Auguste Comte e a Lei dos Três Estados
A Lei dos Três Estados: A filosofia da história, tal
como a concebe Comte, é de certa forma tão idealista quanto a de Hegel. Para
Comte "as idéias conduzem e transformam o mundo" e é a evolução da
inteligência humana que comanda o desenrolar da história. Como Hegel ainda,
Comte pensa que nós não podemos conhecer o espírito humano senão através de
obras sucessivas - obras de civilização e história dos conhecimentos e das
ciências - que a inteligência alternadamente produziu no curso da história. O
espírito não poderia conhecer-se interiormente (Comte rejeita a introspecção,
porque o sujeito do conhecimento confunde-se com o objeto estudado e porque
pode descobrir-se apenas através das obras da cultura e particularmente
através da história das ciências. A vida espiritual autêntica não é uma vida
interior, é a atividade científica que se desenvolve através do tempo. Assim
como diz muito bem Gouhier, a filosofia comtista da história é "uma
filosofia da história do espírito através das ciências".
O espírito humano, em seu esforço para explicar o
universo, passa sucessivamente por três estados:
a) O estado teológico ou "fictício"
explica os fatos por meio de vontades análogas à nossa (a tempestade, por
exemplo, será explicada por um capricho do deus dos ventos, Eolo). Este
estado evolui do fetichismo ao politeísmo e ao monoteísmo.
b) O estado metafísico substitui os deuses por
princípios abstratos como "o horror ao vazio", por longo tempo
atribuído à natureza. A tempestade, por exemplo, será explicada pela
"virtude dinâmica"do ar (²). Este estado é no fundo tão
antropomórfico quanto o primeiro ( a natureza tem "horror" do vazio
exatamente como a senhora Baronesa tem horror de chá). O homem projeta
espontaneamente sua própria psicologia sobre a natureza. A explicação dita
teológica ou metafísica é uma explicação ingenuamente psicológica. A
explicação metafísica tem para Comte uma importância sobretudo histórica como
crítica e negação da explicação teológica precedente. Desse modo, os
revolucionários de 1789 são "metafísicos" quando evocam os "direitos"
do homem - reivindicação crítica contra os deveres teológicos anteriores, mas
sem conteúdo real.
c) O estado positivo é aquele em que o
espírito renuncia a procurar os fins últimos e a responder aos últimos
"por quês". A noção de causa (transposição abusiva de nossa
experiência interior do querer para a natureza) é por ele substituída pela
noção de lei. Contentar-nos-emos em descrever como os fatos se passam, em
descobrir as leis (exprimíveis em linguagem matemática) segundo as quais os
fenômenos se encadeiam uns nos outros. Tal concepção do saber desemboca
diretamente na técnica: o conhecimento das leis positivas da natureza nos
permite, com efeito, quando um fenômeno é dado, prever o fenômeno que se
seguirá e, eventualmente agindo sobre o primeiro, transformar o segundo.
("Ciência donde previsão, previsão donde ação").
Acrescentemos que para Augusto Comte a lei dos
três estados não é somente verdadeira para a história da nossa espécie, ela o
é também para o desenvolvimento de cada indivíduo. A criança dá explicações
teológicas, o adolescente é metafísico, ao passo que o adulto chega a uma
concepção "positivista" das coisas.
(²) São igualmente metafísicas as
tentativas de explicação dos fatos biológicos que partem do "princípio
vital", assim como as explicações das condutas humanas que partem da
noção de "alma".
A Classificação das Ciências: As ciências, no decurso
da história, não se tornaram "positivas" na mesma data, mas numa
certa ordem de sucessão que corresponde à célebre classificação: matemáticas,
astronomia, física, química, biologia, sociologia.
Das matemáticas à sociologia a ordem é a do mais
simples ao mais complexo, do mais abstrato ao mais concreto e de uma
proximidade crescente em relação ao homem.
Esta ordem corresponde à ordem histórica da
aparição das ciências positivas. As matemáticas (que com os pitagóricos eram
ainda, em parte, uma metafísica e uma mística do número), constituem-se,
entretanto, desde a antiguidade, numa disciplina positiva (elas são, aliás,
para Comte, antes um instrumento de todas as ciências do que uma ciência
particular). A astronomia descobre bem cedo suas primeiras leis positivas, a
física espera o século XVII para, com Galileu e Newton, tornar-se positiva. A
oportunidade da química vem no século XVIII (Lavoisier). A biologia se torna
uma disciplina positiva no século XIX. O próprio Comte acredita coroar o
edifício científico criando a sociologia.
As ciências mais complexas e mais concretas
dependem das mais abstratas. De saída, os objetos das ciências dependem uns
dos outros. Os seres vivos estão submetidos não só às leis particulares da
vida, como também às leis mais gerais, físicas e químicas de todos os corpos
(vivos ou inertes). Um ser vivo está submetido, como a matéria inerte, às
leis da gravidade. Além disso, os métodos de uma ciência supõem que já sejam
conhecidos os das ciências que a precederam na classificação. É preciso ser
matemático para saber física. Um biólogo deve conhecer matemática, física e
química. Entretanto, se as ciências mais complexas dependem das mais simples,
não poderíamos deduzi-las de, nem reduzi-las a estas últimas. Os fenômenos
psicoquímicos condicionam os fenômenos biológicos, mas a biologia não é
uma química orgânica. Comte afirma energicamente que cada etapa da
classificação introduz um campo novo, irredutível aos precedentes. Ele se
opõe ao materialismo que é "a explicação do superior pelo
inferior".
Nota-se, enfim, que a psicologia não figura nesta
classificação. Para Comte o objeto da psicologia pode ser repartido sem prejuízo
entre a biologia e a sociologia.
A Humanidade: A última das ciências que Comte chamara
primeiramente física social, e para a qual depois inventou o nome de
sociologia reveste-se de importância capital. Um dos melhores comentadores de
Comte, Levy-Bruhl, tem razão de sublinhar: "A criação da ciência social
é o momento decisivo na filosofia de Comte. Dela tudo parte, a ela tudo se
reduz". Nela irão se reunir o positivismo religioso, a história do
conhecimento e a política positiva. É refletindo sobre a sociologia positiva
que compreenderemos que as duas doutrinas de Comte são apenas uma. Enfim, e
sobretudo, é a criação da sociologia que, permitindo aquilo que Kant
denominava uma "totalização da experiência", nos faz compreender o
que é, para Comte, fundamentalmente, a própria filosofia.
Comte, ao criar a sociologia, a sexta ciência
fundamental, a mais concreta e complexa, cujo objeto é a
"humanidade", encerra as conquistas do espírito positivo: como diz
excelentemente Gouhier - em sua admirável introdução ao Textos Escolhidos de
Comte, publicados por Aubier - "Quando a última ciência chega ao último
estado, isso não significa apenas o aparecimento de uma nova ciência. O
nascimento da sociologia tem uma importância que não podia ter o da biologia
ou o da física: ele representa o fato de que não mais existe no universo
qualquer refúgio para os deuses e suas imagens metafísicas. Como cada ciência
depende da precedente sem a ela se reduzir, o sociólogo deve conhecer o
essencial de todas as disciplinas que precedem a sua. Sua especialização
própria se confunde, pois - diferentemente do que se passa para os outros
sábios - com a totalidade do saber. Significa dizer que o sociólogo é
idêntico ao próprio filósofo, "especialista em generalidades", que
envolve com um olhar enciclopédico toda a evolução da inteligência, desde o
estado teológico ao estado positivo, em todas as disciplinas do conhecimento.
Comte repudia a metafísica, mas não rejeita a filosofia concebida como
interpretação totalizante da história e, por isto, identificação com a
sociologia, a ciência última que supõe todas as outras, a ciência da
humanidade, a ciência, poder-se-ia dizer em termos hegelianos, do
"universal concreto".
O objeto próprio da sociologia é a humanidade e é
necessário compreender que a humanidade não se reduz a uma espécie biológica:
há na humanidade uma dimensão suplementar - a história - o que faz a
originalidade da civilização (da "cultura" diriam os sociólogos do
século XIX). O homem, diz-nos Comte, "é um animal que tem uma história".
As abelhas não têm história. Aquelas de que fala Virgílio nas Geórgicas
comportavam-se exatamente como as de hoje em dia. A espécie das abelhas é
apenas a sucessão de gerações que repetem suas condutas instintivas: não há,
pois, num sentido estrito, sociedades animais, ou ao menos a essência social
dos animais reduz-se à natureza biológica. Somente o homem tem uma história
porque é ao mesmo tempo um inventor e um herdeiro. Ele cria línguas,
instrumentos que transmitem este patrimônio pela palavra, e, nos últimos
milênios, pela escrita às gerações seguintes que, por sua vez, exercem suas
faculdades de invenção apenas dentro do quadro do que elas receberam. As duas
idéias de tradição e de progresso, longe de se excluírem, se completam. Como
diz Comte, Gutemberg ainda imprime todos os livros do mundo, e o inventor do
arado trabalha, invisível, ao lado do lavrador. A herança do passado só torna
possíveis os progressos do futuro e "a humanidade compõe-se mais de
mortos que de vivos".
Comte distingue a sociologia estática da
sociologia dinâmica. A primeira estuda as condições gerais de toda a vida
social, considerada em si mesma, em qualquer tempo e lugar. Três instituições
sempre são necessárias para fazer com que o altruísmo predomine sobre o
egoísmo (condição de vida social). A propriedade (que permite ao homem
produzir mais do que para as suas necessidades egoístas imediatas, isto é,
fazer provisões, acumular um capital que será útil a todos), a família
(educadora insubstituível para o sentimento de solidariedade e respeito às
tradições), a linguagem (que permite a comunicação entre os indivíduos e, sob
a forma de escrita, a constituição de um capital intelectual, exatamente como
a propriedade cria um capital material).
A sociologia dinâmica estuda as condições da
evolução da sociedade: do estado teológico ao estado positivo na ordem
intelectual, do estado militar ao industrial na ordem prática - do estado de
egoísmo ao de altruísmo na ordem afetiva. A ciência que prepara a união de
todos os espíritos concluirá a obra de unidade (que a Igreja católica havia
parcialmente realizado na Idade Média) e tornará o altruísmo universal,
"planetário". A sociedade positiva terá, exatamente como a
sociedade cristã da Idade Média, seu poder temporal (os industriais e os banqueiros)
e seu poder espiritual (³) (os sábios, principalmente os sociólogos,
que terão, à sua testa, o papa positivista, o Grão-Sacerdote da Humanidade,
isto é, o próprio Augusto Comte).
Vê-se que é sobre a sociologia que vem articular
a mudança de perspectiva, a mutação que faz do filósofo um profeta. A
sociologia, cuja aparição dependeu de todas as outras ciências tornadas
positivas, transformar-se-á na política que guiará as outras ciências,
"regenerando, assim, por sua vez, todos os elementos que concorreram
para sua própria formação". Assim é que, em nome da
"humanidade", a sociologia regerá todas as ciências, proibindo, por
exemplo, as pesquisas inúteis. (Para Comte, o astrônomo deve estudar somente
o Sol e a Lua, que estão muito próximos de nós, para ter uma influência sobre
a terra e sobre a humanidade e interditar-se aos estudos politicamente
estéreis dos corpos celestes mais afastados!!) Compreende-se que esta
"síntese subjetiva", integrando-se inteiramente no sistema de
Comte, tenha desencorajado os racionalistas que de saída viram no
positivismo uma apologia do espírito científico!
A religião positiva substitui o Deus das
religiões reveladas pela própria humanidade, considerada como Grande-Ser.
Este Ser do qual fazemos parte nos ultrapassa entretanto - pelo gênio de seus
grandes homens, de seus sábios aos quais devemos prestar culto após a morte
(esta sobrevivência na veneração de nossa memória chama-se "imortalidade
subjetiva"). A terra e o ar - meio onde vive a humanidade - podem, por
isso mesmo, ser objeto de culto. A terra chamar-se-á o
"Grande-Fetiche". A religião da humanidade, pois, transpõe - ainda
mais que não as repudia - as idéias e até a linguagem das crenças anteriores.
Filósofo do progresso, Comte é também o filósofo da ordem. Herdeiro da
Revolução, ele é, ao mesmo tempo, conservador e admirador da bela unidade dos
espíritos da Idade Média. Compreende-se que ele tenha encontrado discípulos
tanto nos pensadores "de direita" como nos "de esquerda".
(³) Comte rejeita como metafísica a
doutrina dos direitos do homem e da liberdade. Assim como "não há
liberdade de consciência em astronomia", assim uma política
verdadeiramente científica pode impor suas conclusões. Aqueles que não
compreenderem terão que se submeter cegamente (esta submissão será o
equivalente da fé na religião positivista).
Referências
Bibliográficas:
DURANT,
Will. História da Filosofia - A Vida e as Idéias dos Grandes Filósofos, São
Paulo, Editora Nacional, 1.ª edição, 1926.
FRANCA
S. J. Padre Leonel, Noções de História da Filosofia.
PADOVANI,
Umberto e CASTAGNOLA, Luís. História da Filosofia, Edições Melhoramentos, São
Paulo, 10.ª edição, 1974.
VERGEZ,
André e HUISMAN, Denis. História da Filosofia Ilustrada pelos Textos, Freitas
Bastos, Rio de Janeiro, 4.ª edição, 1980.
JAEGER,
Werner. Paidéia - A Formação do Homem Grego, Martins Fontes, São Paulo, 3ª
edição, 1995.
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