Negócio Jurídico e a Escada Ponteana: existência, validade e eficácia
Negócio jurídico e requisitos de existência, validade e eficácia pela teoria da Escada Ponteana
Até chegarmos ao negócio jurídico, disposto no art. 104 do Código Civil, é preciso percorrer um longo caminho. Primeiro, o negócio jurídico decorre de uma relação jurídica. É, desse modo, um ato lícito lato sensu. Isto porque decorre de fato humano caracterizado pela vontade. O fato humano, por sua vez, é fato jurídico lato sensu. Mas não vamos nos ater a isso, pelo menos nesse texto. O mais marcante do negócio jurídico é a manifestação da vontade das partes. Flávio Tartuce [1] o caracteriza como:
Negócio jurídico: relação estabelecida através da manifestação de vontade
É, pois, o negócio jurídico, o ato pelo qual as partes, deliberadamente, manifestam sua vontade acerca de determinado aspecto negocial. E podem, desse modo, observar a seguinte classificação:
- Ônus: gratuito, oneroso, bifronte e neutro;
- Formalidade: solene e não solene;
- Conteúdo: patrimonial e extra patrimonial;
- Manifestação da vontade: unilateral, bilateral e plurilateral;
- Tempo: inter vivos e causa mortis;
- Efeito: constitutivo e declarativo;
- Existência: principal e acessório;
- Exercício de direito: de disposição ou de simples administração;
É dele, então, que surgem os contratos. Ou seja, o mundo gira em torno dos negócios jurídicos. E esse instituto é, assim, o ponto principal da Parte Geral do Código Civil. Já pensou como seria o mundo sem o contrato de compra e venda, por exemplo?
Escada ponteana: degraus de existência e validade do negócio jurídico
Mas não é tão simples assim. Além da manifestação da vontade, há outros requisitos para que um negócio jurídico exista e seja válido. É necessário, então, que ele passe por alguns degraus, até que seja reputado como negócio jurídico perfeito. E que, assim, não seja inexistente, nulo ou anulável. Esses degraus fazem parte de uma escada, criada pelo jurista, filósofo, matemático, advogado, sociólogo, magistrado e diplomata brasileiro Pontes de Miranda. É a chamada Escada Ponteana.
Pontes de Miranda ensina, em sua obra Tratado de Direito Privado (composta por 60 tomos e escrita em 15 anos!), que:
“existir, valer e ser eficaz são conceitos tão inconfundíveis que o fato jurídico pode ser, valer e não ser eficaz, ou ser, não valer e ser eficaz. As próprias normas jurídicas podem ser, valer e não ter eficácia. O que se não pode dar é valer e ser eficaz, ou valer, ou ser eficaz, sem ser; porque não há validade, ou eficácia do que não é”[2].
A partir dessa construção, o negócio jurídico tem três planos, três degraus:
- plano da existência;
- plano da validade;
- plano da eficácia.
Esses planos foram esquematizados de modo a formarem uma escada:
Plano da existência do negócio jurídico
No plano da existência encontram-se os requisitos mínimos do negócio. Sem eles, torna-se inexistente o negócio jurídico. Esses requisitos formam os pressupostos de existência. Como pode um negócio existir sem que hajam agentes (quem contrata, contrata com alguém), sem um objeto, sem uma forma definida ou sem a clara manifestação da vontade das partes?
Plano da validade do negócio jurídico
Quando os requisitos do primeiro degrau forem satisfeitos, podemos passar para o plano da validade. Aqui, vale o auxílio do já citado art. 104 do Código Civil, que determina o que é necessário para a validade do negócio:
- o agente deve ser capaz, conforme o art. 1º, CC;
- o objeto deve ser lícito, possível, determinado ou determinável;
- a forma deve ser prescrita ou não defesa em lei;
- e, por último, a vontade deve ser livre, consciente e voluntária.
Uma vez ferido algum desses requisitos, o negócio se tornará nulo ou anulável. E, para saber se a aplicação é de anulabilidade ou de nulidade, é necessário fazer a leitura dos arts. 166 e 171 do Código Civil, traduzidos no esquema abaixo:
Anulado o negócio jurídico, então, as partes deverão retornar ao seu status anterior. Contudo, nos casos em que a reversão for impossível, deve-se proceder à indenização do equivalente.
I. Capacidade
Acerca da capacidade para a validade do negócio jurídico, contudo, é importante observar os textos dos art. 105, CC:
Art. 105. A incapacidade relativa de uma das partes não pode ser invocada pela outra em benefício próprio, nem aproveita aos co-interessados capazes, salvo se, neste caso, for indivisível o objeto do direito ou da obrigação comum.
É o que ocorre, por exemplo, nos casos de menor relativamente incapaz que realiza negócio jurídico, mas invoca a idade para sua anulação, quando ocultou-a de má-fé no momento da obrigação.
II. Objeto
No tocante ao objeto, por sua vez, o art. 106, CC, estabelece:
Art. 106. A impossibilidade inicial do objeto não invalida o negócio jurídico se for relativa, ou se cessar antes de realizada a condição a que ele estiver subordinado.
III. Forma
Quanto à forma, o art. 107 dispensa forma especial, exceto quanto previsto em lei. Desse modo, são exemplos de negócio jurídico solene: o pacto antenupcial e o testamento público.
Art. 107. A validade da declaração de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir.
Além disso, a escritura pública é essencial a algumas espécies de negócio jurídico, conforme se observa da redação do art. 108, CC, e do art. 109, CC:
Art. 108. Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País.Art. 109. No negócio jurídico celebrado com a cláusula de não valer sem instrumento público, este é da substância do ato.
IV. Liberalidade
Por fim, acerca da liberalidade das partes no negócio jurídico e da manifestação de vontade, é disposto no art. 110 ao art. 114, CC:
Art. 110. A manifestação de vontade subsiste ainda que o seu autor haja feito a reserva mental de não querer o que manifestou, salvo se dela o destinatário tinha conhecimento.Art. 111. O silêncio importa anuência, quando as circunstâncias ou os usos o autorizarem, e não for necessária a declaração de vontade expressa.Art. 112. Nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem.Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.Art. 114. Os negócios jurídicos benéficos e a renúncia interpretam-se estritamente.
Plano da eficácia do negócio jurídico
Por fim, no plano da eficácia, os principais elementos, chamados de acidentais, são:
- condição;
- termo; e
- encargo
Esses elementos estão relacionados com a suspensão e resolução de direitos e deveres das partes envolvidas. De acordo com Flávio Tartuce:
“Os elementos acidentais do negócio jurídico não estão no plano da sua existência ou validade, mas no plano de sua eficácia, sendo a sua presença até dispensável. Entretanto, em alguns casos, sua presença pode gerar a nulidade do negócio, situando-se no plano da validade.”[3]
I. Condição suspensiva e condição resolutiva
A condição, que deriva da vontade das partes, faz com que o negócio jurídico dependa de um evento futuro e incerto, de acordo com o art. 121 do Código Civil.
Essa condição pode ser invalidada, de acordo com o art. 122 do Código Civil, nos seguintes casos:
- condições física ou juridicamente impossíveis, quando suspensivas: Venda subordinada a uma viagem do comprador ao Sol, por exemplo.
- condições ilícitas, ou de fazer coisa ilícita: Venda dependente de um crime a ser praticado pelo comprador.
- condições incompreensíveis ou contraditórias: João celebra com José um contrato de locação residencial, sob a condição de José não morar no imóvel.
Além disso, a condição se divide em condição suspensiva e condição resolutiva. A primeira é aquela em que não se geram os efeitos jurídicos até sua implementação. Exemplo: Um pai que promete dar um carro a seu filho caso ele passe no vestibular. Enquanto o filho não passar no vestibular, a condição não se implementará, ou seja, não existirão efeitos jurídicos.
Já a condição resolutiva é aquela em que os efeitos existirão até que o evento a interrompa. Aqui, a aquisição dos direitos se opera desde logo. Por exemplo: Maria promete emprestar seu carro a Marta até que esta passe no exame de Ordem. Após a implementação da condição, o direito se extingue, de acordo com o art. 128 do Código Civil.
II. Termo
O termo condiciona o negócio jurídico a um evento futuro e certo, conforme demonstra o art. 131 do Código Civil. Ele se subdivide em termo inicial e termo final.
No termo inicial se tem o início dos efeitos negociais; suspendendo o exercício do direito, mas não sua aquisição. Por exemplo: Caio aluga sua casa de praia a José a partir do início do verão.
No termo final, se predefine o momento em que o direito se extinguirá. Por exemplo: Fábio empresta seu carro a Manoel até o fim do mês de abril.
III. Encargo
Por fim, o encargo, previsto no art. 136 do Código Civil, traz um ônus que pode ser posto ao beneficiado por um ato gratuito. Aqui, contudo, não se suspende nem a aquisição nem o exercício do direito. O art. 555 do Código Civil trata da possibilidade de o estipulador exigir o cumprimento do encargo.
É o caso, por exemplo, do donatário que doa um terreno a alguém com a condição que seja construído, em parte do terreno, um asilo.
Merece especial atenção o art. 137 do Código Civil, que trata do encargo ilícito ou impossível. Esse artigo diz que os encargos ilícitos ou impossíveis serão considerados como não escritos, exceto se o encargo constituir o motivo determinante da liberalidade, gerando a invalidade do negócio jurídico.
Para ilustrar: João doa a José uma fazenda para que ali se cultive maconha. Por se tratar de motivo determinante, o negócio é inválido. Já se João doar uma fazenda a José com o encargo de que ele plante maconha, o encargo será tido como não escrito, ficando assim: João doa a José uma fazenda com o encargo de que ele plante maconha.
Escada ponteana na jurisprudência
A escada ponteana do negócio jurídico também é utilizada na jurisprudência, como se observa em acórdão do Superior Tribunal de Justiça:
RECURSO ESPECIAL. CONTRATO DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO CPC. NÃO OCORRÊNCIA. TRADIÇÃO DO VEÍCULO. CONTRATO DE NATUREZA REAL. REQUISITO DE VALIDADE DO NEGÓCIO JURÍDICO. ESCADA PONTEANA. ELEMENTOS ESSENCIAIS DO CONTRATO. NEGLIGÊNCIA DA PARTE AUTORA. MÁ-FÉ DA EMPRESA ALIENANTE. […]Em negócio de alienação fiduciária em garantia, por se tratar de contrato de natureza real, a tradição constitui requisito de validade do negócio jurídico.[…] A exigência de registro do contrato de alienação fiduciária em garantia no cartório de título e documentos e a respectiva anotação do gravame no órgão de trânsito não constitui requisitos de validade do negócio, tendo apenas o condão de torna-lo eficaz perante terceiros. […](STJ, 4ª Turma, REsp 1190372/DF, Rel. Min.Luis Felipe Salomão, julgado em 15/10/2015, publicado em 27/10/2015)
[1] TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único – 8 ed. rev, atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2018.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Seu comentário desempenha um papel fundamental na melhoria contínua e na manutenção deste blog. Que Deus abençoe abundantemente você!