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Magazine na Lanterna

quinta-feira, 17 de maio de 2018

Quem dizes que sou?

Quem dizes que sou? Perspectivas sobre Jesus Cristo no decorrer da história



Resultado de imagem para quem dizes que eu souOs evangelhos informam que desde o ministério terreno de Jesus houve dúvidas quanto à sua verdadeira identidade. No texto da confissão de Pedro, em resposta à pergunta de Jesus sobre quem o povo dizia ser ele, os discípulos responderam: João Batista, Elias, Jeremias ou “algum dos profetas” (Mt 16.14). Quando Jesus indagou a opinião dos seus próprios seguidores, Pedro deu a resposta correta (“Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”), mas uma leitura mais ampla dos sinóticos mostra que os apóstolos ainda assim tinham muitas perplexidades acerca de verdadeira natureza do seu mestre. Fora do círculo mais estreito em torno de Jesus, as dúvidas podiam se tornar especialmente intensas. João Batista, o primo e precursor de Jesus, fez a dolorosa pergunta: “És tu aquele que estava para vir ou havemos de esperar outro?” (Mt 11.3). Ao longo dos evangelhos ressoa a exclamação das multidões e dos líderes religiosos judeus: “Quem é este...?” (Mt 8.27; Lc 5.21; 7.49; Jo 1.19; 8.25).

A principal razão dessas dúvidas era a própria complexidade da pessoa de Jesus, em muitos aspectos tão intensamente humano, porém ao mesmo tempo marcado por características, atributos e feitos singulares, extraordinários. Os seus títulos, demonstrações de autoridade e afirmações ousadas sobre si mesmo deixavam os seus interlocutores aturdidos, admirados ou simplesmente chocados e irados. Adicionalmente, havia um elemento de mistério em torno daquela pessoa, de segredo acerca da sua verdadeira identidade, tema esse que é destacado nos evangelhos. O chamado “segredo messiânico” reforça a idéia de que Jesus ao mesmo tempo se oculta e se revela. Somente aqueles que crêem, que se identificam com ele, podem conhecer realmente quem ele é. Após a ressurreição os discípulos se tornam mais seguros a respeito de Jesus (Jo 21.12), o que não impede que, com o passar do tempo, surjam novos questionamentos.

1. O humano e o divino
A resposta de Pedro, conhecida como a “Grande Confissão”, foi muito importante, mas não respondeu todas as dúvidas. O que realmente significava dizer que Jesus era o “Cristo” (Messias) e o “Filho de Deus”? Quais as implicações mais profundas dessas afirmações? Essas questões ocuparam a mente dos cristãos por vários séculos e as tentativas de solução giraram em torno de dois pólos: a humanidade e a divindade de Jesus. Num primeiro momento, a preocupação em resguardar o monoteísmo fez com que muitos cristãos tivessem reservas quanto à divindade de Cristo. Nunca se pos em dúvida a importância, a dignidade e a singularidade de Jesus; afinal, desde o início os cristãos sabiam ter uma relação especial com ele, tinham sido batizados em seu nome e o confessavam como Senhor. Todavia, muitos sentiam que aceitar a sua divindade implicava em dissolver a unidade de Deus, em admitir a existência de dois deuses, o Pai e o Filho.

Essa preocupação em preservar o monoteísmo em prejuízo do reconhecimento do caráter divino de Cristo ficou conhecida na história como “monarquianismo”. Este por sua vez dividiu-se em duas correntes principais: o monarquianismo dinâmico ou adocianismo dizia que Jesus foi um ser humano que Deus adotou como filho por ocasião do seu batismo, quando ele foi revestido do poder (“dynamis”) do Espírito Santo. Os ebionitas, isto é, os cristãos hebreus que pouco antes da destruição de Jerusalém se transferiram para o outro lado do rio Jordão, foram adocianistas. Já o monarquianismo modalista entendia que Pai, Filho e Espírito Santo eram manifestações sucessivas, e não simultâneas, de Deus. Essa corrente não fazia distinções no Ser Divino, chegando alguns a ponto de dizer que o Pai sofreu e morreu na cruz, posição essa conhecida como patripassianismo.


Simultaneamente ao monarquianismo, e mesmo antes dele, surgiu uma espécie muito diferente de questionamento, motivada por pressupostos bastante distintos. Influenciados pela cultura e filosofia grega, os gnósticos afirmavam a maldade inerente da matéria e, por conseguinte, não podiam admitir o conceito de encarnação. Sua tendência era dar ênfase ao caráter divino do Verbo (Logos), em detrimento da sua humanidade. Aquele Jesus com o qual os discípulos se relacionaram tinha apenas uma aparência de humanidade, era como que um fantasma, um ser etéreo que viveu entre eles. Daí terem ficado conhecidos como docetistas (do verbo grego dokéo = “parecer”). Essa posição já é claramente combatida nas epístolas joaninas do Novo Testamento (1 Jo 4.2,3; 2 Jo 7), e um grande número de textos afirma de modo enfático um entendimento literal da encarnação (ver Jo 1.14; Rm 1.3; Cl 1.22; 1 Tm 3.16; Hb 5.7; 1 Pe 4.1).

2. A era dos credos
Com o passar do tempo, à medida que o debate se ampliava e aprofundava, surgiram posições mais sofisticadas acerca do assunto. A mais famosa e controvertida foi o arianismo, proposta no início do quarto século pelo presbítero Ário, de Alexandria, no Egito. Essa concepção interpretava de modo muito literal a linguagem bíblica sobre Pai e Filho e sobre o conceito de geração. Ário afirmava que o Pai gerou o Filho, que só então passou a existir, e por meio deste fez o restante da criação. Portanto, Cristo era um ser muito exaltado, mas não divino. Outras posições resultaram das ênfases de duas escolas de interpretação bíblica, a de Alexandria e a de Antioquia, a primeira insistindo na união das duas naturezas e a segunda, em sua separação. Segundo o bispo Apolinário, o Cristo encarnado consistia de um corpo humano dotado de uma razão divina, o Logos. Outro bispo mais famoso, Nestório, insistiu que Jesus Cristo consistia na “união moral” de duas pessoas como em um matrimônio. Finalmente, o monge Eutiques, indo na direção oposta, defendeu a virtual fusão das duas naturezas, resultando em uma só, a divina. Essa posição também ficou conhecida como monofisismo.

Diante de um cenário tão confuso, a igreja sentiu a necessidade de posicionar-se a respeito dessa questão crucial que envolvia o correto entendimento do centro de sua fé: a pessoa de Jesus Cristo. Quatro grandes concílios ecumênicos realizados na Ásia Menor nos séculos quarto e quinto trataram dessa questão (Nicéia, Constantinopla, Éfeso e Calcedônia). A Definição de Calcedônia, do ano 451, resolveu a controvérsia de maneira magistral ao declarar não só a perfeita divindade e a perfeita humanidade de Cristo, mas o fato de que as duas naturezas, ao mesmo tempo distintas e inseparáveis, formam uma só pessoa e subsistência (“união hipostática”). Entendeu-se que essa concepção era não só coerente com o testemunho das Escrituras, mas necessária em virtude de suas implicações soteriológicas. Desde então, esse entendimento tem sido adotado pela maior parte da cristandade.

3. Novas teorias, antigas idéias
Ao longo dos séculos, têm surgido as mais diversas interpretações acerca de Cristo, que geralmente não passam de reedições, com outros nomes, das antigas posições consideradas heterodoxas. De um modo geral, essas posições tendem a minimizar ou simplesmente negar a divindade de Cristo, dando grande ênfase à sua humanidade. Foi o que aconteceu, na época da Reforma, com o espanhol Miguel Serveto e os italianos Lélio e Fausto Socino, que ensinaram formas particulares de adocionismo. Mais tarde, as modernas Testemunhas de Jeová iriam abraçar uma posição muito semelhante à do antigo arianismo.

Os principais reformadores protestantes, Lutero e Calvino, diferiram parcialmente nas suas concepções acerca da natureza humana de Cristo. O primeiro insistiu que, por causa da encarnação, a humanidade de Cristo, inclusive o seu corpo glorificado, recebeu o atributo da ubiqüidade, estando em todos os lugares ao mesmo tempo. Já os calvinistas argumentaram que mesmo agora, após a sua ressurreição e ascensão, o homem Jesus está corporalmente localizado no céu. Isso levou as duas tradições a terem compreensões bastante diferentes da presença de Cristo no sacramento da Ceia. No entanto, por um bom tempo, os protestantes, acompanhando os católicos romanos e os ortodoxos gregos, mantiveram unanimemente a antiga cristologia de Calcedônia.

A partir do iluminismo, com a sua crítica da visão sobrenaturalista da religião, voltaram a ser abraçadas as antigas concepções acerca de Cristo que insistiam na sua humanidade, negando a sua transcendência. O deísmo do século 18 e a teologia liberal protestante do século 19 conceberam Jesus em termos exclusivamente humanos, ainda que dotado de notáveis atributos morais e espirituais. Teólogos influentes como os alemães Schleiermacher e Ritschl propuseram formas elaboradas de adocionismo. Finalmente, no século 20 ganhou força a célebre “busca do Jesus histórico”, que procurou fazer uma distinção radical entre o Jesus concreto de carne e osso que viveu na Palestina e o Cristo da fé imaginado e idealizado pela igreja primitiva. Uma concepção especialmente revolucionária foi proposta por Rudolf Bultmann, um exegeta e teólogo alemão que pretendeu desmitologizar ou desmitificar o Jesus dos evangelhos, desvestindo-o de sua roupagem miraculosa e interpretando a sua pessoa e missão em termos do pensamento existencialista.

4. Perspectivas de Cristo
Ao lado das perenes controvérsias em torno da humanidade e divindade do Redentor, diferentes épocas e diferentes movimentos da história da igreja têm tido as suas percepções particulares acerca de Cristo. Para os primeiros cristãos ele era o Senhor, por amor de quem eles enfrentaram a ira do Império Romano e o martírio; nas primeiras manifestações da arte cristã, ele é a figura benevolente do Bom Pastor, também representado pelo peixe, a pomba ou o cordeiro. Na igreja imperial da era constantiniana, ele passa a ser visto como o Cristo exaltado e todo-poderoso, o pantokrátor (“governante de tudo”). Mais tarde, na segunda metade da Idade Média, dá-se ênfase ao Cristo sofredor, o “varão de dores” dos místicos e visionários.

Ao longo do tempo, os cristãos têm encontrado dificuldade em manter um equilíbrio saudável entre as dimensões sobrenatural e humana de Cristo. Na espiritualidade do tipo pietista, marcada pelo individualismo e pelo misticismo, predomina uma concepção docética de Cristo. A sua humanidade fica obscurecida, dando-se toda a ênfase ao Senhor poderoso e transcendente, operador de maravilhas e solucionador de problemas, que está prestes a voltar em glória para arrebatar a sua igreja. Do outro lado, existe o Cristo predominantemente humano do liberalismo, tanto católico quanto protestante. Um bom exemplo foi o “evangelho social” do início do século 20, inspirador de um ativismo cristão ilustrado pelo livro Em Seus Passos que Faria Jesus? Essa também foi uma ênfase da “teologia da libertação” latino-americana da segunda metade do século 20, que viu na figura de Jesus de Nazaré um modelo a ser seguido na luta contra a injustiça e a opressão.

Essas duas perspectivas padecem de limitações. A primeira, de tendência docética, pode levar, e com freqüência leva, a uma atitude de alienação e escapismo em relação aos problemas do mundo e da sociedade. É característica de boa parcela do evangelicalismo conservador e entusiástico. A outra perspectiva é igualmente reducionista, limitando a aplicação dos ricos conceitos bíblicos de libertação e reconciliação ao plano social e político. O reino de Deus passa a ser visto exclusivamente em termos terrenos, de transformação das estruturas mediante a ação humana, e Cristo torna-se um mero símbolo e um exemplo a ser seguido nesse esforço. O ideal é que os cristãos, em sua reflexão e em sua práxis, recuperem a visão bíblica holística de Jesus Cristo, como aquele cuja obra libertadora e reconciliadora abrange todas as dimensões da existência.

Perguntas para reflexão:
1. Os cristãos antigos tinham um grande interesse pela teologia e por definições precisas. Isso é necessário e saudável hoje? Por quê?

2. Quais as conseqüências que as diferentes posições sobre a pessoa de Cristo têm para o entendimento da salvação, da vida cristã e da missão da igreja?

3. Como podemos entender a co-existência de duas naturezas radicalmente diferentes (divina e humana) na pessoa do Cristo encarnado?

4. Qual o problema de se ter uma posição muito individual e subjetiva a respeito da pessoa de Cristo? Como isso pode ser evitado?

5. Por que é importante que os cristãos confessem tanto a divindade quanto a humanidade de Jesus?

Sugestões bibliográficas:
GONZÁLEZ, Justo L. Uma história do pensamento cristão. Vol. I. São Paulo: Cultura Cristã, 2004.

LANE, Tony. Pensamento cristão. 2 vols. 2ª ed. São Paulo: Abba Press, 2000.

MACLEOD, Donald. A pessoa de Cristo. Série Teologia Cristã. São Paulo: Cultura Cristã, 2005.

OLSON, Roger. A controvérsia a respeito da Trindade e O conflito sobre a pessoa de Cristo. Em História da teologia cristã: 2000 anos de tradição e reformas. São Paulo: Editora Vida, 2001.

OLSON, Roger. Jesus Cristo: Deus e homem. Em História das controvérsias na teologia cristã: 2000 anos de unidade e diversidade. São Paulo: Editora Vida, 2004.

STROBEL, Lee. Em defesa de Cristo. São Paulo: Vida, 1998.

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