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domingo, 20 de maio de 2018

Estudos sobre a ação social cristã...

Estudos sobre a ação social cristã...

PERSPECTIVA HISTÓRICA

Uma das glórias do cristianismo, desde os seus primórdios, tem sido a sua intensa preocupação com a promoção da dignidade humana em todas as áreas da vida. Essa preocupação resultou dos ensinos enfáticos das Escrituras a esse respeito e, mais ainda, do sublime exemplo de serviço altruísta e misericordioso dado pelo próprio Senhor Jesus Cristo.

Resultado de imagem para ação social cristãOs cristãos dos primeiros séculos, vivendo em circunstâncias freqüentemente difíceis de ostracismo e perseguição, continuaram a praticar intensamente a caridade e a beneficência, como havia acontecido no período apostólico. O amor fraternal era uma característica marcante da igreja que impressionava os pagãos, pouco acostumados com essa virtude. Inácio de Antioquia, escrevendo no início do segundo século, critica certos hereges dizendo que “não se preocupam com o amor, nem com a viúva, nem com o órfão, nem com o sofredor, nem com o aflito, nem com os prisioneiro, ou com aquele que foi liberto da prisão, nem com o faminto ou sedento” (Esmirnenses 6.2). A epístola conhecida como I Clemente, do final do primeiro século, fala de crentes que se venderam como escravos a fim de socorrer os necessitados.

Naqueles tempos calamitosos, não somente os cristãos individuais procuravam socorrer os menos afortunados com seus donativos (esmolas), mas as igrejas ampliaram grandemente as suas atividades caritativas. Um dos fatores que contribuíram para o crescimento da igreja de Roma em importância foi a sua conhecida generosidade. Inácio já havia elogiado essa igreja como “aquela que preside em amor” (Romanos) e algumas décadas mais tarde Dionísio de Corinto enalteceu a congregação romana por enviar “contribuições às muitas igrejas em cada cidade, aliviando a pobreza dos necessitados e ministrando aos cristãos nas minas” (Eusébio, Hist. Ecles. 4.23.10). Mais tarde, quando os povos bárbaros começaram a invadir o império, as igrejas e seus líderes, os bispos, prestaram grandes serviços na área assistencial às populações afligidas. As principais igrejas mantinham hospitais, albergues, orfanatos e outras instituições, bem como davam assistência a um grande número de viúvas e outras pessoas carentes.

O ofício diaconal tornou-se muito valorizado na igreja antiga, embora tenha sofrido alguns desvios de seu propósito original. Os diáconos tornaram-se os assistentes pessoais dos bispos, passando a exercer importantes funções litúrgicas e estando diretamente encarregados das atividades beneficentes da comunidade. Com freqüência, seu número ficava limitado a sete em cada igreja, seguindo o precedente de Atos 6.3. O bispo Fabiano de Roma (236-250), martirizado na perseguição movida pelo imperador Décio, parece ter dividido a cidade em sete regiões, com vistas à administração eclesiástica, cada uma das quais tinha um diácono como supervisor. Assim, quando um bispo morria, freqüentemente um diácono era eleito como seu sucessor.

Com o passar do tempo, a composição social da igreja se alterou. Um número maior de cristãos passou a ser de um nível sócio-econômico mais elevado. Isso levou a igreja a mudar a sua atitude em relação à riqueza, em comparação com os ensinos do Novo Testamento. A riqueza de um cristão passou a ser considerada legítima, contanto que fosse utilizada para socorrer os menos favorecidos. Eventualmente, surgiu o entendimento de que as esmolas e outras obras de caridade possuíam um caráter meritório, traduzindo-se em benefícios espirituais nesta vida e na vida futura para aqueles que as praticavam.

Outro importante desdobramento na área da ação social foi o surgimento do monasticismo. Inspirados nas palavras de Jesus ao moço rico (Mt 19.21) e outros textos bíblicos, muitos homens e mulheres passaram a viver um vida de renúncia do mundo e dedicação exclusiva a Deus, fazendo os conhecidos votos de pobreza, castidade e obediêcia. Apesar de certos aspectos negativos da vida monástica, mais tarde denunciados pelos reformadores protestantes, é inegável que essa instituição deu notáveis contribuições à igreja e à sociedade ao longo de toda a Idade Média, notadamente nas áreas de missões, preservação da cultura e educação. Outra importante área de atividade dos mosteiros foi o socorro aos necessitados, não só em circunstâncias normais como também durante períodos de grave convulsão social, como guerras, calamidades naturais e epidemias.

A Reforma Protestante do século 16 manteve essa antiga tradição cristã de uma forte presença na área social. Os protestantes deram uma contribuição adicional nesse campo com as suas novas ênfases teológicas. A eliminação da distinção entre clero e leigos, a valorização da vida diária e das atividades humanas em geral, uma nova ética do trabalho e a grande ênfase na educação para todos contribuíram decisivamente para a melhoria das condições de vida das pessoas ligadas ao movimento. Reformadores como Lutero e Calvino escreveram amplamente sobre temas como pobreza e riqueza, as implicações sociais do evangelho e a atuação da igreja na sociedade.

Calvino foi especialmente incisivo nessa área. Seu longo ministério em Genebra e suas viagens por diversas partes da Europa o colocaram em contato direto com muitos problemas sociais e econômicos. Durante sua vida, Genebra recebeu um enorme influxo de refugiados religiosos, muitos deles totalmente desprovidos de recursos, que se somavam aos muitos necessitados que eram naturais da cidade. Esse reformador escreveu amplamente sobre questões sociais, tanto na sua obra magna, as Institutas, quanto nos seus comentários bíblicos. Esses temas também eram abordados freqüentemente nos seus sermões, que muitas vezes adquiriam um tom profético, à medida que ele denunciava as mazelas e desigualdades da sua sociedade. Calvino continuamente fazia gestões junto aos concílios dirigentes de Genebra clamando pela eliminação de práticas danosas aos pobres como a cobrança de juros extorsivos e a especulação em torno dos preços dos alimentos (comerciantes locais retinham os estoques para forçar a elevação dos preços).

Estudando as Escrituras, Calvino se inteirou da riqueza de dados bíblicos referentes à responsabilidade dos filhos de Deus para com os sofredores. Ele se impressionou com a ética de solidariedade e generosidade presente tanto no Antigo quanto no Novo Testamento. As dádivas de Deus não devem ser usufruídas egocentricamente, mas utilizadas para o bem-comum. Em conexão com isso, ele deu forte ênfase ao ofício diaconal e apoiou decisivamente duas importantes instituições sociais da cidade de Genebra: o Hospital Geral e o Fundo Francês para Estrangeiros Pobres. (Alguns textos recentes que abordam esses assuntos são: André Biéler, O pensamento econômico e social de Calvino; Augustus Nicodemus Lopes, Calvino e a responsabilidade social da igreja; Alderi S. Matos, Amando a Deus e ao próximo: João Calvino e o diaconato em Genebra.)

Gerações posteriores de protestantes notabilizaram-se por sua atuação na área social. Tal foi o caso do pietismo, um movimento de renovação do luteranismo ocorrido no final do século 17, cujos líderes iniciais foram Philip Spener (1635-1705), August Francke (1663-1727) e, um pouco depois, o conde Nikolaus von Zinzendorf (1700-1760), o notável líder dos irmãos morávios. O nome “pietismo” vem de uma obra de Spener, Pia Desideria (Desejos piedosos). Além de suas preocupações básicas na área da espiritualidade, como uma forte ênfase na experiência religiosa e na formação de pequenos grupos para o estudo das Escrituras e a oração, os pietistas deram muita atenção a missões mundiais e à ação social, criando orfanatos, escolas e hospitais.

O pietismo influenciou outros movimentos de avivamento tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, nos séculos 18 e 19. Uma das características desses avivamentos foi a intensa atuação social de muitas pessoas alcançadas pelos mesmos. Na Inglaterra ocorreram tanto o avivamento evangélico quanto o surgimento do metodismo com os irmãos João e Carlos Wesley. Esses movimentos resultaram em muitos esforços em prol das populações carentes e dos trabalhadores. Duas causas em que os evangélicos ingleses se envolveram foram a reforma das prisões e a luta pela eliminação do trabalho infantil nas indústrias de tecidos. Os evangélicos também participaram ativamente, sob a liderança do político William Wilberforce, da campanha pela supressão da escravidão e do tráfico de escravos.

Simultaneamente ao que acontecia na Inglaterra, nos Estados Unidos também ocorreram dois influentes avivamentos. O chamado Primeiro Grande Despertamento verificou-se por volta de 1740 e teve como principais personagens o pastor e teólogo Jonathan Edwards e o pregador George Whitefield, ambos solidamente calvinistas. Edwards escreveu várias obras importantes nas quais descreveu e analisou cuidadosamente o avivamento. Uma das suas contribuições foi a elaboração de critérios mediante os quais se pode avaliar a autenticidade ou não de um avivamento. Ele concluiu que entre as marcas de uma verdadeira manifestação de Deus está, além da transformação espiritual de indivíduos, uma presença transformadora e renovadora da igreja na sociedade. O Segundo Grande Despertamento, ocorrido nas primeiras décadas do século 19, teve como um de seus subprodutos o surgimento de muitas “sociedades voluntárias”, associações de evangélicos voltadas para um grande número de causas relevantes como missões, educação religiosa e secular, e desafios sociais (abolicionismo, temperança, etc.).

No final do século 19 e início do século 20, a difícil situação dos trabalhadores e dos imigrantes nas grandes cidades norte-americanas estimulou o surgimento do movimento que ficou conhecido como Evangelho Social. Seu grande líder foi o pastor batista Walter Rauschenbusch, que escreveu algumas obras influentes sobre o assunto. Porém, o livro que mais popularizou os ideais do evangelho social foi Em seus passos, de Charles Sheldon, publicado no Brasil com o título Em seus passos que faria Jesus. O evangelho social colocava a ênfase não na conversão individual, mas na redenção da sociedade através da atuação social dos cristãos. Um de seus slogans mais conhecidos era “a implantação do reino de Deus na terra”. Infelizmente, por causa da forte associação do evangelho social com o liberalismo teológico que ganhava corpo na época, os evangélicos mais conservadores, até então fortemente envolvidos com a área social, começaram a limitar-se a atividades de cunho nitidamente religioso. A reação contra o evangelho social e o liberalismo foi um dos principais fatores que causaram o afastamento dos evangélicos norte-americanos da área social, e essa tendência reproduziu-se em outros continentes.

A partir da década de 1960, a problemática social adquiriu grande visibilidade na América Latina. Num contexto de graves problemas sócio-econômicos em todo o continente, houve o surgimento de inúmeros movimentos de caráter socialista voltados para a solução desses problemas pela via política ou mesmo pela força das armas. Numa reação contra esses movimentos, surgiram regimes de direita em quase todos os países latino-americanos, o que agravou ainda mais essa situação, pela polarização assim criada. Nesse contexto, os cristãos foram desafiados a se posicionarem. Entre os católicos e em menor grau entre os protestantes, surgiu a conhecida “teologia da libertação”, que teve como um de seus primeiros proponentes o sacerdote peruano Gustavo Gutiérrez. No Brasil, o nome mais conhecido foi o do teólogo Leonardo Boff e a expressão mais visível da teologia da libertação foram as comunidades eclesiais de base.

Por causa da sua análise marxista da problemática social e da sua excessiva politização, a teologia da libertação foi rejeitada pela maior parte dos evangélicos latino-americanos. No entanto, muitos deles sentiram que não podiam manter-se indiferentes às aflitivas realidades do continente. Alguns desses evangélicos preocupados com os problemas sócio-econômicos da América Latina reuniram-se na Fraternidade Teológica Latino-Americana, sendo os nomes mais conhecidos os de Samuel Escobar e C. René Padilla, e no Brasil o de Valdir Steuernagel. Eles têm defendido o que denominam “missão integral”, ou seja, um conceito de missão ao mesmo tempo bíblico e evangélico, mas sensível às complexas realidades espirituais, políticas, sociais e econômicas da América Latina. Criticando os modelos missionários tradicionais, eles propõem um modelo que implica em levar o evangelho integral ao ser humano integral.

Esses teólogos latino-americanos tiveram uma destacada atuação no famoso e influente Congresso Internacional de Evangelização Mundial, realizado em Lausanne, na Suíça, em 1974. Esse congresso marcou a primeira vez em que os evangélicos de vários continentes reconheceram explicita e enfaticamente as implicações sociais do evangelho e da missão da igreja. Naquele encontro, Samuel Escobar afirmou o seguinte: “Uma espiritualidade sem discipulado nos aspectos diários da vida – sociais, econômicos e políticos – é religiosidade e não cristianismo… De uma vez por todas, devemos rejeitar a falsa noção de que a preocupação com as implicações sociais do evangelho e as dimensões sociais do testemunho cristão resultam de uma falsa doutrina ou de uma ausência de convicção evangélica. Ao contrário, é o interesse pela integridade do Evangelho que nos motiva a acentuarmos a sua dimensão social.”

Os participantes do congresso aprovaram um documento conhecido como Pacto de Lausanne, que, depois de falar sobre a natureza da evangelização, declara o seguinte sobre a responsabilidade social cristã: “Afirmamos que Deus é tanto o Criador como o Juiz de todos os homens. Portanto, devemos partilhar da sua preocupação com a justiça e a reconciliação em toda a sociedade humana e com a libertação dos homens de todo tipo de opressão. Porque a humanidade foi feita à imagem de Deus, toda pessoa, não importa qual seja a sua raça, religião, cor, cultura, classe, sexo ou idade, tem uma dignidade intrínseca em razão da qual deve ser respeitada e servida, e não explorada. Também aqui manifestamos o nosso arrependimento, tanto pela nossa negligência quanto por às vezes termos considerado a evangelização e a preocupação social como mutuamente exclusivas. Embora a reconciliação com o ser humano não seja o mesmo que a reconciliação com Deus, nem a ação social seja evangelização, nem a libertação política seja salvação, todavia afirmamos que tanto a evangelização como o envolvimento sócio-político são parte do nosso dever cristão.”

Concluímos dizendo que desde uma perspectiva evangélica a evangelização, ou seja, convidar os indivíduos, famílias e comunidades à reconciliação e nova vida em Jesus Cristo, certamente é básica e essencial. Todavia, à medida que a igreja evangeliza, ela também precisa expressar o interesse de Deus por todas as áreas da vida e espelhar a atitude daquele que disse: “Eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância”.

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