Imagine a situação: Rev. Valdir1 é um pastor presbiteriano de uma cidade média no interior de SP que recebe um telefonema de um pastor batista cuja igreja acabara de se empolgar com a redescoberta da fé evangélica e a centralidade da Bíblia no púlpito. Ele recebe um convite para pregar naquela igreja no culto principal.
Rev. Valdir se sente muito empolgado e honrado por pregar e servir em uma igreja de outra denominação e ficou mais feliz ainda quando soube que haveria a celebração mensal da Ceia do Senhor. Porém, quando chega o momento da Ceia após o reverendo proferir um belo sermão, quando o diácono começa a servir a Ceia explica para ele que esta é restrita somente aos membros daquela denominação. E o reverendo Valdir não pôde participar da Ceia do Senhor.
A situação ficcional acima, porém muito comum, levanta uma reflexão: quem pode participar da Ceia do Senhor?
As quatro posições:2
Dentro da tradição batista, onde o autor deste artigo está inserido,3 há uma tipologia que ilustra o debate. Cada posição tem uma teologia por detrás dela.
O falecido pastor batista e professor de eclesiologia, João Falcão Sobrinho, em seu livro A Túnica Inconsútil: Um estudo sobre a doutrina da Igreja4 lista quatro posições, a saber: Ceia Universal (ou Ceia aberta ou ultra-livre); Ceia Livre, Ceia Restrita e Ceia Ultra-Restrita.
Outra terminologia é usada neste quesito, a saber, comunhão fechada, próxima ou aberta.6 Está é comum em círculos batistas e luteranos.7
Ceia Universal
Esta posição, podendo também ser chamada de Ceia Aberta ou Ultra-Livre, advoga que todos devem receber o pão e o vinho, independente do seu credo, da fé salvadora no Senhor Jesus Cristo e da religião,8sendo a posição de igrejas neo-pentecostais onde não há um claro critério de membresia e a ceia é servida para todos os presentes ou igrejas professadamente ecumênicas ou aderentes ao diálogo inter-religioso.
Ceia Livre (ou comunhão “próxima”)
Esta posição defende que todo crente em Cristo Jesus, confessante e batizado, independente da denominação ou tradição de fé protestante, é convidado a participar da Ceia do Senhor.9
Há uma posição intermediária entre a Ceia Universal e a Ceia Livre que é a comunhão “aberta” que advoga que todo crente em Cristo Jesus mesmo não batizado é convidado a participar da mesa do Senhor.10
Esta posição sempre existiu na tradição Batista, porém teve maior defesa no século XX. Seu maior expoente foi o conhecido John Bunyan.11
Ceia Restrita
Esta posição defende que somente os membros da denominação, “mesma fé e ordem” podem participar da Ceia do Senhor. Os que defendem essa posição, por exemplo, Sobrinho, advoga a diferença entre as posições denominacionais quanto a Ceia do Senhor como um meio de graça como motivo para a ceia restrita.12 Para Sobrinho, a ceia é meramente um memorial.13 E esse é um fator impeditivo para que membros de outra denominação participem da Ceia.
Ceia ultra-restrita
Esta posição defende que somente os membros daquela comunidade local devem participar da Ceia do Senhor. O autor Ebenézer Soares Ferreira salienta que é a posição mais sensata porque a ceia é da igreja local.14 Alguns batistas no século XVII e XVIII e o movimento landmarkista15 nos séculos XIX e XX advogam essa posição quando a igreja celebra a Ceia.16
O que está por detrás de cada posição
Importante tratar de cada posição a luz dos pressupostos teológicos que estão por detrás de cada uma delas. No caso da Ceia Universal, é notório o entendimento (ou falta dele) universalista da fé em Cristo no sentido de que todos, sem distinção, serão salvos, portanto a Ceia pode ser oferecida a todos.
No caso da Comunhão “Aberta” onde crentes não batizados podem participar, a indagação é que a Escritura não revela com clareza o batismo como condição sine qua non para a participação na Ceia do Senhor. Os que argumentam contra esta posição levantam a questão do Batismo como uma ordenança para os discípulos (Mc 16:15) portanto o não cumprimento dela caracteriza-se como desobediência e a ordenança ou sacramento da Ceia é para os discípulos batizados.
Os adeptos da Ceia Livre (Comunhão próxima) tem uma compreensão que a igreja é tanto local quanto universal, tanto visível quanto invisível, portanto todo crente professo e batizado é convidado a participar.
À luz dos credos antigos como, por exemplo, o Credo dos apóstolos e o Credo Niceno-Constantinopolitano de 381, a Igreja é “Una (única), Santa, Universal e Apostólica.”17 Mark Dever escreve que a “igreja é universal porque se estende através do tempo e do espaço.”18 A igreja local faz parte da igreja universal.
A Segunda Confissão de Fé Londrina de 1689 salienta que:
“A Igreja universal (ou católica), que com respeito à obra interna do Espírito, e da verdade da graça, pode ser chamada invisível, consiste no número total dos eleitos que já foram, estão sendo, ou ainda serão chamados em Cristo, o Cabeça de todos. A Igreja é a esposa, o corpo e a plenitude daquele que é tudo em todos.”19
Portanto à luz da universalidade ou catolicidade da igreja, todo cristão deve ser convidado para participar da Ceia independente da tradição, tipo de batismo, exigindo apenas a fé em Cristo no coração e confessada seguida do batismo. Esta é a posição defendida pelo autor do artigo embora reflita sobre a honestidade da pergunta levantada pelos defensores da comunhão “aberta”.
Conforme escrito anteriormente, a Ceia Restrita tem como argumento a unidade denominacional da mesma “fé e ordem” como também a posição da ceia memorial no quesito meio de graça (a ceia não confere graça para esta posição) então o argumento de que se a posição é diferente, não há possibilidade de participação em conjunto com outras denominações (isso envolve também o debate credo-batismo ou pedo-batismo). A Igreja Evangélica Luterana do Brasil mantém essa posição com o nome de comunhão “fechada” (aos membros da denominação) por causa da posição de Lutero quanto à ceia, a saber, a consubstanciação.20
A posição da ceia ultra-restrita tem como argumento a não existência da igreja universal ou invisível dentro da tradição batista conforme interpretada e defendida pelo movimento landmarquista.
Todo o debate se dá pela interpretação de 1 Coríntios 11:27-31 e das questões: se a mesa pertence à igreja ou ao Senhor? Se a igreja é somente local ou universal?
Bibliografia:
DEVER, Mark. Igreja: o Evangelho visível. São José dos Campos – SP : Fiel, 2015.
FÉ PARA HOJE: Confissão de Fé Batista de 1689. São José dos Campos – SP, Editora Fiel, 1991.
FERREIRA, Ebenézer Soares. Manual da Igreja e do Obreiro. Rio de Janeiro : JUERP. 1985.
GARDNER, Daniel Aaron. O despertar do movimento Landmarkista: Uma análise da vida e da teologia de James R. Graves. São José dos Campos : Seminário Martin Bucer. TCC
SOBRINHO, João Falcão. A túnica Inconsútil: Um estudo sobre a doutrina da igreja. – Rio de Janeiro, JUERP, 1998.
http://catequeseconfessional.blogspot.com.br/2015/09/confessionalidade-luterana-e-comunhao.html
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1Nome fictício, situação fictícia, porém muito comum.
2O autor agradece ao pastor batista Silas Roberto Nogueira pelo auxílio a pesquisa com os materiais de eclesiologia dos professores João Falcão Sobrinho e Ebenezer Soares Ferreira.
3Para outras tradições menos afetadas pelo fundamentalismo conforme explicado mais a frente no artigo não lidam com este problema por causa do conceito de igreja universal.
4SOBRINHO, João Falcão. A túnica Inconsútil: Um estudo sobre a doutrina da igreja. – Rio de Janeiro, JUERP, 1998. P. 96
5Os termos (como também a quantidade de posições) podem variar de escritor para escritor ou professor de eclesiologia para professor.
6DEVER, Mark. Igreja: o Evangelho visível. São José dos Campos – SP : Fiel, 2015. P. 160.
7Cf. http://catequeseconfessional.blogspot.com.br/2015/09/confessionalidade-luterana-e-comunhao.html Acesso em 19/11/2015. Pelo texto parece ser a posição da IELB (Igreja Evangélica Luterana do Brasil) ligada ao sínodo de Missouri (EUA) e confessional.
8SOBRINHO, Op. Cit. P. 96
9DEVER, Op. Cit. P.160
10Ibid.
11Ibid.
12SOBRINHO, Op. Cit. P. 96
13Ibid. As posições quanto a ordenança ou sacramento da Ceia do Senhor são: Transubstanciação (Igreja Católica Romana); Consubstanciação (Posição Luterana); Presença real ou mística por meio da fé (Calvino, presbiterianos e reformados, batistas calvinistas e reformados) e memorial (Ulrich Zwinglío, batistas).
14Cf. FERREIRA, Ebenézer Soares. Manual da Igreja e do Obreiro. Rio de Janeiro : JUERP. 1985.
15O landmarkismo ou landmarquismo surgiu com James R. Graves (1820-1893) com uma interpretação muito estreita em sua eclesiologia: existência apenas da igreja visível e local (não triunfante ou invisível) se relacionando apenas com outras igrejas fiéis (batistas landmarkistas) tanto em ordenança quanto em pregação fiel. Somente os pastores daquela tradição eram fiéis as igrejas do Novo Testamento. Cf. GARDNER, Daniel Aaron. O despertar do movimento Landmarkista: Uma análise da vida e da teologia de James R. Graves. São José dos Campos : Seminário Martin Bucer. TCC – Material não publicado.
16DEVER, Op Cit. P.160
17DEVER. Op. Cit. P.62-64
18Ibid. P.64
19FÉ PARA HOJE: Confissão de Fé Batista de 1689. São José dos Campos – SP, Editora Fiel, 1991. P. 51
20http://catequeseconfessional.blogspot.com.br/2015/09/confessionalidade-luterana-e-comunhao.html
Fonte de referência, estudos e pesquisa: http://www.teologiabrasileira.com.br/