Do grego αιρεσις que pode derivar de αιρεομαι (retirar) e do médio αιρεω (escolher). No grego helenista, indicava o objeto da escolha intelectual, isto é, uma doutrina ou uma escola intelectual, tal como se dava com as escolas filosóficas que, em Fílon, em Flávio Josefo e nos LXX, indicam as várias seitas ou correntes existentes no judaísmo; nisto recebeu um sentido pejorativo, talvez para designar aquele que se afastava da doutrina da tradição rabínica e, neste sentido, foi empregado pelos judeus em âmbito cristão. Assim os cristãos a princípio foram considerados "heréticos" pelos judeus no sentido de "aqueles que se haviam desviado"; em seguida, estes últimos, com suas várias seitas (fariseus, saduceus, etc.), foram considerados "heréticos" pelos cristãos (Mt 16,6-12), no sentido de "aqueles que se desviavam da verdadeira religião". Na comunidade de Corinto (1 Cor 11,18-19), fala-se de "heresias" e de "cismas", em Gl 5,20 e 2 Pd 2,1 de "heresias". Embora seja difícil precisar os limites dos dois termos, "heresia" conota já um desvio na doutrina acreditada pela comunidade e em seu modo de viver. Heresia, com isto, recebe, no contexto do âmbito judaico, o significado de heterodoxia e, do mundo grego uma terminologia que denotava uma escolha na busca filosófica, sem entrar na questão de um juízo sobre a mesma. Neste sentido leem-se Inácio de Antioquia (Trall. 6,11), Justino (Apol. I, 26,8; Dial. 17,1; 35,3; 51,2; 108,2); Hermas (Pastor, Simil. 9, 23m 5), Clemente Alexandrino (Strom. 66,44 e 1,19,91). Heresia é uma escolha pessoal; relativamente ao ensino do evangelho para Ireneu (Adv. Haer. 3,12,11; PG 7, 905); à doutrina dos apóstolos para Tertuliano (De praescriptione), constituindo um desvio da regula fidei e da disciplina do Mestre e portanto uma novidade na fé (Praescr. 6,2 e 42,8). Novitas tornou-se um termo técnico para indicar a heresia (Greg. Naz., Oratio L, 42 quanto à Trindade; Agost., Nupt. Conc. 2,12,25; Retract. II, 33 quanto ao pelagianismo; Vic. De L. Comm. I, 28).
Em relação ao cisma, a heresia se distingue dele, todavia o próprio cisma é visto como infectado de heresia (Jerôn., Ep. Tit. 3,10-11) ou conduzindo a esta (Agost., Civ. Dei 18,51; Ep. 93,11,46; C. Cresconium 2,7,9), tanto que hereges e cismáticos são postos no mesmo plano (Cipr., Epp. 69 e 70, a respeito dos novacianos). W. Bauer propôs em 1934, entender-se a heresia como um dado original do cristianismo e de cujo fundo teria surgido a ortodoxia. Entre as várias leituras do cristianismo teria predominado aquela, qualificada em seguida como ortodoxa, mas que, na origem, estava no mesmo nível que as outras. Os limites de semelhante leitura do cristianismo originário são dois: - aplicou aos testemunhos cristãos a categoria de heresia em uso então nas filosofias, como uma possível escolha na busca da verdade; - pensou a dialética ortodoxia-heresia como dois aspectos não apenas distinguíveis, mas também passíveis de separação real. No cristianismo, a dialética ortodoxia-heresia era diferente. Ao dado originário de Jesus de Nazaré (dicta et facta Iesu) era dada, como leitura dotada de garantia, a única possível dos testemunhos diretos, aceitos como tais na comunidade (os discípulos). Sobre esta linha se afirmou a ortodoxia; fora deste sulco, indicado depois tecnicamente como "apostólico" e sem prescindir deste, atestou-se a heresia que, portanto, não se define a não ser em relação com a ortodoxia. A regra normativa desta dialética, sobre a base comum de religar-se àquilo que os apóstolos haviam recebido de Jesus, foi-se afirmando em torno de pontos de referência: confissões de fé; regras da fé; símbolos da fé; decisões tomadas pelo chefe da comunidade (bispo; bispo de Roma), pelos concílios, pela autoridade da Igreja. A heresia, vista por muitos na antiguidade (Hipólito, Tertuliano, etc.) como fruto de uma falsa mediação cultural, foi contraditada em sua raiz filosófica; mas, para espíritos mais atentos e sensíveis à cultura, foi vista também em sua utilidade para mais bem entender e aprofundar o dado de fé cristão. Foi vista, diríamos hoje, a funcionalidade da mesma relativamente à ortodoxia (assim Oríg., C. Celsum 2,27; 3,12-23; 5,61; Clem. Al., Strom. 7,15,89; Agost., De Civ. Dei 16,2,1; 22,24,3). O próprio Agostinho, a Quodvultdeus, que lhe pedia um manual para uso pastoral concernente às heresias, percebia a dificuldade de especificá-las. Havia o perigo de indicar, como heréticas, opiniões que não o eram (Ep. 222,2). Todavia, desde os primeiros tempos recolheram-se as leituras do cristianismo, julgadas heréticas (Just., Syntagma, que se perdeu; Hip. Refutatio omium heresium; Ps.-Tertul. Adversus omnes haereses CSEL 47, 213-226; Anôn. Anacephaleosis; Epif. Panarion [depois de 375-6]; Filástr., Diversarum haereseon liber [380-390]; Ps.-Jerôn., Indiculus de haeresibus [antes de 428]; Agost., De haeresibus [428-429]; Auctor Praedestinati [depois de 439]). A partir do séc. V estes manuais têm a finalidade pastoral de conhecer as heresias, ter as respostas a serem dadas, e o auxílio para enfrentar as novas. Depois do De praescriptione de Tertuliano, que indicava como alguém se torna herético, Agostinho propôs-se escrever o II livro do De haer. Sobre a questão "quid facit haereticum?", mas nunca foi escrito. Em Agostinho, como nos autores cristãos antigos, heresia não conota apenas um erro no plano lógico da fé, mas indica um grupo que adere a semelhante versão do cristianismo. O herético, posto por Paulo entre os que, cristãmente, estão afetados por um vício (1 Cor 11,18-19), indicava alguém que não havia feito uma justa escolha, ao contrário do que isto significava na grecidade (alguém capaz de uma justa escolha no âmbito de uma filosofia que se constituía como regra doutrinal relativa a costumes-instituições e sentimentos primários de um povo [Sexto Emp., Pyrrhon hypotyp. 1,16; Ps.-Plat., Defin. 412a]). O herético cristão conota uma escolha feita fora do âmbito do código de vida da comunidade; existe um julgamento privado que não leva em conta o da comunidade. Os heréticos, por isto, são indicados genericamente como "inimigos da fé" (Ambr., In os. 118, s. 13,6), conotando uma adesão pessoal ao que é contrário à fé. Nisto se distinguem dos cismáticos, que conotam não uma escolha a que aderem, mas, ao contrário, uma ruptura ou uma divisão na comunidade. Se eles lhe eram equiparados, isto se devia ao fato de que tanto a heresia como o cisma atentavam contra a unidade da comunidade cristã. Agostinho, ao qualificar um cristão como herético, exige a vontade má e a obstinação no erro, que se torna evidente quando é claro o conhecimento da regula fidei (De pcc. orig. 29,34; De bapt. C. Donatistas 4,16,23; De gest. Pel. 6,18; De anima et eius orig. 3,15,23). Não considera que se possa qualificar como heréticos os que nascem na heresia, porque sua opinião "não é fruto de sua audaz presunção, mas da herança recebida" (Ep. 43,1): Haereticus est, ut mea fert opinio, qui alicuius temporalis commodi et maxime gloriae principatusque sui gratia falsas AC novas opiniones vel gignit vel sequitur (De util. credendi 1).
Em relação à comunidade cristã, a ideia de "herético" sofreu verdadeira evolução de Tertuliano a Agostinho. Em Tertuliano não se lhe reconhece a appelatio fraternitatis, porque "o herético não é mais considerado cristão" (Praescr. 16,2). É equiparado, religiosamente, ao pagão e ao judeu, porque, com sua heresia, teria saído do veículo vital cristão que se tem no laço apostólico. O herege é um cristão corrompido (Praescr. 12 e 13; 23,5) que, no entanto, pode recuperar-se integralmente através da correptio(Praescr. 12,1 e 16,2). Cipriano vê o herético como alguém que perde seu ser cristão e, com isto, a possibilidade de salvação, porque se põe fora da unidade da Igreja (De unitate 4; Ep. 55,24). O herético, como o cismático, para poder reinserir-se na Igreja, tem necessidade, para Cipriano, de ser rebatizado, tese rejeitada pelo papa Estêvão (Ep. 74,1-2, entre as epístolas de Cipr.). Agostinho aprofundou o dado de que todos os batizados, em virtude do único e mesmo nascimento espiritual, são irmãos, apesar de viverem numa situação de separação (De baptismo c. Donatistas 1,5,10; 6, c. 30-34).
Se, no plano teológico, graças a Agostinho, ainda se acolhia uma unidade no plano sacramental também com o herético, este, depois da virada constantiniana, no plano social chegou a ser considerado não cristão (a respeito dos donatistas, no edito de 3 de agosto de 379 se diz "cum nec christiani quidem habeantur" CT XVI, 5,5; Ed. Mommsen) e, por isto, passível, do ponto de vista religioso público, das penas de praescriptio, previstas para a culpa de superstitio. Sua posição conquistou sempre mais uma conotação civil, permanecendo a correptio sacramental, também ela, um fato doravante de ordem eclesial pública. O herético não é mais um caso interno da Igreja, pertencente ao âmbito espiritual e à liberdade de consciência religiosa. A Ep. 93 de Agostinho, de 407-408, ao bispo donatista Vicente, é considerada como o documento histórico substancial do comportamento da Igreja diante do herético: um cristão dissidente a quem se pode infligir também a pena civil, com a prévia instrução, no entanto, como remédio de arrependimento. O primeiro herético, justiçado por suas convicções religiosas, foi erroneamente indicado em Prisciliano (matou-o o usurpador Maxêncio em 385). Antigamente um herético era considerado tal somente depois do afastamento por um certo período de tempo da comunhão eclesial, sancionado depois pela excomunhão oficial (sínodo de Constantinopla de 382, cân. 6: Joannou 1/1, 50-51).
("Dicionário Patrístico e de Antiguidades Cristãs", Ed. Vozes e Ed. Paulinas, 2002, pp. 665-6)
("Dicionário Patrístico e de Antiguidades Cristãs", Ed. Vozes e Ed. Paulinas, 2002, pp. 665-6)
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