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segunda-feira, 1 de outubro de 2018

Cristocentrismo...

Cristocentrismo: benefícios e problemas de uma ênfase necessária

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Para a fé cristã, as três pessoas da Trindade são igualmente importantes. Porém, Jesus Cristo apela de modo especial à sensibilidade dos crentes por representar a sublimidade e o mistério da presença pessoal de Deus no mundo em forma humana. O Novo Testamento é um testemunho eloqüente da centralidade de Cristo para a cosmovisão cristã. De Mateus ao Apocalipse tudo gira em torno da pessoa e obra do Redentor. Duas tradições são particularmente marcantes nesse sentido: a joanina e a paulina. O Quarto Evangelho inicia com o grandioso prólogo a respeito da encarnação e atribui ao Verbo títulos, predicados e feitos extraordinários. Todavia, o apóstolo Paulo vai ainda além, pois não somente apresenta uma “cristologia elevada”, descrevendo o Filho de Deus de maneira exaltada e majestosa, mas acrescenta a isso um profundo elemento pessoal (“para mim o viver é Cristo”).

Ninguém nega que a ênfase cristocêntrica do Novo Testamento em geral e de Paulo em particular é fundamental para a identidade do cristianismo histórico. Ao longo dos séculos, muitos cristãos têm tido essa mesma preocupação, com inegáveis benefícios para a sua vida pessoal, para a igreja e para a sociedade. No entanto, por estranho que possa parecer, nem sempre o cristocentrismo tem sido uma ênfase saudável em certos grupos e movimentos, por causa das suas implicações. Muitas vezes a pessoa de Cristo pode ser enfatizada em detrimento de outros aspectos importantes da revelação bíblica. O cristocentrismo pode ser considerado sob três aspectos – espiritual, doutrinário e prático –, embora com freqüência essas dimensões não possam ser dissociadas uma da outra.

1. Espiritualidade - O nível mais básico em que os cristãos se defrontam com a realidade do Filho de Deus é a vida espiritual e devocional. Antes de ser um objeto de reflexão intelectual (teologia) e de imitação na vida diária (práxis), o Salvador requer uma resposta pessoal de fé, amor e obediência. Os primeiros cristãos sentiam ter uma conexão toda especial com ele: eram batizados em seu nome, confessavam o seu nome, sofriam pelo seu nome. Com isso, ele se tornava o principal ponto de referência de suas vidas e o elemento focal da sua devoção. Essa piedade centrada em Cristo se tornou característica de alguns dos períodos de maior vitalidade e autenticidade do cristianismo, encontrando a sua expressão maior em diferentes manifestações de misticismo.

Exemplos de misticismo centrado em Cristo podem ser encontrados em todas as épocas. Na igreja primitiva, houve o caso do idoso bispo Inácio de Antioquia, que, ao ser levado para a execução em Roma no início do 2º século, escreveu sete cartas que acentuam a sua profunda identificação com Cristo. “Sou o trigo de Deus, moído pelos dentes das feras para tornar-me o pão puro de Cristo”, disse ele aos romanos. Na Idade Média, místicos como Tomás à Kempis e Teresa de Jesus produziram uma belíssima literatura devocional centrada na comunhão com Cristo. Um notável exemplo protestante foi o conde alemão Nikolaus Ludwig Von Zinzendorf (1700-1760), que disse certa vez: “Eu tenho uma paixão; é ele e ele somente”. Karl Barth referiu-se a esse personagem como “talvez o único cristocêntrico genuíno da era moderna”.

No entanto, uma espiritualidade cristocêntrica se torna questionável quando leva à mera contemplação, passividade ou deturpações teológicas. Em 1913, nos primeiros tempos do pentecostalismo, surgiu nos Estados Unidos o “movimento da unicidade”, com a sua ênfase no batismo somente “em nome de Jesus”. Com o passar do tempo, verificou-se que se tratava de uma rejeição da doutrina da Trindade, relembrando a antiga heresia do monarquianismo modalista. Com isso, a maior parte dos pentecostais rejeitou esse ensino pretensamente cristocêntrico.

2. Teologia - O cristocentrismo também pode se expressar na área do pensamento cristão, quando a pessoa e a obra de Cristo são colocadas no centro de alguns sistemas teológicos. Um bom exemplo antigo é Irineu de Lião, que viveu no final do 2º século. Em sua teologia antignóstica, o bispo da Gália articulou a influente “teoria da recapitulação”, segundo a qual não somente a morte de Cristo, mas a sua vida toda e em especial a sua encarnação tem um sentido redentor. Como o Deus encarnado, Cristo redimiu a natureza humana da corrupção do pecado, e como o segundo Adão ele reverteu os efeitos danosos da queda, encabeçando ou recapitulando uma nova humanidade restaurada. Esse cristocentrismo também se manifestou na hermenêutica dos pais da igreja em geral, com a sua exegese cristológica que buscava a Cristo em cada passo das Escrituras.

A expressão “teologia cristocêntrica” por vezes tem sido utilizada para referir-se a sistemas teológicos mais recentes segundo os quais Deus nunca se revela ao ser humano a não ser através do Cristo encarnado. Baseando-se numa interpretação literal de Mateus 11.27 (“Ninguém conhece o Filho, senão o Pai; e ninguém conhece o Pai, senão o Filho e aquele a quem o filho o quiser revelar”), é negada a possibilidade de qualquer revelação na natureza e, portanto, de uma teologia natural. Entre os representantes modernos dessa posição estão teólogos como Albrecht Ritschl (1822-1889), Wilhelm Herrmann (1846-1922) e Karl Barth (1886-1968). O problema com essa abordagem à primeira vista saudável é o desprezo por outros meios revelatórios, tais como a ordem criada e a própria Escritura. Para a neo-ortodoxia, a Bíblia é vista não como a revelação de Deus, mas apenas como um testemunho humano dessa revelação.

3. Práxis - Nenhuma expressão do cristianismo pode ser considerada realmente cristocêntrica se não produzir frutos na vida prática, em termos de testemunho e serviço. Talvez o melhor exemplo de uma genuína práxis cristocêntrica no período antigo seja o monasticismo. Os primeiros monges, conhecidos como “pais do deserto”, e aqueles que os sucederam, inspiraram-se diretamente nas palavras e na vida de Jesus. O fato de que Cristo viveu de maneira pobre e humilde, ministrando às necessidades materiais e espirituais das pessoas ao seu redor, fez com que muitos cristãos escolhessem um estilo de vida semelhante, numa imitação consciente de Mestre. Nos seus melhores momentos, o movimento monástico produziu frutos duradouros nas áreas de missões, educação e beneficência.

No final do século 19 surgiu nos Estados Unidos um movimento muito influente que foi o “evangelho social”. Esse movimento, que teve como seu maior expoente o pastor batista Walter Rauschenbusch, foi uma resposta aos graves problemas sociais existentes na época, associados ao crescimento industrial, à imigração e à urbanização. Uma das características marcantes do cristianismo social foi a sua ênfase cristocêntrica, como ficou evidente na obra mais famosa ligada ao movimento, Em Seus Passos (1896), escrita pelo pastor congregacional Charles M. Sheldon. Essa conhecida novela mostrou o que poderia acontecer em uma comunidade dilacerada por conflitos sociais se os cristãos começassem a perguntar a cada momento: “O que faria Jesus?”.

O evangelho social e o velho liberalismo ao qual estava associado insistiam num evangelho cristocêntrico simples, que desprezava peculiaridades confessionais de culto, doutrina e forma de governo. O problema é que esse “cristianismo de Cristo” podia reduzir-se a uma simples dimensão ética, correndo o risco de ser colocado em pé de igualdade com outros sistemas religiosos e filosóficos.

Conclusão - A fé cristã tem uma contribuição singular e indispensável para o mundo. Essa contribuição, que nenhuma outra religião ou filosofia pode proporcionar, consiste na pessoa divino-humana de Jesus Cristo, o Filho de Deus. É importante que os fiéis, os pensadores e a igreja tomem a Cristo como o foco principal de suas ações e reflexões. Todavia, é necessário que isso seja feito sem que se sacrifiquem outros elementos valiosos da revelação cristã.

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