prática de atos de violência doméstica e familiar contra a mulher gera abalos emocionais significativos, a justificar a fixação de danos morais.

Refutar, com veemência, a violência contra as mulheres implica defender sua liberdade (para amar, pensar, trabalhar, se expressar), criar mecanismos para seu fortalecimento, ampliar o raio de sua proteção jurídica e otimizar todos os instrumentos normativos que de algum modo compensem ou atenuem o sofrimento e os malefícios causados pela violência sofrida na condição de mulher. A evolução legislativa ocorrida na última década em nosso sistema jurídico evidencia uma tendência, também verificada em âmbito internacional, a uma maior valorização e legitimação da vítima, particularmente a mulher, no processo penal.

Embora a decisão do STJ trate da violência no âmbito doméstico, o mesmo entendimento deve ser aplicado às demais formas de violência de gênero contra a mulher. Assim, na hipótese de violência psicológica cometida por médico, professor ou autoridade, por exemplo, também deve haver o direito à reparação nos termos da decisão. Aliás, é importante mencionar que a vítima tem capacidade postulatória para solicitar a reparação, como salienta Erica Canuto (2021, p. 68):

Registre-se um ponto interessante: é que, de maneira inédita, o Superior Tribunal de Justiça também deu capacidade postulatória à mulher para formular o pedido de indenização por danos morais in re ipsa. Então, ela pode pedir no Boletim de Ocorrência no termo de declarações ou em qualquer outro expediente que conste da ação penal, e mesmo que o Ministério Público não formule o pedido, há suprimento da postulação.

2.8. Conflito aparente de normas

O crime o art. 147-B tem como resultado causar dano emocional, ou seja, dor, sofrimento ou angústia. Como já destacado acima, se houver lesão à saúde psicológica comprovada por exame e demonstrado nexo de causalidade (indicando o respectivo CID), haverá o crime do art. 129 do Código Penal.  Quando leve, será o §13. Mas pode ser grave, quando, por exemplo, causar a incapacidade da vítima para exercer suas ocupações habituais por mais de trinta dias, lembrando que se entende por ocupação habitual qualquer atividade corporal costumeira, tradicional, não necessariamente ligada a trabalho ou ocupação lucrativa, devendo ser lícita, não importando se moral ou imoral, podendo ser intelectual, econômica, esportiva etc. Também haverá lesão grave se a doença psicológica gerar ideação suicida, diante do risco à vida.

O preceito secundário do art. 147-B contém subsidiariedade expressa: aplicam-se as penas da violência psicológica se a conduta não caracteriza crime mais grave. Dessa forma, um estupro, por exemplo, que sem nenhuma dúvida provoca intenso dano emocional, absorve este crime, e a magnitude dos efeitos psicológicos na vítima deve ser analisada na imposição da pena-base, em razão das circunstâncias do crime.

Todavia, é possível que o novo crime do art. 147-B venha absorver infrações penais menos graves. Será o caso, por exemplo dos crimes de ameaça, constrangimento ilegal ou mesmo da contravenção penal de vias de fato, que inegavelmente carrega o sentido comunicativo de humilhação e constrangimento, uma demonstração de poder sobre a vítima. Como visto acima, em outros países, a agressão física sem lesão é expressamente indicada como modalidade do crime de violência psicológica em ambiente doméstico.

Da mesma forma, o dano simples poderá ser absorvido pela violência psicológica. Usualmente, no contexto doméstico e familiar, a conduta de destruir objetos no interior da residência não tem por finalidade primária gerar prejuízo patrimonial, mas sim ser uma exibição de poder e autoridade, representando a possibilidade de dispor sobre a existência de objetos com valor emocional à mulher (ligados à esfera privada, o locus atribuído à mulher). Não raro o dano doméstico possui um sentido comunicativo de ameaça e constrangimento, de forma que o comportamento agressivo significa que o ofensor tem o poder de dispor sobre tudo que está na casa, inclusive da própria mulher, vista como um objeto que pertence ao homem e não deve questionar sua autoridade. Especialmente se o dano é praticado na presença da mulher, se tratará de inegável evento estressante, com potencial de gerar danos emocionais. Nesses contextos, em regra, o agente danifica objetos de estima da vítima, relacionados ao seu trabalho (roupas, relatório de trabalho, utensílios) ou aos seus filhos, como uma forma de demonstração de poder. O ataque não é patrimonial, mas à autoestima e autonomia da mulher.

A situação mais delicada de avaliação de concurso de crimes será frente ao crime de perseguição ou stalking (art. 147-A), especialmente porque este delito é sujeito a ação penal pública condicionada à representação (§ 3º), apesar de ter pena mais elevada que a violência psicológica, diante de causa de aumento de pena (§ 1º, II).

Como já sinalizado, os núcleos verbais de violência psicológica indicados no art. 7º, inc. II, da Lei n. 11.340/2006 foram divididos entre estes dois delitos, de forma que as condutas de vigilância constante, perseguição contumaz e violação de intimidade serão reconduzidas ao crime de perseguição, enquanto as condutas de constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem e ridicularização, que geraram danos emocionais, serão reconduzidas ao crime de violência psicológica. O crime de perseguição exige reiteração (ao menos dois episódios), enquanto o crime de violência psicológica não exige a reiteração. O crime de violência psicológica exige geração de dano emocional, enquanto o crime de perseguição não exige este resultado específico, mas sim uma ameaça à integridade física ou psíquica, restrição à capacidade de locomoção ou invasão ou perturbação à esfera de liberdade ou privacidade. Apesar de a restrição à liberdade de locomoção estar presente em ambos os delitos, no crime de perseguição ela não é a conduta imediata do agente, e sim o resultado, ou seja, a própria vítima limita sua circulação pelo receio da conduta perseguidora do ofensor.

Ainda assim, há aparente sobreposição dos crimes, especialmente em relação à conduta de ameaçar, presente na descrição de ambos os delitos. No crime do art. 147-A, a conduta será de perseguir reiteradamente (que é de ação múltipla, podendo realizar-se por diversas condutas, ainda que isoladamente atípicas) e o resultado será a ameaça à integridade física ou psicológica. No crime do art. 147-B, a ameaça será a conduta, com o resultado do dano emocional. O critério diferenciador dos delitos é a habitualidade (perseguição) e a ocorrência ou não de dano emocional (violência psicológica).

Em tese, será possível o concurso efetivo destes dois crimes, quando cometidos em contextos distintos. Logo, se o casal, por exemplo, está separado, e o ofensor persegue reiteradamente a vítima através de ameaças, que a intimidam, restringem sua liberdade de locomoção e geram um dano emocional à vítima (sofrimento, angústia significativos), estando presente o mesmo contexto fático, considerando que ambos os delitos estão inseridos no mesmo título “dos crimes contra a liberdade pessoal”, será possível que o crime mais grave (a perseguição) venha absorver o menos grave (a violência psicológica), sendo o dano emocional avaliado na fixação da pena base. Com a necessária atenção de que a perseguição é condicionada à representação da vítima e a violência psicológica é incondicionada. Caso não exercido o direito em relação ao crime de ação penal pública condicionada, pode o Estado perseguir o crime que seria absorvido.

Não será possível aplicar-se a agravante da violência contra a mulher, prevista no Código Penal, art. 61, inc. I, alínea “f”, pois esta já é elementar do crime de violência psicológica, que apenas pode ser praticado contra a mulher.

 

3. ALTERAÇÃO DO ART. 12-C DA LEI Nº 11.340/2006 (AFASTAMENTO DO AGRESSOR DO LAR, DOMICÍLIO OU LOCAL DE CONVIVÊNCIA COM A OFENDIDA)

Verifica-se que a Lei nº 14.188/2021 acrescentou ao caput do art. 12-C da Lei nº 11.340/2006 a locução “ou psicológica”. A alteração é pequena, mas muito significativa, pois deixa claro que o risco à integridade psicológica também é hipótese suficiente (e necessária) de deferimento das medidas protetivas de urgência.

Praticada uma infração penal que se insira no conceito de violência doméstica e familiar contra a mulher (art. 5º da Lei nº 11.340/2006), é possível ao juiz conceder medidas protetivas de urgência buscando impedir que a ofendida seja alvo de novos atos de violência.

Uma das medidas estabelecidas no art. 22 da Lei nº 11.340/2006 é o afastamento do agressor do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida (inc. II). Segundo o disposto no caput do citado dispositivo, a medida deve ser aplicada pelo juiz, sendo que, no geral, segue-se o trâmite estabelecido nos art. 10 a 12 e 18 a 21 da Lei nº 11.340/2006, dos quais destacamos especificamente o inc. III do art. 12, e o caput do art. 18, segundo os quais, feito o registro da ocorrência, deverá a autoridade policial remeter, no prazo de quarenta e oito horas, expediente apartado ao juiz com o pedido da ofendida para a concessão de medidas protetivas de urgência, e, recebido o expediente, caberá ao juiz decidir no mesmo prazo.

Ocorre que o caso concreto pode estar rodeado de circunstâncias que tornem o prazo legal muito extenso, aumentando o risco de ineficácia da medida eventualmente concedida. Para contornar esse cenário de proteção deficiente, a Lei nº 13.827/2019 incluiu na Lei Maria da Penha o art. 12-C, para prever a possibilidade de autoridades policiais, subsidiariamente ao magistrado, concederem medidas protetivas de urgência. Este dispositivo é objeto de vívida discussão teórica quanto à admissibilidade de delegação de funções jurisdicionais a autoridades policiais.

Em resumo, o dispositivo reconhece a situação em que a atualidade ou a iminência de risco à vida ou à integridade física ou psicológica da vítima impõe o imediato afastamento do agressor do lar. Risco atual é o que está em curso, como no caso de uma lesão corporal que pode se reiterar. Iminente é o risco que está prestes a ocorrer, como em uma ameaça em que haja elementos indicando a possibilidade concreta de que o agente pode cometer o mal injusto e grave que promete.

O advérbio imediatamente não deixa dúvida: constatada a atualidade ou a iminência do perigo à vida ou à integridade física ou psicológica, a medida protetiva deve ser concedida no mesmo instante, sem hiato temporal. Por isso, uma vez registrada a ocorrência, deve a autoridade policial providenciar incontinenti a remessa do pedido de medida protetiva à autoridade judicial, não se aplicando o prazo de quarenta e oito horas estabelecido no art. 12, inc. III. Da mesma forma, a autoridade judicial deve decidir imediatamente, não dentro do prazo de quarenta e oito horas que estabelece o art. 18.

De fato, não faria sentido inserir na lei um dispositivo que determina a imediata concessão da medida se o trâmite do pedido devesse permanecer submetido à regra existente anteriormente. Dessa forma, os mencionados prazos de quarenta e oito horas se aplicam apenas às situações em que não se trata de perigo atual ou iminente à vida ou à integridade física ou psicológica da mulher vítima de violência doméstica e familiar.

O art. 12-C permite que outros agentes, além da autoridade judicial, concedam a medida protetiva de afastamento do lar ou da convivência com a ofendida. Não se trata, todavia, de atuação simultânea, mas sim subsidiária, como se extrai claramente do dispositivo legal.

Com efeito, no caso de risco atual ou iminente à vida ou à integridade física ou psicológica da vítima, a lei estabelece que, em primeiro lugar, a autoridade judicial aplique a medida de afastamento. Caso o local não seja sede de comarca, isto é, caso se trate de um município (normalmente de pequeno porte) que não conte com varas judiciais e faça parte de comarca instalada em outro município, a medida pode ser concedida pelo delegado de polícia, que, aliás, ao receber a comunicação do crime tem mais condições de avaliar, ainda que superficialmente, as condições físicas e psicológicas da vítima e a real situação a que está submetida. Finalmente, caso o município não seja sede de comarca e, por alguma circunstância, não haja delegado disponível no momento da comunicação do crime, a medida pode ser concedida pelo policial.

Neste ponto, indaga-se: qual a extensão do vocábulo policial empregado pela lei?

Não há nenhuma dúvida de que o policial civil (investigador ou quem exerce função semelhante) está inserido na permissão legal. Trata-se, afinal, da primeira figura que se apresenta naturalmente ante a ausência do delegado de polícia. Mas, dado o caráter genérico da expressão adotada pelo legislador, e tendo em vista a situação de extrema urgência que fundamenta a concessão da medida, é razoável concluir que qualquer policial civil ou militar (ou mesmo federal, embora dificilmente ocorra crime de violência doméstica de atribuição federal) que tome conhecimento do crime pode determinar o afastamento do lar, respeitada, evidentemente, a ordem de subsidiariedade a que já nos referimos. Em termos práticos, a norma apenas possui aplicabilidade às comarcas de interior e de difícil acesso. Em havendo sistema de processo eletrônico, que permita a imediata comunicação ao magistrado, há sempre preferência para a decisão em sede jurisdicional.

Essa conclusão se reforça pelo disposto no § 1º do art. 12-C, segundo o qual a medida decretada pelo delegado de polícia ou pelo policial deve ser comunicada em no máximo vinte e quatro horas ao juiz, que, em igual prazo, deve decidir se a mantém ou se a revoga. Nota-se, portanto, que a decisão tomada pela autoridade policial ou por quem a substitui não se torna definitiva sem o aval quase imediato da autoridade judicial competente, o que minimiza os riscos de que uma medida eventualmente equivocada prejudique gravemente quem foi afastado do lar. Deve-se ter em mente que o art. 12-C traz uma distinção de gravidade em relação à já normalmente delicada situação de violência doméstica e familiar: o atual ou iminente perigo para a vida ou a integridade física ou psicológica da vítima, o que nos auxilia a compreender por que o legislador decidiu atribuir a diversos agentes públicos o poder de impor imediatamente o afastamento do agressor do lar conjugal. A premência da situação justifica o diferimento da análise judicial.

A nova regra também tem um relevante efeito enquanto parâmetro decisório aos magistrados. Infelizmente, diversas pesquisas documentavam uma postura restritiva do sistema de justiça no deferimento das medidas protetivas de urgência, minimizando a gravidade de atos de violência psicológica, como insultos reiterados, atos de ridicularização ou isolamento da vítima de sua família ou amigos, bem como adotando uma postura “familista” em se evitar o afastamento do homem do lar (v. DINIZ; GUMIERI, 2016; PASINATO et al., 2016). Muitas vezes, exigia-se uma “quase-feminicídio” para o deferimento da medida protetiva de urgência, remetendo-se o tema do afastamento do lar para a vara de família no caso de conflitos sem violência física. Por outro lado, a situação de o casal se separar e continuar vivendo sob o mesmo teto, em contexto conflitivo verbal, já é documentada como um fator de risco de feminicídio (ÁVILA et al., 2020).

Agora, a lei expressamente indica que o risco à integridade psicológica da mulher, mesmo sem atos de violência física, exige o imediato afastamento do ofensor do lar. Ou seja, se o relacionamento se deteriorou em atos abusivos de violência psicológica, ainda que “apenas” mediante palavras, deve haver o imediato afastamento do ofensor do lar, privilegiando-se o princípio da precaução e a proteção preventiva à integridade psicológica da mulher. Questões patrimoniais são secundárias e serão discutidas futuramente perante o juízo de família. Um casal apenas pode permanecer residindo sob o mesmo teto se ambos estiverem de acordo com esta convivência pacífica. Os índices alarmantes de violência contra a mulher no contexto brasileiro exigem que se faça uma opção política de privilegiar a precaução neste tema: na dúvida, protege-se.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A nova legislação sinaliza quanto à maior gravidade da lesão corporal em contexto de violência de gênero e dá maior visibilidade à violência psicológica, tanto na esfera criminal quanto para o deferimento de medidas protetivas de urgência.

Todavia, cumpre ressaltar que a elevação de penas ou criação de crimes, isoladamente, não possuem o condão de trazer automaticamente efeito dissuasório da prática de novos atos de violência contra as mulheres. É essencial que as novas normas penais sejam aplicadas dentro do espírito holístico da Lei Maria da Penha, que prevê a necessidade de concretização de políticas públicas de prevenção e proteção à mulher. Não se deve cair na ilusão do populismo punitivo, ofuscando a centralidade das políticas públicas de prevenção à violência contra as mulheres, que são o coração da Lei Maria da Penha.

 

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ÁVILA, Thiago Pierobom de et al. Políticas públicas de prevenção ao feminicídio e interseccionalidades. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 10, n. 2, p. 375-407, 2020. Disponível em: https://doi.org/10.5102/rbpp.v10i2.6800. Acesso em: 7 jul. 2021.

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CANUTO, Erica. Princípios especiais da Lei Maria da Penha e a garantia dos direitos fundamentais da mulher em situação de violência doméstica e familiar. Belo Horizonte: Fórum, 2021.

CARVALHO, José Raimundo; OLIVEIRA, Victor Hugo. Pesquisa de Condições Socioeconômicas e Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher PCSVDFMulher: Relatório Executivo II, Primeira Onda, 2016:  Violência Doméstica e seu Impacto no Mercado de Trabalho e na Produtividade das Mulheres. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2017.

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Fonte de referência, estudos e pesquisa:

https://meusitejuridico.editorajuspodivm.com.br/2021/07/29/comentarios-lei-n-14-1882021/


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