[Arqueologia
Bíblica] O Êxodo
Figura 1 – Travessia do mar pelo povo hebreu após
saída do Egito
E
quanto à presença de hebreus no delta do Nilo? Podemos acreditar acreditar que
foram os descendentes de Jacó que construíram alguns dos monumentos hoje
encontrados no Egito? Entre os modernos cidadãos do Cairo (mulçumanos na sua
maioria) chega a ser uma “tolice” supor tal possibilidade. Certa vez, fiz o
teste de perguntar a um guia junto às pirâmides de Saqqara, qual a sua opinião
sobre a possibilidade dos hebreus haverem contruído alguns daqueles monumentos.
Seu semblante que havia sido alegre durante todo o dia decaiu repentinamente e
percebi logo que falar de “história hebraica” num ambiente islâmico era algo
proibido, mesmo se tratando do Egito que mantêm relações diplomáticas com
Israel. Assim, fico me perguntando se o motivo por detrás da negação do Êxodo
não é, na verdade, um preconceito étnico recheado de razões políticas que temem
fermentar o conflito árabe-israelense caso se confirme o triunfo hebreu
descrito na Bíblia.
Mas
o método científico não deve contemplar nenhum tipo de xenofobismo. Uma
pesquisa séria, desprovida de nacionalismos, deve ser feita para averiguar a
realidade dos fatos que nos interessam. Realmente, devemos admitir que não foi
encontrada ainda uma menção direta nas fontes egípcias acerca da opressão dos
hebreus ou da saga de Moisés.
Afinal, como dissemos, ainda há muito a ser descoberto sobre a própria história
dos faraós. Ademais, lembremos, havia a prática de alguns monarcas apagarem dos
monumentos oficiais, relatos de conquistas que aconteceram antes de seu governo
e, em virtude disso, muita coisa está definitivamente perdida. Entretanto,
existem algumas preciosas evidências que nos levam a crer que a Bíblia esteja
correta ao contar esta magnífica história do Êxodo.
O
próprio relado da opressão possui um detalhe que não pode ser passado por alto.
O texto bíblico diz que:
“os egípcios, com tirania, faziam
servir os filhos de Israel e lhes fizeram amargar a vida com dura servidão, em
barro, e em tijolos, e com todo o trabalho no campo” (Êxodo 1:13-14)
É
impressionante ver que até hoje moradores pobres das margens do Nilo mantêm a
mesma prática milenar de produzir tijolo com barro tirado do próprio rio e
misturá-lo com palha como, aliás, a Bíblia menciona acerca dos hebreus, em
Êxodo 5:6.
Esse
episódio, caso não fosse real, só poderia ter sido criado a partir de coisas
que o escriba estivesse acostumado a ver. Contudo, é significativo o fato de
que o fabrico de tijolos não era corrente em Jerusalém, onde as edificações
eram normalmente feitas de pedras. O mesmo se pode dizer dos babilônicos que,
embora fabricassem tijolos, os faziam com técnicas muito mais avançadas que os
egípcios, usando, inclusive, fornos elevados a altas temperaturas que
dispensavam o secamento do tijolo à luz do sol. Portanto, só resta sugerir que
o autor bíblico descrevia uma prática que ele mesmo testemunhara não na
Babilônia ou em Jerusalém, mas no próprio Egito.
O
dia a dia das olarias egípcias está bem preservado em vários desenhos que
decoram as paredes das tumbas egípcias. Uma, em especial, merece ser
mencionada. Ela pertenceu a um vizir chamado Rekhmire, que viveu sob o domínio
de Tutmés III, cerca do século 15 a.C., isto é, perto da época do Êxodo. Ali
temos várias cenas de trabalhadores braçais semitas (muitos deles, certamente
hebreus) fabricando tijolos, à semelhança do que descreve o relato bíblico. Os
capatazes egípcios são representados com varas nas mãos chicoteando
impiedosamente os trabalhadores escravos.
Desenhos ornamentais encontrados num dos templos de Tebas, mais precisamente no complexo de Karnac, mostram a figura de um egípcio tendo em sua mão uma vara levantada, dizendo aos trabalhadores: “a vara está em minha mão! Não sejam preguiçosos!”. Noutra parede, um relevo de Tutmés III mostra o faraó em pessoa espancando um escravo siro-palestino (ou seja, hebreu) e levantando-o pelos cabelos em sinal de extrema humilhação. O escravo, que acabara de ser subjugado, ergue as mãos implorando misericórdia. Foi uma cena dessas que serviu de impulso para explodir a ira de Moisés, levando-o a matar o feitor egípcio (Êxodo 2:11-15).
Um
dos principais capitães do faraó Ahmose I, que liderou suas tropas na guerra
contra os hicsos, também se chamava Ahmose (talvez em homenagem ao rei que ele
tanto admirava!). Sua tumba foi descoberta pelos arqueólogos e hoje pode ser
visitada na vila de El-Mahamid, a poucos quilômetros ao sul de Luxor. As paredes
do túmulo seguem a cultura egípcia de descrever a vida do morto e,
portanto, estão repletas de inscrições contando as proezas do capitão a serviço
do faraó. O texto descreve sua coragem frente aos inimigos hicsos e relata o
nome de dezenove escravos que lhe foram dados pelo próprio rei como prêmio
pelas batalhas vencidas. O curioso é que a maioria dos alistados tem nomes
semitas, pelo que não nos parece impossível supor, com boa probabilidade de
acerto, que se tratassem de escravos hebreus! Não podiam ser escravos hicsos
(embora também fossem semitas) porque esses, quando dominavam o Baixo Egito,
adotaram inteiramente os costumes egípcios. Não somente se autoproclamaram
“faraós”, como também seguiram a religião local e assumiram nomes totalmente
egípcios para si e seus filhos. Portanto, os hebreus ainda permanecem como os
mais fortes candidatos para a lista encontrada no túmulo de Ahmose.
AS PRAGAS
De
todas as evidências que poderíamos citar a favor do Êxodo, nenhuma é tão
espetacular quanto o testemunho externo das pragas que ocorreram no Egito. Ao
que tudo indica, esse foi um vexame notório que ficou registrado por muitos
anos na mente do povo. Tanto é assim que Deodoro Siculo, um tardio historiador
grego do 1° século a.C., escreveu o seguinte testemunho que permanece até hoje:
“Nos tempos antigos houve uma grande
praga no Egito e muitos a atribuíram ao fato de Deus estar ofendido com eles
por causa dos estrangeiros que estavam em seu país (…) Os egípcios concluíram
que, a menos que os estrangeiros fossem mandados embora de seu país, eles
jamais se livrariam de suas misérias. Sobre isso, conforme nos informaram
alguns escritores, os mais eminentes e estimados daqueles estrangeiros que
estavam no Egito foram obrigados a deixar o país (…) [portanto] eles se retiraram
para a província que agora se chama Judéia. Ela não fica longe do Egito e
estava desabitada na ocasião. Aqueles emigrantes foram pois conduzidos por
Moisés, que era superior a todos em sabedoria e poder. Ele lhes deu leis e
ordenou que não fizessem imagens de deuses, pois só há um Deus no céu que está
sobre tudo e é Senhor de tudo”[1]
As
ruínas da cidade de Avaris também possuem marcas do que poderiam ser as pragas
do Egito. Não obstante, o papiro de Ipuwer, encontrado no Egito em 1820, é o
que mais nos interessa por sua clara conexão com o Êxodo. Imediatamente após
descoberto, ele foi levado para o museu da Universidade de Leiden, na Holanda,
onde permanece até hoje. Seu texto, decifrado originalmente por Alan H.
Gardner, só veio a público após 1909 e revelou um conteúdo surpreendente.
Figura
4 – Papiro de Ipuwer, sacerdote egípcio, que descreve algumas pragas relatadas
em
Êxodo 7
Trata-se
de um lamento e admoestação cerimonial escrito por um antigo sacerdote egípcio
chamado Ipuwer. Ele se dirige diversas vezes ao faraó, questionando acerca do
que estaria acontecendo na terra do Nilo. Afinal, segundo sua declaração:
“Os estrangeiros [hebreus?] vieram
para o Egito (…) [eles] têm crescido e estão por toda parte [lit. “em todos os
lugares, eles se tornaram gente”] (…) o Nilo se tornou em sangue (…) [as casas]
e as plantações estão em chamas (…) a casa real perdeu todos os seus escravos
(…) os mortos estão sendo sepultados pelo rio (…) os filhos dos nobres estão
morrendo inesperadamente (…) o [nosso] ouro está no pescoço [dos escravos?] (…)
o povo do oásis está indo embora e levando as provisões para o seu festival
[religioso?]”[2]
Essas
palavras nos soam muito parecidas com as pragas descritas em Êxodo 7:14-24,
especialmente a primeira e a última. A referência aos escravos que agora
se vão e ainda levam consigo algumas riquezas parecem ecoar o comentário
bíblico de que os hebreus foram e “pediram aos egípcios objetos de prata e
ouro (…) de modo que estes lhes davam o que pediam. E despojaram os
egípcios” (Êxodo 12:35-36).
Ainda
existe um debate acerca do período ao qual as admoestações de Ipuwer se
referem. Embora o manuscrito tenha sido escrito entre a 19° ou 20°dinastia
(1335-110 a.C.) seu original certamente pertence a um tempo anterior. Não tão
antigo como propõe John Wilson (que atribui a antes de 2050 a.C.)[3], nem no
período hicso, como faz supor Van Seters[4], mas certamente nalguma ocasião
imediatamente anterior ao Êxodo, quando as pragas castigavam o delta do Nilo.
O FARAÓ DO ÊXODO
Existe
um detalhe em Êxodo 1:11 que ainda intriga os pesquisadores. O texto diz:
“E os israelitas edificaram a Faraó
as cidades-celeiro, Pitom e Ramesses”.
Que
cidades seriam essas? Embora não exista hoje no Egito nenhuma metrópole com
tais nomes, é certo que houve um faraó chamado Ramsés II que governou de
1292-1225 a.C., durante a 19° dinastia, e construiu uma cidade chamada
Pi-Ramese ou “casa de Ramsés”.
Um
sítio arqueológico localizado por volta da década de 1930, em Tânis (atual San
el-Hagar), a nordeste do delta, revelou a presença de enormes edifícios e
várias estátuas de Ramsés. Desde então, os especialistas passaram a crer que
seria essa a cidade mencionada em Êxodo e que teria sido edificada pelos
hebreus.
Contudo,
estudos posteriores enfraqueceram tal hipótese. Percebeu-se que as pedrarias,
monumentos e inscrições desenterradas em Tânis não estavam em sua posição
original, algumas jaziam de ponta cabeça, ou viradas para o lado. Os alicerces,
também não coincidiam com a estrutura que estava por cima deles. Logo, o mais
provável é que o templo e outros edifícios não pertencessem àquele lugar, mas
tivessem sido transportados para ali, bloco por bloco, numa data bem posterior
ao reinado de Ramsés II.
Hoje,
o consenso quanto à localização original de Pi-Ramese é o de identificá-la com
a moderna Tell el-Dab’a, ou seja, o mesmo sítio que abriga as possíveis ruínas do palácio de José e que mencionamos em
capítulo anterior. Ela se localiza a trinta quilômetros de Tanis, e
a menos de três da moderna Khatana-Qantir. De quando em vez, escavações locais
ainda desenterram ali azulejos reluzentemente petrificados e pequenas
estruturas arquitetônicas, mas quase não dá para enxergar nada acima do chão.
Só para lembrar, foi neste mesmo sítio que se localizava a antiga Avaris,
capital dos hicsos durante sua permanência no Egito.
Quanto
à cidade de Pitom, os especialistas acreditam que seria uma corruptela hebraica
do nome egípcio Pi-Atum, isto é, “casa de Atum (o deus sol)”. Sua
localização é mais difícil de ser determinada. Alguns egiptólogos a
identificaram no passadocom a moderna Tell el Maskhuta, que fica na região
oriental do delta. Mas ainda hoje não se têm certeza absoluta sobre sua
localidade.[5]
Sobra-nos,
no entanto, um último problema: se, com base em Êxodo 1:11, considerarmos
Ramsés II, o faraó da opressão e seu sucessor Merneptá (1225-1215 a.C.) o faraó
do Êxodo, teremos um conflito com o texto de 1 Reis 6:1 que diz que o 4° ano do
reinado de Salomão ocorreu 480 anos depois que os filhos de Israel saíram do
Egito. Ora, embora as datas do período monárquico ainda oscilem cerca de 10
anos, o quarto ano de Salomão deve corresponder mais ou menos a 967 a.C., que é
a data proposta pela clássica obra de Edwin Thiele, The mysterious
numbers of the hebrew kings.[6]
Assim,
somando 480 a 967 (pois as datas a.C. são em ordem decrescente) chegamos a 1447
a.C. como sendo o ano-limite para a ocorrência do Êxodo. Essa não é uma data
exata, é claro. Estudos recentes publicados por E.W. Faulstich (baseados em
pesquisa astronômica de Oliver R. Blosser)[7] têm sugerido uma conversão de
calendários que retardaria o Êxodo para pelo menos 1461 a.C. De qualquer modo,
um período muito anterior ao reinado de Ramsés II!
Para
mim, uma maneira simples, porém não absoluta, de resolver essa aparente
incongruência seria sugerir que a descrição do Êxodo tenha recebido uma pequena
adição editorial, nalgum manuscrito posterior a Moisés. Isso não é, de modo
algum, um endosso à alta-crítica, mas a admissão de pequenas anotações
explicativas que não teriam porque serem barradas pela Providência uma vez que
não maculam o texto bíblico. Deuteronômio 24, por exemplo, que descreve a morte
de Moisés, certamente não foi escrito por ele mesmo!
Seguindo
essa suposição, creio que o problema fica amenizado se entendermos que um
escriba posterior “atualizou” o texto, para indicar que aquela cidade que os
hebreus edificaram tinha, na atualidade, o nome de Ramesses. Tal acréscimo não
seria de modo algum um erro, se lembrarmos que nossos livros de história convencionalmente
dizem que Colombo descobriu a “América”, embora todos saibamos que em 1492
(data da descoberta) ainda não havia nenhum continente com esse nome.
Nossa
conclusão, portanto, é que o Êxodo ocorreu em algum período anterior a 1447
a.C. e os contemporâneos da trama seriam: Tutmés II, meio irmão e marido de
Hatsepsut, a princesa que adotou Moisés, e Tutmés III, filho de Tutmés II, mas
não de Hatsepsut (que embora tenha gerado duas filhas, parece não ter tido
nenhum filho homem). Esse possivelmente tenha sido um inimigo natural de
Moisés, a quem Hatsepsut queria empossar no trono. Porém, com a fuga do hebreu
para Midiã, o caminho ficou livre para ele assumir o trono no lugar de Moisés.
E, por fim, temos Amenófis II (também chamado Amenhotep II), o possível faraó
do Êxodo, embora se assim for, resta saber a identidade daquele que se afogou
sob as águas do Mar Vermelho.[8]
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
- Diodorus
Siculus, The library of history. (Cambridge: Harvard
University Press, 1993), 12 v.
- ANET,
p. 441-444.
- John
Wilson, em ANET, p. 441.
- John
Van Seters, The Hyksos (New Haven: Yale University Press,
1960), p. 103-120.
- E.
Uphil, Pithom and Ramses: Their location and significance,
Journal of Near East Studies 28 (1969(, p. 15-39.
- Edwin
R. Thiele, The mysterious numbers of the hebrew kings (Grand
Rapids: Zondervan, 1983).
- Citado
por Randall Price, The stones cry out (Eugene: Harvest
House Publishers, 1997), p. 411, nota 16.
- SDABC, v.1, p. 1102.
- http://www.bibliaonline.com.br - Biblia Sagrada
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