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Magazine na Lanterna

sexta-feira, 10 de abril de 2015

Auguste Comte e a Lei dos Três Estados

Auguste Comte e a Lei dos Três Estados
A Lei dos Três Estados: A filosofia da história, tal como a concebe Comte, é de certa forma tão idealista quanto a de Hegel. Para Comte "as idéias conduzem e transformam o mundo" e é a evolução da inteligência humana que comanda o desenrolar da história. Como Hegel ainda, Comte pensa que nós não podemos conhecer o espírito humano senão através de obras sucessivas - obras de civilização e história dos conhecimentos e das ciências - que a inteligência alternadamente produziu no curso da história. O espírito não poderia conhecer-se interiormente (Comte rejeita a introspecção, porque o sujeito do conhecimento confunde-se com o objeto estudado e porque pode descobrir-se apenas através das obras da cultura e particularmente através da história das ciências. A vida espiritual autêntica não é uma vida interior, é a atividade científica que se desenvolve através do tempo. Assim como diz muito bem Gouhier, a filosofia comtista da história é "uma filosofia da história do espírito através das ciências".
O espírito humano, em seu esforço para explicar o universo, passa sucessivamente por três estados:

a) O estado teológico ou "fictício" explica os fatos por meio de vontades análogas à nossa (a tempestade, por exemplo, será explicada por um capricho do deus dos ventos, Eolo). Este estado evolui do fetichismo ao politeísmo e ao monoteísmo.

b) O estado metafísico substitui os deuses por princípios abstratos como "o horror ao vazio", por longo tempo atribuído à natureza. A tempestade, por exemplo, será explicada pela "virtude dinâmica"do ar (²). Este estado é no fundo tão antropomórfico quanto o primeiro ( a natureza tem "horror" do vazio exatamente como a senhora Baronesa tem horror de chá). O homem projeta espontaneamente sua própria psicologia sobre a natureza. A explicação dita teológica ou metafísica é uma explicação ingenuamente psicológica. A explicação metafísica tem para Comte uma importância sobretudo histórica como crítica e negação da explicação teológica precedente. Desse modo, os revolucionários de 1789 são "metafísicos" quando evocam os "direitos" do homem - reivindicação crítica contra os deveres teológicos anteriores, mas sem conteúdo real.

c) O estado positivo é aquele em que o espírito renuncia a procurar os fins últimos e a responder aos últimos "por quês". A noção de causa (transposição abusiva de nossa experiência interior do querer para a natureza) é por ele substituída pela noção de lei. Contentar-nos-emos em descrever como os fatos se passam, em descobrir as leis (exprimíveis em linguagem matemática) segundo as quais os fenômenos se encadeiam uns nos outros. Tal concepção do saber desemboca diretamente na técnica: o conhecimento das leis positivas da natureza nos permite, com efeito, quando um fenômeno é dado, prever o fenômeno que se seguirá e, eventualmente agindo sobre o primeiro, transformar o segundo. ("Ciência donde previsão, previsão donde ação").
Acrescentemos que para Augusto Comte a lei dos três estados não é somente verdadeira para a história da nossa espécie, ela o é também para o desenvolvimento de cada indivíduo. A criança dá explicações teológicas, o adolescente é metafísico, ao passo que o adulto chega a uma concepção "positivista" das coisas.
(²) São igualmente metafísicas as tentativas de explicação dos fatos biológicos que partem do "princípio vital", assim como as explicações das condutas humanas que partem da noção de "alma".
A Classificação das Ciências: As ciências, no decurso da história, não se tornaram "positivas" na mesma data, mas numa certa ordem de sucessão que corresponde à célebre classificação: matemáticas, astronomia, física, química, biologia, sociologia.
Das matemáticas à sociologia a ordem é a do mais simples ao mais complexo, do mais abstrato ao mais concreto e de uma proximidade crescente em relação ao homem.
Esta ordem corresponde à ordem histórica da aparição das ciências positivas. As matemáticas (que com os pitagóricos eram ainda, em parte, uma metafísica e uma mística do número), constituem-se, entretanto, desde a antiguidade, numa disciplina positiva (elas são, aliás, para Comte, antes um instrumento de todas as ciências do que uma ciência particular). A astronomia descobre bem cedo suas primeiras leis positivas, a física espera o século XVII para, com Galileu e Newton, tornar-se positiva. A oportunidade da química vem no século XVIII (Lavoisier). A biologia se torna uma disciplina positiva no século XIX. O próprio Comte acredita coroar o edifício científico criando a sociologia.
As ciências mais complexas e mais concretas dependem das mais abstratas. De saída, os objetos das ciências dependem uns dos outros. Os seres vivos estão submetidos não só às leis particulares da vida, como também às leis mais gerais, físicas e químicas de todos os corpos (vivos ou inertes). Um ser vivo está submetido, como a matéria inerte, às leis da gravidade. Além disso, os métodos de uma ciência supõem que já sejam conhecidos os das ciências que a precederam na classificação. É preciso ser matemático para saber física. Um biólogo deve conhecer matemática, física e química. Entretanto, se as ciências mais complexas dependem das mais simples, não poderíamos deduzi-las de, nem reduzi-las a estas últimas. Os fenômenos   psicoquímicos condicionam os fenômenos biológicos, mas a biologia não é uma química orgânica. Comte afirma energicamente que cada etapa da classificação introduz um campo novo, irredutível aos precedentes. Ele se opõe ao materialismo que é "a explicação do superior pelo inferior". 
Nota-se, enfim, que a psicologia não figura nesta classificação. Para Comte o objeto da psicologia pode ser repartido sem prejuízo entre a biologia e a sociologia.
A Humanidade: A última das ciências que Comte chamara primeiramente física social, e para a qual depois inventou o nome de sociologia reveste-se de importância capital. Um dos melhores comentadores de Comte, Levy-Bruhl, tem razão de sublinhar: "A criação da ciência social é o momento decisivo na filosofia de Comte. Dela tudo parte, a ela tudo se reduz". Nela irão se reunir o positivismo religioso, a história do conhecimento e a política positiva. É refletindo sobre a sociologia positiva que compreenderemos que as duas doutrinas de Comte são apenas uma. Enfim, e sobretudo, é a criação da sociologia que, permitindo aquilo que Kant denominava uma "totalização da experiência", nos faz compreender o que é, para Comte, fundamentalmente, a própria filosofia.
Comte, ao criar a sociologia, a sexta ciência fundamental, a mais concreta e complexa, cujo objeto é a "humanidade", encerra as conquistas do espírito positivo: como diz excelentemente Gouhier - em sua admirável introdução ao Textos Escolhidos de Comte, publicados por Aubier - "Quando a última ciência chega ao último estado, isso não significa apenas o aparecimento de uma nova ciência. O nascimento da sociologia tem uma importância que não podia ter o da biologia ou o da física: ele representa o fato de que não mais existe no universo qualquer refúgio para os deuses e suas imagens metafísicas. Como cada ciência depende da precedente sem a ela se reduzir, o sociólogo deve conhecer o essencial de todas as disciplinas que precedem a sua. Sua especialização própria se confunde, pois - diferentemente do que se passa para os outros sábios - com a totalidade do saber. Significa dizer que o sociólogo é idêntico ao próprio filósofo, "especialista em generalidades", que envolve com um olhar enciclopédico toda a evolução da inteligência, desde o estado teológico ao estado positivo, em todas as disciplinas do conhecimento. Comte repudia a metafísica, mas não rejeita a filosofia concebida como interpretação totalizante da história e, por isto, identificação com a sociologia, a ciência última que supõe todas as outras, a ciência da humanidade, a ciência, poder-se-ia dizer em termos hegelianos, do "universal concreto".
O objeto próprio da sociologia é a humanidade e é necessário compreender que a humanidade não se reduz a uma espécie biológica: há na humanidade uma dimensão suplementar - a história - o que faz a originalidade da civilização (da "cultura" diriam os sociólogos do século XIX). O homem, diz-nos Comte, "é um animal que tem uma história". As abelhas não têm história. Aquelas de que fala Virgílio nas Geórgicas comportavam-se exatamente como as de hoje em dia. A espécie das abelhas é apenas a sucessão de gerações que repetem suas condutas instintivas: não há, pois, num sentido estrito, sociedades animais, ou ao menos a essência social dos animais reduz-se à natureza biológica. Somente o homem tem uma história porque é ao mesmo tempo um inventor e um herdeiro. Ele cria línguas, instrumentos que transmitem este patrimônio pela palavra, e, nos últimos milênios, pela escrita às gerações seguintes que, por sua vez, exercem suas faculdades de invenção apenas dentro do quadro do que elas receberam. As duas idéias de tradição e de progresso, longe de se excluírem, se completam. Como diz Comte, Gutemberg ainda imprime todos os livros do mundo, e o inventor do arado trabalha, invisível, ao lado do lavrador. A herança do passado só torna possíveis os progressos do futuro e "a humanidade compõe-se mais de mortos que de vivos".
Comte distingue a sociologia estática da sociologia dinâmica. A primeira estuda as condições gerais de toda a vida social, considerada em si mesma, em qualquer tempo e lugar. Três instituições sempre são necessárias para fazer com que o altruísmo predomine sobre o egoísmo (condição de vida social). A propriedade (que permite ao homem produzir mais do que para as suas necessidades egoístas imediatas, isto é, fazer provisões, acumular um capital que será útil a todos), a família (educadora insubstituível para o sentimento de solidariedade e respeito às tradições), a linguagem (que permite a comunicação entre os indivíduos e, sob a forma de escrita, a constituição de um capital intelectual, exatamente como a propriedade cria um capital material).
A sociologia dinâmica estuda as condições da evolução da sociedade: do estado teológico ao estado positivo na ordem intelectual, do estado militar ao industrial na ordem prática - do estado de egoísmo ao de altruísmo na ordem afetiva. A ciência que prepara a união de todos os espíritos concluirá a obra de unidade (que a Igreja católica havia parcialmente realizado na Idade Média) e tornará o altruísmo universal, "planetário". A sociedade positiva terá, exatamente como a sociedade cristã da Idade Média, seu poder temporal (os industriais e os banqueiros) e seu poder espiritual (³) (os sábios, principalmente os sociólogos, que terão, à sua testa, o papa positivista, o Grão-Sacerdote da Humanidade, isto é, o próprio Augusto Comte).
Vê-se que é sobre a sociologia que vem articular a mudança de perspectiva, a mutação que faz do filósofo um profeta. A sociologia, cuja aparição dependeu de todas as outras ciências tornadas positivas, transformar-se-á na política que guiará as outras ciências, "regenerando, assim, por sua vez, todos os elementos que concorreram para sua própria formação". Assim é que, em nome da "humanidade", a sociologia regerá todas as ciências, proibindo, por exemplo, as pesquisas inúteis. (Para Comte, o astrônomo deve estudar somente o Sol e a Lua, que estão muito próximos de nós, para ter uma influência sobre a terra e sobre a humanidade e interditar-se aos estudos politicamente estéreis dos corpos celestes mais afastados!!) Compreende-se que esta "síntese subjetiva", integrando-se inteiramente no sistema de   Comte, tenha desencorajado os racionalistas que de saída viram no positivismo uma apologia do espírito científico!
A religião positiva substitui o Deus das religiões reveladas pela própria humanidade, considerada como Grande-Ser. Este Ser do qual fazemos parte nos ultrapassa entretanto - pelo gênio de seus grandes homens, de seus sábios aos quais devemos prestar culto após a morte (esta sobrevivência na veneração de nossa memória chama-se "imortalidade subjetiva"). A terra e o ar - meio onde vive a humanidade - podem, por isso mesmo, ser objeto de culto. A terra chamar-se-á o "Grande-Fetiche". A religião da humanidade, pois, transpõe - ainda mais que não as repudia - as idéias e até a linguagem das crenças anteriores. Filósofo do progresso, Comte é também o filósofo da ordem. Herdeiro da Revolução, ele é, ao mesmo tempo, conservador e admirador da bela unidade dos espíritos da Idade Média. Compreende-se que ele tenha encontrado discípulos tanto nos pensadores "de direita" como nos "de esquerda".
(³) Comte rejeita como metafísica a doutrina dos direitos do homem e da liberdade. Assim como "não há liberdade de consciência em astronomia", assim uma política verdadeiramente científica pode impor suas conclusões. Aqueles que não compreenderem terão que se submeter cegamente (esta submissão será o equivalente da fé na religião positivista).

Referências Bibliográficas:

DURANT, Will. História da Filosofia - A Vida e as Idéias dos Grandes Filósofos, São Paulo, Editora Nacional, 1.ª edição, 1926.
FRANCA S. J. Padre Leonel, Noções de História da Filosofia.
PADOVANI, Umberto e CASTAGNOLA, Luís. História da Filosofia, Edições Melhoramentos, São Paulo, 10.ª edição, 1974.
VERGEZ, André e HUISMAN, Denis. História da Filosofia Ilustrada pelos Textos, Freitas Bastos, Rio de Janeiro, 4.ª edição, 1980.
JAEGER, Werner. Paidéia - A Formação do Homem Grego, Martins Fontes, São Paulo, 3ª edição, 1995.

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