OS REFORMADORES E A LEI – VALOR, SEMELHANÇAS E DIFERENÇAS
Introdução
Um elemento que certamente influenciou o pensamento tanto de Lutero quanto de Calvino acerca da lei foram as suas diferentes experiências de vida e de fé. Martinho Lutero (1483-1546) era um monge agostiniano há doze anos quando iniciou a obra da reforma. Até então ele praticara uma espiritualidade ascética, rigorosa, legalista, na tentativa de agradar a Deus e ser aceito por ele. Deus era visto como um ser justiceiro, implacável e irado. A compreensão da verdade bíblica da justificação somente pela fé teve um efeito libertador. Isso talvez explique a atitude um tanto negativa de Lutero em relação à lei.
João Calvino (1509-1564), por outro lado, era um humanista, e não um sacerdote. Ele não teve nenhuma crise espiritual profunda ou experiência dramática de conversão. Na realidade, a única coisa que ele disse certa vez sobre a sua experiência é que ela havia sido uma “conversão repentina”. Por outro lado, durante três anos ele estudou Direito em Orléans e Bourges (1528-31). Mas, certamente, a razão principal do seu interesse pela lei foi a sua profunda consciência da realidade da soberania de Deus, e da sua santa vontade.
1. Lutero e a Lei
A dialética entre lei e evangelho é ponto focal da teologia de Lutero, sem a qual não podemos entender suas idéias acerca de temas como justificação, predestinação e ética. O principal contraste que Lutero vê dentro da Escritura não é entre os dois testamentos, mas entre lei e evangelho. Embora exista mais lei que evangelho no Antigo Testamento e mais evangelho do que lei no Novo Testamento, não se pode simplesmente identificar o Antigo Testamento com a lei, nem o Novo com o evangelho. Ao contrário, o evangelho também está presente no Antigo Testamento, assim como a lei ainda pode ser ouvida no Novo Testamento. Na realidade, a diferença que existe entre lei e evangelho está relacionada com duas funções que a Palavra de Deus exerce no coração do crente, e assim a mesma Palavra pode ser lei ou evangelho, dependendo da maneira como fala ao crente.
A lei é a vontade de Deus, que se manifesta na lei natural, conhecida por todos; nas instituições civis – tais como o estado e a família – que expressam essa lei natural; e na declaração positiva da vontade de Deus na sua revelação. A lei tem duas funções básicas: (a) como lei civil, ela refreia os ímpios e proporciona a ordem necessária tanto para a vida social quanto para a proclamação do evangelho; (b) com lei “teológica”, ela desvenda ao ser humano a enormidade do seu pecado.
É nessa função teológica que a lei é relevante para o entendimento da teologia de Lutero. A lei é a vontade de Deus, mas quando essa lei é contrastada com a realidade humana ele se torna uma palavra de condenação e suscita a ira de Deus. Em si mesma, a lei é boa e agradável; todavia, depois da queda a humanidade ficou incapaz de satisfazer a vontade de Deus, e assim a lei se tornou para nós uma palavra de julgamento e ira. “Assim, a lei revela um duplo mal, um interno e o outro externo. O primeiro, que nós causamos a nós mesmos, é o pecado e a corrupção da natureza; o segundo, que Deus causa, é a ira, a morte e a maldição” (Contra Latomus, 3 – LW 32:224).
Colocando de outra maneira, a lei é o “não” divino pronunciado contra nós e contra toda realização humana. Embora a sua origem seja divina, ela pode ser usada tanto por Deus, conduzindo as pessoas ao evangelho, como pelo diabo, conduzindo-as ao desespero e ódio contra Deus. Isso se aplica não somente ao Antigo Testamento, mas também ao Novo e até mesmo às palavras de Cristo. Isso porque, se as pessoas não receberem o evangelho, as palavras de Cristo permanecem como uma exigência ainda mais rigorosa à torturada consciência humana. Em si mesma, a lei deixa os seres humanos numa situação de desespero e, portanto, torna-os joguetes do diabo. “Em meio à aflição e aos conflitos da consciência, o diabo costuma amedrontar-nos com a Lei e dirigir contra nós a consciência do pecado, nosso passado ímpio, a ira e o juízo de Deus, o inferno e a morte eterna, a fim de que dessa maneira possa levar-nos ao desespero, sujeitar-nos a si mesmo e arrancar-nos de Cristo” (Preleções sobre Gálatas, 1535 – LW 26:10).
No entanto, a lei é também o meio pelo qual Deus nos conduz a Cristo, pois quando ouvimos o “não” de Deus contra nós e contra os nossos esforços, estamos prontos para ouvir o seu amoroso “sim”, que é o evangelho. O evangelho não é uma nova lei, algo que simplesmente esclareça as exigências de Deus quanto a nós; não é um novo meio pelo qual podemos aplacar a ira de Deus. É o “sim” imerecido que em Cristo Deus pronunciou sobre nós. O evangelho liberta-nos da lei, não por capacitar-nos para cumprir a lei, mas ao declará-la cumprida por nós. “O evangelho não proclama nada mais que a salvação pela graça, dada ao homem sem quaisquer obras e méritos” (Sermão, 19-10-1522 – LW 51:112).
E todavia, mesmo dentro do evangelho e após termos ouvido e aceito a palavra de graça da parte de Deus, a lei não é inteiramente posta de lado. Embora justificados, somos ainda pecadores e a palavra de Deus ainda nos mostra a nossa condição. A diferença é que agora não precisamos nos desesperar, pois sabemos que, a despeito da nossa miséria, Deus nos aceita. Assim, podemos verdadeiramente nos arrepender dos nossos pecados sem tentar ocultá-los, quer negando-os ou confiando em nossa própria natureza.
Isso nos leva ao conceito de Lutero sobre a justificação – a imputação da justiça de Cristo. Se a justificação não depende da nossa própria justiça, mas da atribuição da justiça de Deus a nós, o cristão é ao mesmo tempo justo e pecador (“simul justus et peccator”). A justificação não significa que somos tornados perfeitos ou que deixamos de pecar (Romanos 7). Na sua vida terrena, o cristão irá continuar a ser um pecador, mas um pecador justificado e assim libertado da maldição da lei.
Isso não quer dizer que a justificação nada represente para a vida concreta do cristão. Ao contrário, a justificação é também a obra pela qual Deus, além de declarar-nos justos, também nos faz viver de acordo com esse decreto, conduzindo-nos à justiça. Portanto, “um homem que é justificado ainda não é um homem justo, mas está no próprio processo de mover-se em direção à justiça” (Disputa Acerca da Justificação – LW 34:152). Assim é a vida cristã: uma peregrinação da justiça para a justiça; da imputação inicial de justiça por Deus até o tempo em que seremos de fato tornados justos por Deus. Nessa peregrinação, as obras desempenham um papel importante, como um sinal de que a fé verdadeira de fato foi recebida. “Devemos confirmar a nossa posse da fé e do perdão dos pecados mostrando as nossas obras” (O Sermão da Montanha, Mt 6.14-15 – LW 21:149-50).
É nesse ponto que a lei – especialmente o Decálogo e os mandamentos do Novo Testamento – desempenham um novo papel na vida do crente. A sua função civil, que é necessária para a ordem da sociedade, ainda permanece. A sua função “teológica”, que é mostrar o nosso pecado, ainda é necessária, pois o indivíduo justificado ainda é um pecador. Mas, agora, o cristão se relaciona de maneira diferente com esse aspecto da lei. “Porém, agora eu descubro que a Lei é preciosa e boa, que ela me foi dada para a vida, e agora ela é agradável para mim. Antes ela me dizia o que fazer; agora estou começando a moldar-me aos seus apelos, de modo que agora eu louvo, engrandeço e sirvo a Deus. Isso eu faço por meio de Cristo, porque nele creio. O Espírito Santo entra em meu coração e gera em mim um espírito que se compraz nas suas palavras e obras, mesmo quando ele me repreende e me sujeita à cruz e à tentação” (Sermões sobre o Evangelho de João – LW22:144).
Assim, agora a lei tem uma função diferente, pois ela ao mesmo tempo repreende os pecadores que os cristãos ainda são e mostra-lhes o caminho a seguir no seu desejo de fazer o que é agradável a Deus. A razão que levou Lutero a insistir nesse uso da lei foi a afirmação feita por alguns entusiastas de que, como tinham o Espírito, eles não mais estavam sujeitos aos preceitos da lei. Lutero percebeu as conseqüências caóticas que resultariam de tal asserção e por isso a corrigiu dizendo que, embora o cristão não mais esteja sujeito à maldição da lei, a lei ainda é uma expressão boa e adequada da vontade de Deus. Isso diz respeito às leis morais expressas em ambos os testamentos, as quais se harmonizam com a lei natural e o princípio do amor, que é supremo no Novo Testamento.
2. Zuínglio e a Lei
Como resultado de seu enfoque diferente da teologia, o entendimento de Ulrico Zuínglio (1484-1531) acerca da lei e do evangelho não é o mesmo que o de Lutero. A sua resposta à questão da maneira pela qual a lei foi abolida, e do modo pelo qual ela ainda é válida, é muito mais simples que a de Lutero, carecendo da profundidade das idéias do reformador alemão. Zuínglio começa fazendo uma distinção entre três tipos de leis: a lei eterna de Deus, conforme expressa nos mandamentos morais; as leis cerimoniais e as leis civis. As duas últimas não se relacionam com essa questão, pois se referem à pessoa exterior, mas a questão de pecado e justiça tem a ver com a pessoa interior. Portanto, somente as leis morais do Antigo Testamento devem ser consideradas e elas de modo algum foram abolidas.
As leis civis dizem respeito a situações humanas particulares. As leis cerimoniaisforam dadas para a época anterior a Cristo. Mas a lei moral expressa a eterna vontade de Deus e, portanto, não pode ser abolida. O que aconteceu no Novo Testamento é que a lei moral foi sintetizada no mandamento do amor. O evangelho e a lei são essencialmente a mesma coisa. Portanto, aqueles que servem a Cristo estão presos à lei do amor, que é a mesma que a lei moral do Antigo Testamento e a lei natural escrita em todos os corações. Assim, o primeiro ponto, no qual Zuínglio difere de Lutero nessa questão, é a sua afirmação de que a lei permanece e de que o evangelho de modo algum a contradiz.
O segundo ponto de divergência entre os dois reformadores com referência à lei tem a ver com a sua avaliação da mesma. Zuínglio não passou pela experiência de sentir-se condenado pela lei, que foi tão decisiva para Lutero. Portanto, ele não pode aceitar a afirmação de Lutero de que a lei é terrível e que a sua função é pronunciar sobre nós a palavra de juízo de Deus. É clara a referência a Lutero quando Zuínglio afirma: “Em nossa época algumas pessoas de grande importância, como elas imaginam, têm falado sem a necessária circunspecção acerca da lei dizendo que a mesma serve somente para aterrorizar, condenar e entregar ao tormento. Na realidade, a lei não faz nada disso, mas, ao contrário, apresenta a vontade e a natureza da Divindade” (Sermão, 20-08-1530 – Lat. Zwingli 2:166).
Disso resulta o entendimento de Zuínglio acerca do evangelho, que é semelhante em muitos aspectos e diferente em muitos aspectos do de Lutero. Como Lutero, Zuínglio crê que o evangelho são as boas novas de que os pecados são remidos em nome de Cristo. Como o reformador alemão, ele afirma que esse perdão somente pode ser recebido quando a pessoa está consciente da sua própria miséria – embora ele atribua essa função ao Espírito antes que à lei. Ele afirma: “Seria ridículo se Aquele diante de quem está presente tudo o que jamais haverá, tivesse determinado libertar o homem a um tão grande preço e, no entanto, tivesse decidido permitir-lhe, imediatamente após a sua libertação, chafurdar nos seus velhos pecados. Portanto, ele proclama, desde o início, que a nossa vida e o nosso caráter devem ser transformados” (Sobre a Verdadeira e a Falsa Religião – Lat. Zwingli 3:119).
Portanto, em última análise, lei e evangelho são praticamente a mesma coisa. Isso resulta logicamente do entendimento de Zuínglio acerca da providência e da predestinação divinas. A vontade de Deus é sempre a mesma e foi revelada na lei. Assim, a função do evangelho é libertar-nos das conseqüências de nossa transgressão da lei e capacitar-nos a obedecê-la.
3. Calvino e a Lei
Quando Calvino fala em “lei”, ele geralmente dá a esse termo um sentido diferente daquele dado por Lutero. Para ele, a lei não significa o correlativo do evangelho, mas a revelação de Deus ao antigo Israel, tanto nos “livros de Moisés” como em todo o Antigo Testamento. Assim, a relação existente entre lei e evangelho, antes que dialética, torna-se praticamente contínua. Existem diferenças entre os dois testamentos, mas o seu conteúdo é essencialmente o mesmo: Jesus Cristo. Isso é de importância fundamental, pois o conhecimento da vontade de Deus seria inútil sem a graça de Cristo.
A lei cerimonial tinha em Cristo o seu conteúdo e fim, pois sem ele todas as cerimônias são vazias. A única razão pela qual os sacrifícios dos sacerdotes antigos eram aceitáveis a Deus era a prometida redenção em Jesus Cristo. Em si mesmos, dada a nossa corrupção, quaisquer sacrifícios que pudéssemos oferecer a Deus seriam inaceitáveis. Mas é na lei moral que se pode ver mais claramente a continuidade que existe entre o antigo e o novo. De fato, a lei moral tem um tríplice propósito.
O primeiro propósito da lei – e aqui Calvino concorda com Lutero – é mostrar-se o nosso pecado, miséria e depravação (usus theologicus). Rm 3.20; 5.20. Quando vemos na lei o que Deus requer de nós, ficamos face a face com as nossas próprias deficiências. Isso não nos capacita a fazer a vontade de Deus, mas nos força a deixar de confiar em nós mesmos e a buscar o socorro e a graça de Deus (Institutas2.7.6-9). A lei é um espelho que mostra aos homens a sua verdadeira aparência aos olhos de Deus, para que “despidos e vazios eles possam correr para a sua misericórdia, repousar inteiramente nela, ocultar-se nela e apegar-se somente a ela para obter a justiça e os méritos disponíveis em Cristo para todos os que anelam e buscam essa misericórdia com verdadeira fé. Nos preceitos da lei, Deus é galardoador somente da perfeita justiça, e disso todos nós carecemos. Por outro lado, ele é o Juiz severo de todos os pecados. Mas, em Cristo, a sua face brilha plena de graça e suavidade mesmo para com pecadores miseráveis e indignos” (Institutas2.7.8).
O segundo propósito da lei é refrear os ímpios (usus civilis; Institutas 2.7.10-11). 1 Tm 1.9-10. Embora, isso não leve à regeneração, é todavia necessário para a ordem social. Como muitas pessoas obedecem à lei movidas pelo temor, as ameaças que ela contém servem para fortalecer essa função. Sob essa rubrica, a lei também serve àqueles que, embora predestinados para a salvação, ainda não se converteram. Ao forçá-los a atentar para a vontade de Deus, ela os prepara para a graça à qual eles foram predestinados. Assim, muitos que chegaram a conhecer a graça de Deus testificam que antes da sua conversão sentiram-se compelidos a obedecer a lei movidos pelo temor.
Finalmente, o terceiro uso da lei – tertium usus legis – é revelar a vontade de Deus àqueles que crêem (Institutas 2.7.12). Sl 19.7-8; 119.105. Essa é uma ênfase que haveria de tornar-se típica da tradição reformada e que lhe daria grande parte da sua austeridade em matéria de ética. O próprio Calvino, com base nesse terceiro uso da lei, dedica uma extensa seção das Institutas à exposição da lei moral (Livro II, Cap. VIII). A sua afirmação básica é que Cristo aboliu a maldição da lei, mas não a sua validade. O erro do antinomianismo está em afirmar que, uma vez que Deus aboliu em Cristo a maldição da lei, os cristãos não mais estão obrigados pela lei. Na verdade, a lei não pode ser abolida, pois ela expressa a vontade de Deus, que nunca muda. O que foi abolido, além da maldição da lei moral, foi a lei cerimonial. A razão para isso é clara: o propósito das antigas cerimônias foi apontar para Cristo e isso não é mais necessário um vez que a realidade plena já foi revelada.
O “terceiro uso da lei” significa que os cristãos devem estudar a lei de modo cuidadoso, não somente como uma palavra de condenação que continuamente os impele para a graça de Deus, mas também como o fundamento para determinarem como devem ser as suas ações. Nesse estudo e interpretação da lei, três princípios fundamentais devem ser conservados em mente: (1) Deus é espírito e por isso os seus mandamentos dizem respeito tanto às ações externas quanto aos sentimentos íntimos do coração. Isso é verdade quanto a toda a lei e, portanto, o que Cristo faz no Sermão da Montanha é simplesmente explicitar o que já estava implícito, e não promulgar uma nova lei. A lei de Cristo não é outra senão a lei de Moisés (Institutas2.8.6-7). (2) Todo preceito é ao mesmo tempo positivo e negativo, pois toda proibição implica em uma ordem e vice-versa (Institutas 2.8.8-10). Assim, nada é deixado de fora da lei de Deus. (3) O fato de que o Decálogo foi escrito em duas tábuas mostra que a devoção e a justiça devem caminhar de mãos dadas (Institutas2.8.11). A primeira tábua trata dos deveres para com Deus; a segunda diz respeito às relações com o próximo. Assim, o fundamento da justiça é o serviço a Deus e este é impossível sem um relacionamento justo com as outras pessoas.
Portanto, existe uma continuidade fundamental entre o Antigo Testamento e o Novo (Institutas 2.10; 3.17). Essencialmente, essa continuidade tem a ver com o fato de que a vontade de Deus revelada no Antigo Testamento permanece eternamente a mesma, com o fato adicional de que o âmago do Antigo Testamento foi a promessa de Cristo, do qual o Novo Testamento fala como um fato consumado. Não obstante, existem algumas diferenças significativas entre os dois testamentos. Essas diferenças são cinco (Institutas 2.11): (a) O Novo Testamento fala claramente da vida futura, ao passo que o Antigo somente a promete por meio de sinais terrenos. (b) O Antigo Testamento apresenta apenas a sombra daquilo que está substancialmente presente no Novo, a saber, Cristo. (c) O Antigo Testamento foi temporário, enquanto que o Novo é eterno. (d) A essência do Antigo Testamento é lei e, portanto, servidão, ao passo que a essência do Novo é o evangelho da liberdade. Cumpre observar, todavia, que tudo o que é prometido no Antigo Testamento não é lei, mas evangelho. (e) O Antigo Testamento foi dirigido a um único povo, enquanto que a mensagem do Novo é universal. Porém, apesar dessas diferenças, a ênfase básica da reflexão de Calvino sobre lei e evangelho é de continuidade, e a diferença entre ambos é uma diferença entre promessa e cumprimento. Nisso, Calvino diferiu substancialmente de Lutero. E foi isso em parte que permitiu ao calvinismo articular programas éticos mais detalhados do que o fizeram os luteranos.
4. As Confissões Reformadas e a Lei
A ênfase de Calvino ao terceiro uso da lei fez com que os documentos confessionais reformados dessem grande destaque a esse ensino, especialmente através da exposição detalhada do Decálogo. Já no Livro II das Institutas, ao tratar da lei (capítulos 6-11), Calvino faz uma exposição detalhada dos Dez Mandamentos (8.11-50); o mesmo no seu primeiro catecismo, Instrução na Fé (1537).
A 2ª pergunta e resposta do Catecismo de Heidelberg (1563) diz o seguinte: “Quantas coisas deves conhecer para que possas viver e morrer na bem-aventurança desse consolo? Três. Primeiro, a enormidade do meu pecado e miséria. Segundo, como sou liberto de todos os meus pecados e suas terríveis conseqüências. Terceiro, que gratidão devo a Deus por tal redenção.” Isso antecipa as três partes em que se divide o Catecismo: (1) O Pecado e a Culpa do Homem – A Lei de Deus (pp. 3-11): os dois primeiros usos da lei. (2) A Redenção e Liberdade do Homem – A Graça de Deus em Jesus Cristo (pp. 12-85): o evangelho. (3) A Gratidão e Obediência do Homem – A Nova Vida Através do Espírito Santo (pp. 86-129): a lei moral, especialmente o Decálogo (pp. 92-115).
A Confissão de Fé de Westminster (1643-1646) dedica um capítulo à “Lei de Deus”, na parte que trata da vida cristã. Esse capítulo aborda em sete parágrafos os três usos da lei e os seus diferentes aspectos (cerimonial, civil e moral). Já o Catecismo Maiordá um destaque muito mais enfático à lei. A sua terceira parte (pp. 91-196) aborda o dever do homem em relação a Deus. Nessa seção, mais da metade das perguntas tratam da lei e do Decálogo (pp. 91-148). O mesmo se pode dizer do Breve Catecismo(pp. 39-84, de um total de 107 perguntas).
5. Antinomismo e Legalismo
Calvino e Lutero foram unânimes no seu entendimento dos primeiros dois usos da lei (elênctico, de élenchos = repreensão [ver 2 Tm 3.16], e civil ou político). Todavia, Lutero não ensinou formalmente um terceiro uso da lei. Os dois reformadores concordaram em suas noções sobre a graça, a justificação e a liberdade cristã, bem como em sua oposição contra qualquer forma de justiça pelas obras, por um lado, ou de antinomianismo, por outro lado. A diferença básica entre Lutero e Calvino no tocante à lei é que, para Lutero, a lei geralmente representa algo negativo e hostil; daí o fato de mencioná-la ao lado do pecado, da morte e do diabo. Calvino via a lei primariamente como uma expressão positiva da vontade de Deus, por meio da qual Deus restaura a sua imagem na humanidade e a ordem na criação decaída. Lutero estava consciente do terceiro uso da lei, mas ele não diz que a lei é principalmente um guia e um incentivo para os fiéis. Ele estava pronto a dizer, especialmente no início da década de 1520, que o crente de fato não precisava da lei. Isso explica em parte o fato de que o luteranismo tem tido de resguardar-se contra tentações antinomianas, ao passo que os círculos reformados têm revelado maior tendência de cair no legalismo.
Historicamente, tantos os luteranos como os reformados têm tido dificuldade de manter o correto equilíbrio entre lei e evangelho, o que tem levado ao antinomismo, de um lado, e ao legalismo e moralismo, do outro. O antinomismo acentua de tal modo o fato de o cristão estar livre da condenação da lei a ponto de subestimar a necessidade da confissão diária dos pecados e da busca sincera da santificação. Os católicos romanos com efeito acusaram a Reforma de antinomismo ao afirmarem que a doutrina da justificação pela fé conduziria à frouxidão moral. Já na década de 1530, Lutero expressou a sua preocupação pelo fato de um dos seus seguidores, João Agrícola (c. 1494-1566), ter se tornado antinomista. Lutero o criticou por não acentuar adequadamente a responsabilidade moral dos cristãos.
O perigo maior enfrentado pela Reforma foi o do moralismo e legalismo. Os moralistas ou neonomistas acentuam de tal modo a responsabilidade cristã que a obediência torna-se mais que o fruto ou evidência da fé; antes, ela passa a ser vista como um elemento constitutivo da fé justificadora. O legalismo inevitavelmente ataca a certeza e a alegria cristãs e tende a criar uma piedade egocêntrica, excessivamente introspectiva.
Era Calvino um legalista? Nos seus escritos, em geral não. Como vimos, ele estabeleceu normas para a interpretação da lei. Primeiro, a lei visa não somente a probidade externa, mas a justiça interior e espiritual (Institutas 2.8.6). Segundo, os mandamentos e proibições sempre implicam mais do que as palavras expressam, isto é, a mera obediência formal à lei não é suficiente (Institutas 2.8.8). Deve-se buscar a intenção do legislador; o melhor intérprete da lei é Cristo (Institutas 2.8.7). Terceiro, a dupla divisão da lei em deveres de piedade e deveres de caridade mostra que o temor a Deus é o fundamento da justiça (Institutas 2.8.11). Na sua teologia, a forte insistência de Calvino na justificação somente pela fé contrasta com o espírito legalista. Além disso, ele recusou-se a fazer da disciplina uma prova decisiva da existência da Igreja. Outro ponto significativo é o fato de ele ter colocado a exposição da lei no Livro II das Institutas (soteriologia), e não no Livro III, como parte da seção sobre o arrependimento e a vida cristã. Na discussão da vida cristã ele apela mais à vida e exemplo de Jesus e ao conjunto da teologia cristã como a fonte e o guia dessa vida.
Por outro lado, as Ordenanças Eclesiásticas (1541) criaram um consistório para regular a conduta da comunidade cristã e abriram as portas para o legalismo. Os oficiais de Genebra não hesitaram em forçar as pessoas a irem à igreja. Eles também investigavam e regulavam muitos detalhes da vida diária. Calvino tinha um desejo profundo de que a Igreja abrangesse toda a comunidade. Pelo menos no que diz respeito a Genebra, ele nunca abandonou o ideal medieval do corpus christianum, mas buscou fazer da comunidade de Genebra o verdadeiro corpo de Cristo. Porém, essa preocupação em obter a comunidade ideal pode ter levado o reformador a apelar para métodos legalísticos.
O desafio que se coloca diante de nós é duplo: dar um testemunho persuasivo da autoridade pessoal do Deus vivo sobre cada vida humana, mas ao mesmo tempo não substituir o reino pessoal de Deus por regras meticulosamente formuladas.
ReferênciasJusto L. González, A History of Christian Thought, III:53-55 (Lutero), 78-79 (Zuínglio), 146-49 (Calvino).
T.H.L. Parker, Calvin: An Introduction to his Thought (Louisville: Westminster/John Knox, 1995).
John H. Leith, John Calvin’s Doctrine of the Christian Life (Louisville: Westminster/John Knox, 1989), 45-54.
W.R.G, “Law and Gospel”, em S. B. Ferguson, D.F. Wright e J.I. Packer, eds., New Dictionary of Theology (InterVarsity, 1988), 379s.
I. John Hesselink, “Law”, em Donald K. McKim, ed., Encyclopedia of the Reformed Faith(Westminster/John Knox, 1992), 215-217.
Mauro F. Meister, “Lei e Graça: Uma Visão Reformada”. Fides Reformata IV:2 (Jul-Dez 1999), 45-58.
Timothy George, Theology of the Reformers (Nashville: Broadman, 1988). Um livro que aborda várias dessas questões é A Lei Moral, de Ernest Kevan, da Editora Os Puritanos. Por exemplo, o cap. 12 trata da importante relação entre a lei e o evangelho.
Fonte de Estudos e Pesquisas: http://www.mackenzie.br
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