A Filosofia de Santo Agostinho
Uma das maiores personalidades da história
universal, Santo Agostinho foi um grande retórico, um grande filósofo e um
grande santo da Igreja. Sua obra, ao mesmo tempo vasta e profunda, exerceu e
exerce muita influência em toda a cultura ocidental.
A sua vida, muito conhecida, torna-o
inteligível também para muitos não-cristãos. Retórico, homem do mundo, carnal,
fez um longo esforço para encontrar a chave da inquietação que o devorava.
Primeiro maniqueu, depois platônico, finalmente convertido, num célebre momento
que ele mesmo contou com um gênio inimitável.
Depois da conversão, e sem pretendê-lo,
é ordenado sacerdote. Chega ao episcopado da mesma maneira. E desde esse
momento, no meio de muitas vicissitudes críticas, carrega sobre si grande parte
da responsabilidade da Igreja; assim, por exemplo, no auge da heresia de
Pelágio ouem face do cisma dos donatistas. No momento da sua morte, é todo um
símbolo. Morre em Hipona quando os vândalos sitiavam a cidade. Com ele, morre a
cultura antiga e nasce outra nova. Porque Santo Agostinho foi um homem do seu
tempo. Versado em todas as artes clássicas, foi sempre um retórico de grande
habilidade, jogando com as palavras num malabarismo que conseguia sempre
escapar à superficialidade. Diríamos que o seu pensamento é tão profundo que
supera as habilidades do retórico.
Inicialmente, escreve filosofia, porém
mais tarde dedica as suas forças à pregação, sem descuidar uma enorme
correspondência. Escreve também muitos tratados teológicos, de exegese bíblica,
etc.
Não citaremos aqui as obras teológicas;
limitar-nos-emos às de caráter filosófico: Contra Acadêmicos, crítica do
ceticismo; De beata vita, sobre a felicidade; De ordine, sobre a origem do mal:
os Coliloquia, um apaixonado diálogo consigo mesmo sobre a imortalidade da alma;
De immortalitate animae; De quantitate animae, sobre a mesma questão; De
magistro, sobre a educação com um enfoque psicológico.
Santo Agostinho não construiu um
sistema filosófico completo, ainda que as idéias básicas se mantenham
constantes e acusem um claro predomínio platônico. Ele mesmo nos conta que
começou a ler uma obra de Aristóteles e não pôde prosseguir. Talvez o tenha
afastado o estilo entrecortado, desencarnado, a falta dessa alma que Santo
Agostinho buscava em tudo. Santo Agostinho não parece feito para encerrar a
realidade em categorias. A sua reflexão parte sempre da vida: das coisas que se
passam ao seu redor, das idéias dominantes, dos ataques contra a fé, da
interioridade da sua alma.
A BUSCA DA VERDADE
A filosofia agostiniana é uma constante
busca da verdade, que culmina na Verdade, em Cristo. É um movimento incessante,
uma paixão, e, precisamente, a paixão principal: o amor. “Amor meus, pondus
meum”, o amor é o peso que dá sentido à minha vida. Verdade e
Amor.“Fizeste-nos, Senhor, para Ti e o nosso coração estará inquieto enquanto
não descansar em Ti”, diz nas Confissões.
Essa “passionalidade” da filosofia
agostiniana não é em nenhum momento irracionalismo ou voluntarismo. Se incita a
ter fé para entender, também anima a entender para crer melhor. Nada nos pode
fazer duvidar da possibilidade de chegar à verdade. Nada valem os argumentos
céticos. Si fallor, sum: se me engano, é uma prova de que sou, diz,
antecipando-se, num contexto muito diferente, a Descartes. E com mais clareza:
“Sabes que pensas? Sei. Ergo verum est cogitare te, logo é verdade que pensas”.
A verdade está no interior do homem.
“Não queiras sair para fora; é no interior do homem que habita a verdade”. E há
verdades constantes, inalteráveis, para sempre. Dois mais dois serão sempre
quatro. Santo Agostinho tenta esclarecer de onde pode vir essa verdade. Não das
sensações, diz, porque essas são e não são, são mutáveis, efêmeras. Tampouco do
espírito humano, que, por profundo que seja, é limitado. Essas verdades eternas
só podem ter por autor Aquele que é eterno: Deus. São reflexos da verdade
eterna, que nos ilumina e nos permite ver. Nisso consiste o que depois ficou
conhecido como “doutrina da iluminação”; porém, desde já é preciso dizer que
Santo Agostinho não a apresenta nunca como uma “teoria”, mas como uma
comprovação. Já no final da sua vida, diz nas Retractationes que o homem tem em
si, enquanto é capaz, “a luz da razão eterna, na qual vê as verdades
imutáveis”.
Como em Platão, conhecer
verdadeiramente é estar em contato com o mundo inteligível. Porém, Santo
Agostinho nunca dirá que vemos as verdades em Deus, mas que participamos da luz
da razão eterna. Não se deve ignorar, por outro lado, que essa solução para o
tema do conhecimento corre o risco de não distinguir de forma adequada o
conhecimento natural do conhecimento sobrenatural. Mas essa é uma questão que
só será levantada mais tarde, na Idade Média.
A BUSCA DE DEUS
Em Santo Agostinho, não existem provas
formais para demonstrar a existência de Deus. Ainda que toda a sua obra seja
uma espécie de itinerário em direção a Deus. Tudo fala de Deus; basta abrir os
olhos. Ele é intimior intimo meo, mais íntimo ao homem que a própria intimidade
humana. As coisas falam-nos todo o tempo de Deus. Perguntamos-lhes: “Sois Deus?”
E respondem: “Não, fomos feitas. Continua a buscar”. De forma retórica –
retórica de grande qualidade –, encontramos aí a prova da existência de Deus
pela contingência das realidades humanas. A mutabilidáde exige o imutável; os
graus de perfeição exigem o Ser perfeito. Em Santo Agostinho, como em outros
filósofos de inspiração platônica, está claramente formulado o que será a
quarta via de São Tomás de Aquino.
Qual é o melhor nome para Deus? O que
se lê no Êxodo: “Aquele que é”. “Non aliquo modo est, sed est est”
(Confissões). Santo Agostinho dará com freqüência a Deus o nome de Bem, de
Amor, porém não desconhece que antes de tudo Ele é; e porque é o que é, é Amor,
Bem, Infinito. São Tomás de Aquino não precisará modificar nada de substancial
nesta metafísica agostiniana. Como exemplo das dezenas de textos agostinianos,
temos este, das Confissões: “Eis que o céu e a terra são; e dizem-nos em altos
brados que foram feitos, pois modificam-se e variam. Porque, naquilo que é sem
ter sido feito, não há coisa alguma agora que antes não houvesse: que isso é
modificar-se e variar. O céu e a terra clamam também que não se fizeram a si
mesmos: somos porque fomos feitos; não éramos antes que fôssemos, de modo a
termos podido ser por nós mesmos. Basta olhar para as coisas para ouvi-las
dizer isso. Tu, Senhor, fizeste essas coisas. Porque és belo, elas são belas;
porque és bom, são boas; porque tu és, elas são.”
Esta última afirmação (quia est: sunt
enim) significava a definitiva superação por parte de Santo Agostinho do essencialismo
platônico. Deus é causa do ser das coisas, porque é o Ser por essência. Se a
fórmula de Santo Agostinho não é essa, a idéia é.
O MUNDO, CRIAÇÃO DE DEUS
Outro texto das Confissões situa de
forma inequívoca a metafísica da criação: “Que eu ouça e entenda como no
princípio fizeste o céu e a terra. Moisés escreveu isso; escreveu-o e
ausentou-se. Daqui, onde estava contigo, passou a estar contigo, e por isso não
o podem ver meus olhos. Se estivesse aqui presente, eu o agarraria, lhe rogaria
e, por Ti, lhe suplicaria que me explicasse essas coisas […]. Porém, como
saberia que estava a dizer-me a verdade? A própria verdade, que está no
interior da minha alma, e que não é grega, nem latina, nem bárbara, nem
necessita dos órgãos da boca ou da língua, nem do ruído de sílabas, me diria:
Moisés diz a verdade, e eu, no mesmo instante, com toda a segurança lhe diria:
Verdade é o que me dizes”.
Voltemos à questão anterior. Deus é
Aquele que é; as coisas são criadas. Deus é quem lhes deu o ser. Por quê? Por
pura bondade. “Porque Deus é bom, somos.” A razão da criação é a bondade de
Deus. Deus não pode ter, no seu querer, outro fim que não o seu próprio ser. Só
em relação a si mesmo pode querer mais. A criação é gratuita. Não há nada
preexistente. Santo Agostinho acaba com as dúvidas de Orígenes e com o universo
grego, eterno.
Deus cria todas as coisas do nada. E
todo o criado é composto de matéria. Santo Agostinho, que durante tanto tempo
não conseguiu conceber uma substância espiritual, não deixa de atribuir uma
certa materialidade mesmo às criaturas espirituais, aos anjos. A absoluta
imaterialidade só cabe a Deus. Em Deus estão as idéias exemplares de todas as
coisas, que são as formas. Ao criar, essas idéias ficam limitadas pela matéria,
mas, ao mesmo tempo, nessa matéria já estão os germes de tudo o que será: as
rationes seminales.
Santo Agostinho retoma aqui uma
doutrina de origem estóica e, ao mesmo tempo, faz uma concessão ao
“materialismo” que professou durante anos, embora talvez seja melhor empregar o
termo de “corporeismo”.
O ENIGMA DO HOMEM
“O homem que se espanta é ele mesmo
grande maravilha”. “E dirigi-me a mim mesmo e disse: Tu quem és? E respondi-me:
Homem. E eis que tenho à mão o corpo e a alma, um exterior e o outro interior.
Porém, melhor é o interior”. “O homem é um ser intermediário entre os animais e
os anjos”. “Nada encontramos no homem além de corpo e alma; isso é todo o homem:
espírito e carne”. Essas são apenas algumas das numerosas referências que
poderíamos dar sobre esta questão crucial. São os dois grandes temas
agostinianos: “Deus e o homem”. “Que te conheça a ti e que me conheça a mim
mesmo”. É o famoso princípio dos Soliloquia: “Quero conhecer Deus e a alma.
Nada mais? Absolutamente nada mais”.
Também nesta questão Santo Agostinho
trai a influência do platonismo. O homem é uma alma que usa um corpo; ou, uma
alma racional, que se serve de um corpo terrestre e mortal; ou, “uma alma
racional que tem um corpo”. Tudo indica que, para Santo Agostinho, o homem é a
alma. E, contudo, há textos que parecem fugir ao platonismo: “Porque o homem
não é só corpo ou apenas alma, mas o que é constituído de alma e de corpo. Esta
é a verdade: a alma não é todo o homem, mas é a melhor parte do homem; nem todo
o homem é o corpo, mas a porção inferior do homem; quando as duas estão juntas,
temos o homem” (A Cidade de Deus). A questão ainda está sujeita a discussão,
mas exagerou-se demais o platonismo de Santo Agostinho neste particular. De
qualquer forma, Santo Agostinho supera a desvalorização do corporal, tão
essencial no platonismo e no neoplatonismo. O corpo é matéria, criação de Deus,
e por isso, bom. Não é o cárcere nem o túmulo da alma: “Não é o corpo o teu
cárcere, mas a corrupção do teu corpo. O teu corpo, Deus o fez bom, porque Ele
é bom”. Também aqui poderíamos multiplicar os textos: “Todo aquele que quer
eliminar o corpo da natureza humana desvaira”. E de forma inequívoca, numa obra
tardia, o Sermão 267: “Perversa e humana filosofia é a dos que negam a
ressurreição do corpo. Alardeiam serem grandes depreciadores do corpo, porque
crêem que nele estão encarceradas as suas almas, por delitos cometidos em outro
lugar. Porém, o nosso Deus fez o corpo e o espírito; de ambos é o criador; de
ambos o recriador”.
Examinemos uma dificuldade
classicamente agostiniana. Deus é o criador da alma, mas como a criou? Com os
nascimentos surgem constantemente homens, isto é, corpo e alma. Será que as
almas estão nas “razões seminais”, na matéria, e são transmitidas pelos pais,
na geração? Santo Agostinho assim o pensou por certo tempo, mas depois recusou
que algo espiritual pudesse surgir da matéria. Pensou na criação imediata por
Deus de cada alma, mas esse início no tempo de algo espiritual não combinava
com o que ainda restava de platonismo nele. Acabou confessando que não sabia o
que dizer. Era mais um elemento desse enigma que é o homem.
Fica claro que a alma é imortal, porque
conhece as verdades imortais e eternas. Que conheçamos o que seja a verdade e
que nunca deixará de sê-lo é, para Santo Agostinho, evidente. Como pode morrer
ou desaparecer o que é a sede do indestrutível?
A alma será sempre um mistério. Muitas
outras realidades sobre as quais pensamos também o são. O tempo. É famoso o
dito agostiniano: “Se ninguém mo pergunta, sei; mas se quero explicá-lo a quem
mo pergunta, não o sei”. Depois de uma análise do passado, do presente e do
futuro – até hoje não superada –, Santo Agostinho concluí: “Não se diz com
propriedade «três são os tempos: passado, presente e futuro»; talvez fosse mais
apropriado dizer: «presente das coisas futuras, presente das coisas passadas,
presente das coisas presentes». Porque essas três presenças têm algum ser na
minha alma, e é somente nela que as vejo. O presente das coisas passadas é a
memória; o presente das coisas presentes é a contemplação; o presente das
coisas futuras é a expectação” (Confissões). O tempo é, assim, distensio animi,
“uma espécie de extensão da nossa alma”. É preciso ler ao menos esse livro XI
das Confissões para captar o tom da filosofia agostiniana: incerta às vezes,
nada dogmática, em diálogo constante com Deus.
A COMPLEXIDADE DA HISTÓRIA
A Cidade de Deus é mais uma das grandes
obras universais que Santo Agostinho legou à humanidade. Mas poucos escritos
têm sido tão mal lidos, tão mal interpretados. A oposição entre Cidade de Deus
e Cidade terrena foi vista como oposição entre Igreja e Estado. Nada mais
falso. O texto célebre não deixa lugar a dúvidas. Dois amores criaram duas
cidades: o amor próprio, que leva ao desprezo de Deus, a terrena; o amor de
Deus, que leva ao desprezo de si mesmo, a celestial. Ou: “Dividi a Humanidade
em dois grandes grupos. Um é o daqueles que vivem segundo o homem; o outro, o
dos que vivem segundo Deus. Damos misticamente a esses dois grupos o nome de
cidades, que quer dizer sociedades de homens”.
A prova fundamental de que essa divisão
não é equivalente à divisão Igreja-Estado é a afirmação taxativa de que na
Igreja podem existir homens que, na realidade, pertencem à cidade terrena; e,
inversamente, entre as pessoas que ainda estão fora da Igreja podem-se
encontrar predestinados à cidade celestial. Por outro lado, essas duas
“cidades” acham-se misturadas, imbricadas. A “peneira” será feita só no final
de cada história pessoal e no final da história de todo o gênero humano.
Enquanto transcorre o tempo, com as suas variações, “porque não em vão são
tempos”, a história é complexa. Não existe uma “lei da história”, não
conhecemos o futuro. Só Deus conhece o final; o homem move-se às apalpadelas no
campo da história. A história forma como que um belo poema, no qual intervêm
Deus e o homem. O final só será conhecido quando soar a última nota.
Em uma palavra: a concepção de história
é, em Santo Agostinho, uma concepção aberta. O seu “providencialismo” não é uma
afirmação de “teocracia”. Não se pode extrair da filosofia-teologia da história
de Santo Agostinho argumentos para o césaro-papismo ou para qualquer outra
confusão do religioso com o político. A importância desta filosofia-teologia da
história ressalta mais quando se tem em conta que em toda a história da
filosofia será preciso esperar Hegel para encontrar outra concepção igualmente
global e completa (embora em Hegel ela tenha um sentido panteísta).
FONTE: “História
básica da filosofia”, Editora Nerman, São Paulo, 1988, págs. 70-74.
Fonte de Estudos e Pesquisa: http://www.paraclitus.com.br/2013/veritas/filosofia/a-filosofia-de-santo-agostinho/
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