- Refletir biblicamente e contextualmente sobre o que é a igreja de Cristo e como ela deve ser agente do Reino de Deus no mundo.
- Analisar criticamente nossos modelos de eclesiologia sobre como o povo de Deus se relaciona com o Senhor, como se organiza organicamente e como se relaciona com o mundo em missão.
- Pensar sobre como a igreja e o Reino devem ser vividos neste dias entre a primeira e a segunda vinda de Jesus.
1. Aspectos bíblicos e históricos
1.1 Jesus e a mensagem do reino
Nos evangelhos sinóticos, a mensagem pregada por Jesus é identificada como “o evangelho [boas novas] do reino” (Mt 4.23; 9.35; 24.14; Mc 1.14-15; Lc 4.43; 8.1; 16.16). Esse reino é o “reino de Deus” ou sua expressão sinônima “reino dos céus”, que ocorre somente em Mateus (3.2; 4.17, etc.; ver, porém, 12.28; 19.24; 21.31,43). O Evangelho de João usa poucas vezes a expressão “reino de Deus” (só em 3.3,5), possivelmente substituindo-a por conceitos equivalentes, como “vida eterna”. Ao todo, a expressão ocorre mais de 80 vezes nos evangelhos.
1.2 O reino de Deus no Antigo Testamento
O conceito do reinado ou senhorio de Deus era familiar aos ouvintes de Jesus, estando presente no Antigo Testamento. Desde o início, Deus deixou claro que ele era o verdadeiro rei de Israel. Quando o povo pediu um rei humano, o Senhor manifestou o seu desagrado (1 Sm 8.5-7). A idéia de Deus como rei está presente em todas as Escrituras Hebraicas (Dt 33.5; Jz 8.23; Is 43.15; 52.7), em especial nos Salmos (10.16; 22.28; 24.7-10; 47.2,7-8; 93.1; 97.1; 99.1,4; 103.19; 145.11-13). Algumas passagens identificam o reino de Deus com o reino de Davi (1 Cr 17.14; 28.5; 29.11; Jr 23.5; 33.17). Esse reino será eterno e só alcançará a sua consumação em um tempo futuro, assumindo feições escatológicas (Dn 2.44).
1.3 Diferentes entendimentos
Nos dias de Jesus, os judeus piedosos esperam a vinda do reino (Mc 15.43; Lc 23.51). Após séculos de dominação estrangeira, havia a tendência de se entender o reino politicamente – a restauração do antigo reino de Israel. A vinda do reino seria a repentina intervenção de Deus na vida do seu povo, libertando-o de seus opressores e restaurando a sua liberdade, independência e prosperidade como nos dias de Davi. Até mesmo os discípulos de Jesus tinham essa expectativa (Mt 20.21; Mc 11.10; Lc 19.11; At 1.6).
1.4 O aspecto cronológico
Nos evangelhos, o reino num certo sentido já estava presente (Mt 12.28; Lc 17.21); todavia, a ênfase principal está na iminência da sua chegada (Mt 3.2; 4.17; 10.7; Mc 1.15; 9.1; Lc 9.27; 10.9,11; 19.11; 21.31). Muitas passagens falam do reino como uma realidade futura, escatológica (Mt 8.11s; 13.43; 26.29; Mc 14.25; Lc 13.28s; 14.15; 22.16,18; 23.42; 1 Co 15.50; 1 Ts 2.12; 2 Tm 4.1,18; Tg 2.5; 2 Pe 1.11; Ap 11.15; 12.10).
1.5 A proclamação do reino
Além de anunciar o reino (Lc 9.11; At 1.3) e revelar os seus mistérios (Mt 13.11; Mc 4.11), Jesus incumbiu os seus discípulos de fazerem o mesmo (Mt 10.7; 24.14; Lc 9.2,11,60); a igreja primitiva fez isso (At 8.12; 19.8; 20.25; 28.23,31; Cl 4.11).
1.6 As características do reino
O Novo Testamento aponta as características do reino. É uma dádiva do Pai: Lc 12.32; equivale à vida eterna: Mc 9.47; é uma realidade interior: Lc 17.20s; é algo novo: Mt 11.11s; Lc 7.28; 16.16; agora inclui trigo e joio: Mt 13.24,47; cresce silenciosamente: Mt 13.31,33,38,41; Mc 4.26,30; representa graça e juízo: Mt 18.23; 20.1; os filhos do reino podem perdê-lo: Mt 21.31,43; 22.2; Lc 13.28s; alguns não o herdarão: 1 Co 6.9s; 15.50; Gl 5.21; Ef 5.5; não consiste em palavra, mas em poder: 1 Co 4.20. Cristo deu a Pedro e aos demais apóstolos as chaves do reino: Mt 16.19; 18.18. Há também o reino de Cristo: Mt 16.28; Lc 22.29s; Jo 18.36; 1 Co 15.24; Cl 1.13; 2 Tm 4.1.
1.7 Os sinais da presença do reino
Entre os sinais da presença do reino estão: humildade: Mt 5.3; justiça: Mt 5.10; 6.33; justiça, paz e alegria: Rm 14.17; amor a Deus e ao próximo: Mc 12.34; obediência: Mt 5.19s; fazer a vontade de Deus: Mt 6.10; 7.21; 21.31,43; dependência de Deus e confiança nele (ricos e pobres): Mt 19.23s; Mc 10.23-25; Lc 6.20; solidariedade com os sofredores: Mt 25.34; fidelidade: Lc 19.11ss; vigilância: Mt 25.1; requer novo nascimento: Jo 3.3,5.
1.8 Nossa atitude
Também é enfatizada a nossa atitude para com o reino: buscá-lo acima de tudo: Mt 6.33; recebê-lo como uma criança: Mt 18.1-4; 19.14; renunciar a outras coisas por ele: Mt 19.12,29; Mc 9.47; 10.29; Lc 18.29; sofrer por ele: At 14.22; 2 Ts 1.5; apossar-nos dele como de um tesouro: Mt 13.44-46; não olhar para trás: Lc 9.62.
2. Interpretações
O “reino de Deus” é um dos conceitos mais frutíferos e ao mesmo tempo controvertidos da teologia cristã. Nos dias de Jesus, entre os judeus, a expressão era usada em pelo menos três sentidos diferentes: (a) o reino eterno e invisível de Deus, que é independente da resposta ou do conhecimento humano (Sl 145.13); (b) a realização do reino de Deus em grupos ou indivíduos que aceitam a sua soberania (por exemplo, se diz que um prosélito “tomou sobre si o jugo do reino de Deus”); (c) o reino escatológico no fim da história, quando todos reconhecerão a soberania de Deus.
Os evangelhos deixam claro que há uma relação indissolúvel entre Jesus e o reino. Ele não somente anuncia o reino, mas a sua pessoa e obra são elementos essenciais do reino. Em Jesus, o reino de Deus se tornou uma realidade muito mais plena no mundo do que já havia sido até então. Jesus exemplificou de maneira suprema a submissão à vontade de Deus que é a característica mais importante do reino de Deus. Assim sendo, em sua pregação os apóstolos associavam o reino de Deus com a mensagem acerca de Jesus (At 8.12; 28.23,31; Cl 1.13).
3. O reino de Deus na história
Assim como nos dias de Jesus, ao longo da história da igreja o “reino de Deus” tem sido objeto de diferentes entendimentos. Orígenes afirmou que o próprio Jesus era o reino; alguns entendem que o reino se refere a um relacionamento apropriado com Deus; outros o têm identificado com a igreja visível ou com uma ordem social transformada; ainda outros têm insistido que Jesus se referia a uma intervenção apocalíptica da parte de Deus.
Esse conceito tem sido utilizado tanto para sustentar o status quo quanto para inspirar ideais revolucionários e contestadores. Desde a época de Agostinho tem havido a tendência de institucionalizar o conceito do reino identificando-o com a igreja. Embora o reino já esteja presente no mundo, ele ficaria circunscrito à igreja. Outra posição vê o reino como futuro, ainda que iminente. É o caso de movimentos apocalípticos como o montanismo do 2º século e muitos outros através dos séculos.
Nos Estados Unidos do final do século 19 e início do século 20 (1880-1930), o chamado “evangelho social” deu grande ênfase ao conceito do “reino de Deus”. Seu principal expoente foi Walter Rauschenbusch (1861-1918), um pastor batista de origem alemã. Procurando responder aos problemas sociais das grandes cidades norte-americanas num contexto de crescente industrialização, urbanização e imigração, o movimento apregoou a “implantação do reino de Deus na terra” e a necessidade de uma “sociedade redimida”. O reino de Deus passou a ser visto exclusivamente em termos de transformação da sociedade e justiça social. Um livro foi particularmente influente no sentido de popularizar as idéias do evangelho social: Em Seus Passos que Faria Jesus (1897), de Charles Sheldon.
Em seu livro O Reino de Deus na América (1937), H. Richard Niebuhr demonstrou que o tema do reino de Deus dominou o pensamento teológico americano desde o início. Esse conceito teve diferentes sentidos ao longo do tempo, desde a soberania de Deus na época dos puritanos e de Jonathan Edwards, passando pelo reino de Cristo na época dos avivamentos do século 19, até o reino terrenal de Deus no liberalismo do início do século 20. Para os liberais, o reino de Deus “não era um reino celestial de outra vida muito distante e futura, e sim o reino de amor e justiça nesta terra, tão completamente e tão rapidamente quanto possível”. A I Guerra Mundial (1914-1918), a quebra da bolsa de Nova York (1929) e outros eventos negativos destruíram as esperanças otimistas dos liberais.
4. Significado para hoje
No seu sentido amplo, o reino é um símbolo da vontade de Deus que pode ser realizada em situações particulares através da obediência humilde, mas que nunca é plenamente concretizada dentro das fronteiras da história por causa das limitações humanas. O reino fala de uma tensão: como Cristo já veio ao mundo, morreu e ressuscitou, há uma dimensão presente do reino. Como Cristo ainda não voltou para pôr fim à realidade presente e instaurar os novos céus e terra, o reino é também futuro.
Assim sendo, o reino está presente em parte, mas a sua manifestação final permanece uma esperança para o futuro. O cristão sabe que o reino veio num novo sentido em Cristo, que ele pode vir na sua própria vida, mas que ainda não veio plenamente. Desse modo, ele vive no mundo presente como um cidadão obediente desse reino, ao mesmo tempo em que ora com esperança confiante: “Venha o teu reino”.
Porque o reino é de Deus, ele não virá como resultado do esforço humano. Não é sustentável a visão otimista de que o desenrolar da história está trazendo os estágios finais do reino. Este não pode ser entendido como um conceito evolutivo ou primariamente como um conceito moral e ético. Por outro lado, os cristãos sabem que devem orar e trabalhar para que o reino se faça cada vez mais presente; eles sabem que, pelo menos em algumas áreas ou situações, a realidade do reino pode ser tornar mais palpável neste mundo caído.
5. O reino e a igreja
5.1 O que é a igreja
A igreja é o conjunto daqueles que crêem em Cristo e que se associam uns aos outros por causa da sua fé comum. À luz das Escrituras, a igreja é uma realidade essencialmente corporativa, comunitária. Ela é descrita como o corpo de Cristo, a família da fé, o povo de Deus, um rebanho, um edifício e outras figuras que acentuam o seu caráter de comunidade e solidariedade.
Os propósitos da igreja são basicamente cinco: adoração, comunhão (koinonía), edificação, proclamação (kégygma), serviço (diakonía). Esses propósitos apontam para três dimensões essenciais da vida da igreja: seu relacionamento com Deus, seus relacionamentos internos e seu relacionamento com o mundo. A missão da igreja se relaciona principalmente com os dois últimos aspectos: proclamação e serviço.
5.2 Igreja e reino
O Novo Testamento não identifica a igreja com o reino de Deus. Obviamente há uma relação entre ambos, mas não uma coincidência plena. A igreja tem limites claros, assume formas institucionais, tem líderes humanos. Nada disso se aplica ao reino de Deus, que é mais intangível, impalpável. Este é uma realidade que transcende os limites da igreja e que pode não estar presente em todos os aspectos da vida da igreja. É como dois círculos que se sobrepõem em parte e que se afastam em parte. Historicamente, a igreja por vezes tem se harmonizado com o reino, outras vezes tem estado em contradição com ele.
Todavia, dada a importância da igreja no propósito de Deus, ela é chamada para expressar a realidade do reino, para ser o principal agente do reino de Deus no mundo. Para que isso aconteça, a igreja e seus membros precisam manifestar os sinais do reino, ser instrumentos do reino na vida das pessoas, da sociedade, do mundo. Sempre que a igreja busca em primeiro lugar a glória de Deus, fazer a vontade de Deus, viver uma vida se humildade, amor, abnegação, altruísmo, solidariedade, etc., ela se torna agente e instrumento do reino.
O reino pode se manifestar, e com freqüência se manifesta, fora dos limites institucionais da igreja. Quando isso ocorre, a igreja deve se regozijar com essas manifestações, apoiá-las e incentivá-las. Todavia, existem aspectos do reino que só a igreja pode evidenciar, principalmente a proclamação do evangelho, das boas novas do amor de Deus revelado em Cristo.
5.3 A igreja sob o senhorio de Deus
A oração do Senhor é um bom ponto de partida para se refletir sobre o reino de Deus. Nessa oração, Jesus coloca Deus em primeiro lugar, como o centro dos nossos interesses e afeições, e relaciona isso com o reino. “Pai nosso, que estás nos céus, santificado seja o teu nome; venha o teu reino; faça-se a tua vontade, assim na terra como no céu” (Mt 6.9-10). O reino de Deus torna-se presente quando os crentes se unem para invocar a Deus como Pai, quando reconhecem a sua soberania sobre suas vidas, quando o reverenciam e se submetem a ele, quando procuram fazer a sua vontade na terra como ela é feita no céu.
Para que a igreja seja uma verdadeira agente do reino, primeiramente ela precisa refletir sobre a sua relação com Deus, fazer disso a sua prioridade máxima, identificar-se com os seus propósitos, associar-se a ele em sua obra de restauração da criação. A igreja precisa ser teocêntrica, a começar do seu culto. Quando o culto e a vida da igreja são voltados em primeiro lugar para a satisfação de necessidades humanas, e não para a glória e o louvor de Deus, a igreja deixa de ser teocêntrica, e em assim fazendo, não pode ser agente do reino de Deus no mundo.
5.4 A igreja – lugar de reconciliação
Ao mesmo tempo em que cultiva a sua vida com Deus, a igreja deve ser um lugar de relacionamentos interpessoais transformados. Uma igreja teocêntrica será também um lugar de companheirismo, solidariedade e edificação mútua. Essa é uma das grandes ênfases do Novo Testamento. Assim como Deus nos amou e nos perdoou em Cristo, também devemos amar, aceitar e ministrar uns aos outros. Daí o grande número de exortações em que aparecem as palavras “mutuamente” ou “uns aos outros”.
Como corpo de Cristo, a igreja deve reconhecer, respeitar e até celebrar certas diferenças; ao mesmo tempo, deve transcender essas diferenças, cultivando uma vida de união e fraternidade (Rm 10.12; 1 Co 12.12-27; Gl 3.28). Isso fica especialmente claro no que diz respeito aos dons (capacitações para testemunho e serviço), que são sempre discutidos em conexão com o corpo de Cristo (Rm 12.3-8; 1 Co 12.1-12; Ef 4.11-12). Os dons espirituais só têm razão de ser quando são exercidos, não para proveito e exaltação pessoal, mas para a edificação dos irmãos, para a realização do ministério da igreja. Um dos argumentos que Paulo usa em favor da tolerância na igreja é o fato de que não se deve fazer perecer “o irmão por quem Cristo morreu” (ver Rm 14.15; 1 Co 8.11).
5.5 Igreja, reino e sociedade
Em ordem de prioridade, a relação da igreja com o mundo está em terceiro lugar, o que não significa que seja algo opcional, secundário. Assim como aconteceu com Israel, a igreja foi formada para realizar uma missão. Se ela ignorar essa missão, nega a sua razão de ser e está sujeita ao juízo de Deus, como aconteceu com Israel.
A missão primordial da igreja no que diz respeito ao mundo é a proclamação do “evangelho do reino”, assim como fizeram Jesus e os seus discípulos. Corretamente entendido, esse evangelho inclui muitas coisas importantes. Em primeiro lugar, esse evangelho é um convite a indivíduos, famílias e comunidades para se reconciliarem com Deus mediante o arrependimento e a fé em Cristo. Todavia, o evangelho são as boas novas de Deus para todos os aspectos da vida, pessoal e coletiva. Assim sendo, a legítima proclamação do evangelho não vai se limitar ao aspecto religioso e à dimensão individual (experiência de conversão pessoal), mas vai mostrar o senhorio de Cristo sobre todos os aspectos da existência.
Além disso, essa proclamação não ficará restrita ao aspecto verbal, mas incluirá ações concretas que expressem a amor de Deus pelas pessoas (Tg 2.14-17; 1 Jo 3.16-18). Aí podem ser incluídas muitas iniciativas, que vão desde o socorro a necessidades imediatas até a luta por mudanças estruturais que irão produzir maior justiça na sociedade. Exemplos: auxílio financeiro a pessoas e instituições, trabalho voluntário, mobilização para a criação de leis justas, luta pela ética na vida pública, participação em projetos comuns com outras igrejas e instituições, etc.
5.6 Quando a igreja é um obstáculoA igreja se torna um entrave para os interesses do reino de Deus em várias situações: quando está mais preocupada com a sua própria sobrevivência, prestígio e poder; quando não consegue abrir mão de suas peculiaridades a fim de poder dialogar com outras igrejas e grupos; quando não procura “seguir a verdade em amor” (Ef 4.15); quando se retrai do mundo com medo de perder a sua identidade ou quando se identifica com o mundo com medo do escândalo da cruz.Conclusão – vivendo entre dois mundosO cristão experimenta uma série de paradoxos: o reino já veio, mas ainda não veio em sua plenitude; vivendo no mundo, ele experimenta as realidades do reino de Deus e do império das trevas; na própria igreja, existe trigo e joio, pecado e graça. Redimido por Cristo e conduzido pelo seu Espírito, ele ora: “Venha o teu reino”, e se dispõe: “Eis-me aqui, envia-me a mim”.
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