A
Arqueologia e a Bíblia Sagrada
Das muitas definições dadas à Bíblia,
é provável que uma das mais interessantes tenha sido a de Gerald Wheeler que
definiu a inspiração como “Deus falando com sotaque humano”. De fato, a Bíblia
é a Palavra do Altíssimo entrando em nossa história e participando ativamente
dela.
Logo, seria interessante lembrar que
as Escrituras Sagradas não nasceram num vácuo histórico. Elas possuem um
contexto cultural que as antecede e envolve. Suas épocas, seus costumes e sua
língua podem parecer estranhos a nós que vivemos num tempo e geografia bem
distantes daqueles fantásticos acontecimentos, mesmo assim são importantíssimos
para um entendimento saudável da mensagem que elas contêm.
Como poderíamos, então, voltar a esse
passado escriturístico? Afinal, máquinas do tempo não existem e idéias
fictícias seriam de pouco valor nesta jornada. A solução talvez esteja numa das
mais brilhantes ciências dos últimos tempos: a Arqueologia do Antigo Oriente
Médio.
Usada com prudência e exatidão, a
Arqueologia poderá ser uma grande ferramenta de estudo não apenas para
contextualizar corretamente determinadas passagens da Bíblia, mas também para
confirmar a historicidade do seu relato. É claro que não poderemos com a pá do
arqueólogo provar doutrinas como a divindade de Cristo ou o Juízo final de Deus
sobre os homens. Esses são elementos que demandam fé da parte do leitor.
Contudo, é possível – através dos achados – verificar se as histórias da Bíblia
realmente aconteceram ou se tudo não passou de uma lenda. Aí, fica óbvio o
axioma filosófico: se a história bíblica é real, a teologia que se assenta
sobre essa história também o será. Talvez seja por isso que ao invés de
inspirar a produção de um manual de Teologia, Deus soprou aos profetas a idéia
de escreverem um livro de histórias que confirmassem a ação divina em meio aos
acontecimentos da humanidade.
COMO TUDO COMEÇOU
Dizer exatamente quando começou
a arqueologia bíblica não é tarefa fácil. Na verdade, desde os primeiros
séculos da era cristã já havia pessoas que se aventuravam na arte de tirar da
terra tesouros relacionados à história da Bíblia Sagrada. Helena, a mãe de
Constantino, foi uma dessas “pioneiras” que numa peregrinação à Terra Santa
demarcou com igrejas vários locais sagrados onde supunham ter ocorrido algum
evento especial. Muitos destes locais servem até hoje de ponto turístico no
Oriente Médio.
As técnicas porém desses primeiros
empreendimentos eram bastante duvidosas e o fervor piedoso levava as pessoas a
verem coisas que na verdade nem existiam. Aparições de santos, sonhos e
impressões eram o suficiente para demarcar um local como sendo o exato lugar da
crucifixão ou do nascimento de Cristo.
Mas a partir do final do século XIII,
a arqueologia das Terras Bíblicas começou finalmente a ter ares de maior rigor
científico. A descoberta acidental da Pedra de Roseta, ocorrida em 1798, levou
vários especialistas a se interessarem pela história do Egito, da Mesopotâmia e
da Palestina, descobrindo um passado que há muito se tinha por perdido.
Babilônia, Nínive, Ur e Jericó foram
apenas algumas das muitas localidades que começaram a ser escavadas revelando
importantes aspectos da narrativa bíblica. Para os críticos que na ocasião
levantavam argumentos racionalistas contra a Palavra de Deus, os novos achados
representavam um grande problema, pois desmentiam seus arrazoados confirmando
vários elementos do Antigo e do Novo Testamento.
Um exemplo pode ser visto no próprio
ceticismo com que encaravam a existência de uma cidade chamada Babilônia.
Muitos pensavam que tal reino jamais existira. Era apenas o fruto mitológico da
mente de antigos escritores como Heródoto e os profetas canônicos. Até que,
finalmente, suas ruínas foram desenterradas em 1899 pelo explorador alemão
Robert Koldewey, que demorou pelo menos 14 anos para escavar as suas estruturas.
Mais tarde veio a descoberta de
várias inscrições cuneiformes que revelaram o nome de pelo menos dois
personagens mencionados no livro de Daniel, cuja historicidade também tinha
sido questionada pelos céticos. O primeiro foi Nabucodonosor, o rei do sonho
esquecido e o segundo, Belsazar que viu sua sentença de morte escrita com
letras de fogo nas paredes de seu palácio.
CONTRIBUIÇÕES
ADICIONAIS
Além de ajudar tremendamente na
confirmação de episódios descritos na Bíblia, a arqueologia presta um grande
serviço ao estudo elucidativo de determinadas passagens. Graças a ela, é
possível reconhecer o porquê de alguns comportamentos estranhos à nossa
cultura. É o caso de Raquel roubando deliberadamente os “ídolos do lar” que
pertenciam a Labão, seu pai (Gn 31:34). Aparentemente o delito parecia ter um
fim religioso, mas antigos códigos de lei sumerianos revelaram que naquela
época a posse de pequenos ídolos do lar (comumente chamados de Terafim)
era o certificado de propriedade que alguém precisava para firmar-se dono de
uma terra. Caso os ídolos fossem parar nas mãos de outra pessoa, essa se
tornava automaticamente a proprietária dos terrenos que eles demarcavam. Por
serem pequenos, poderiam facilmente ser roubados e cabia ao dono o cuidado de
guardá-los para não ser lesado. Foi portanto num descuido de Labão que Raquel
roubou seus ídolos (ou seja suas escrituras) com o fim de entregá-los
posteriormente a Jacó, e fazer dele o novo senhor daquelas terras. Tratava-se,
portanto, de uma tentativa de indenização do esposo pelo engano que o levou a
sete anos extras de trabalho nas terras de seu pai.
Várias palavras e expressões antigas
também tiveram seu significado esclarecido pelo trabalho da arqueologia. O nome
de Moisés, que certamente não era de origem
hebraica pode ter sua explicação na raiz do verbo egípcio ms-n que
significa “nascer ou nascido de”. Não é por menos que muitos faraós e nobres da
corte egípcia tinham o seu apelido formado pela junção desse verbo e do nome de
uma divindade. Por exemplo: Ahmose (“nascido de Ah, o deus da
lua”); Ramose (“nascido de Rá, o deus sol”), Thutmose (“nascido
de Thot, outra forma do deus da lua”). É possível que Moisés (ou em Egípcio Mose)
também tivesse originalmente o nome de um deus local acoplado ao seu próprio
nome. Talvez fosse Hapimose (o deus do Nilo) uma vez que, de
acordo com Êxodo 2:10, a rainha escolheu chamá-lo assim, porque das águas do
Nilo o havia tirado.
Uma embaraçosa situação entre Jesus e
um discípulo também pode ser esclarecida pela arqueologia. Trata-se do episódio
descrito em Lucas 9:59, onde o Senhor aparentemente nega a um jovem que queria
seguir-lhe o direito de sepultar o seu próprio pai. Olhando pela cultura
moderna ocidental, dá-se a impressão que o pai do moço estava morto em um
velório e que ele estaria pedindo apenas algumas “horas” a Cristo para que
pudesse seguir o féretro e, logo em seguida, partir com o Senhor. Um pedido, a
princípio, bastante justo para não ser atendido!
Mas as dificuldades se esvaem quando
entendemos pelo resgate arqueológico que, naquela época (e também hoje, nalguns
idiomas como o árabe e o siríaco), a expressão “sepultar o meu pai” seria um
idiomatismo que nem de longe indicava que seu pai houvesse recentemente
morrido! Tanto o é que o episódio se dá “caminho fora” (Lc. 9:57). Se o pai do
jovem houvesse morrido o que estaria ele fazendo à beira da estrada? Na
verdade, essa expressão idiomática significava que o pai estava sadio e feliz e
que seu filho prometia sair de casa apenas depois que ele morresse.
Ademais, segundo o costume oriental,
quando o pai morria, o filho mais velho ficava encarregado do seu sepultamento,
mas esse também não ocorria imediatamente após a sua morte. Primeiramente o
corpo era banhado, perfumado e envolvido num lençol para ser depositado numa
gruta tumular onde ficava deitado sobre uma cama de pedra por um ano ou mais
até que a carne houvesse completamente sido decomposta restando apenas os
ossos. Então, nesse dia, o filho retirava a ossada de seu pai, colocando-a
delicadamente num pequeno caixão de pedra (conhecido como ossuário) e, somente
aí, tinha-se finalmente completado o “sepultamento”, isto é, vários meses após
a morte do indivíduo.
Com esse pano de fundo trazido dos
estudos arqueológicos o diálogo de Jesus com aquele jovem passa a ter outra
dimensão. Esclarece-se a questão e torna o texto mais compreensivo e agradável
de se ler.
È curioso como a Bíblia –
evidentemente usando uma figura de linguagem – descreve a teimosia do rei do
Egito com a idéia de que Deus endureceu (literalmente “petrificou”) o coração
de Faraó. O estudo das línguas orientais mostra que Deus muitas vezes é
colocado como autor daquilo que Ele na verdade apenas tolera. É um limite do
idioma e nada mais. Nós também temos as mesmas limitações em nossa língua
pátria: quando dizemos a alguém “vá com Deus” ou “que o Senhor te acompanhe”
não estamos com isso negando a onipresença do Altíssimo como se Ele precisasse
“ir” a um lugar onde já não estivesse. Também não estamos de maneira nenhuma
nos matando quando dizemos: “Estou morto (isto é, cansado)!”
A idéia de um faraó de coração duro
pode ser ainda mais esclarecida se atentarmos para o fato de que o estudo de
várias múmias revelou o estranho costume egípcio de colocar dentro do corpo
mumificado um escaravelho de pedra bem no lugar do coração. Esse amuleto servia
ao defunto como uma espécie de salvo conduto no juízo final perante Osíris. Um
coração normal (que era pesado na balança da deusa Ma’at) poderia denunciar os
seus pecados fazendo-o perder um lugar no paraíso. Mas um coração de pedra,
enganaria os deuses. Ocultaria os erros que ele cometeu garantindo-lhe o
paraíso, mesmo que houvesse levado uma vida de constantes pecados. Ter,
portanto, um coração duro (ou “de pedra”) era para Faraó a certeza de uma
salvação forjada à custa do engano dos deuses! Daí a forma irônica e
eufemística de dizer: “Deus endureceu o coração de faraó”.
ARQUEOLOGIA DO
ANTIGO TESTAMENTO
Estes são alguns dos principais
achados alusivos ao Antigo Testamento:
1 – Leis mesopotâmicas –
uma coleção de várias leis datadas do terceiro e segundo milênios antes de
Cristo que ilustram em muitos detalhes o período patriarcal. O conhecido código
de Hamurabi (c. 1750 a.C.) é uma delas.
2 – Papiro de Ipwer – trata-se
da oração sacerdotal de um certo egípcio chamado Ipwer que reclama junto ao
deus Horus as desgraças que assolavam o Egito. Entre elas ele menciona o Nilo
se tornando em sangue, a escuridão cobrindo a terra, os animais morrendo no
pasto e outros elementos que lembram muito de perto as pragas mencionadas no
Êxodo.
3 – Estela de Merneptah –
uma coluna comemorativa escrita por volta de 1207 a.C. que conta as conquistas
militares do faraó Merneptah. É a mais antiga menção do nome “Israel” fora da
Bíblia. Alguns céticos insistem em negar a história dos Juízes dizendo que
Israel não existia como nação naqueles dias. Porém, a Estela de Merneptah
desmente essa afirmação ao mencionar Israel entre os inimigos do Egito.
4 – Textos de Balaão – fragmentos
de escrita aramaica foram encontrados em Tell Deir Allá (provavelmente a cidade
bíblica de Sucote). Juntos eles trazem um episódio na vida de “Balaão filho de
Beor” – o mesmo Balaão de Números 22. Os textos ainda descreviam uma de suas
visões, indicando que os cananitas mantiveram lembrança desse profeta.
5 – Estela de Tel Dã – outra
placa comemorativa, desta vez da conquista militar da Síria sobre a região de
Dã. Encontrada em meio aos escombros do sítio arqueológico, a inscrição trazia
de modo bem legível a expressão “casa de Davi” que poderia ser uma referência
ao templo ou à família real. Porém o mais importante é que mencionava pela
primeira vez fora da Bíblia o nome de Davi, indicando que este fora um personagem
real.
6 – Obelisco negro e prisma
de Taylor – Estes artefatos mostram duas derrotas militares de
Israel. O primeiro traz o desenho do rei Jeú prostrado diante de Salmanazar III
oferecendo tributo e o segundo descreve o cerco de Senaqueribe a Jerusalém,
citando textualmente o confinamento do rei Ezequias.
7 – Inscrição de Siloé –
encontrada acidentalmente por algumas crianças que nadavam no tanque de Siloé,
essa antiga inscrição hebraica marca a comemoração do término do túnel
construído pelo rei Hezequias, conforme o relato de II Crônicas 32:2-4.
ARQUEOLOGIA DO NOVO
TESTAMENTO
Estes são alguns dos principais
achados alusivos ao Novo Testamento:
1 – Ossuários de Caifás e
(possivelmente) Tiago irmão de Jesus – Alguns ossuários
costumavam trazer uma inscrição com o nome da pessoa que estaria ali. Sendo
assim, dois ossuários chamaram a atenção dos arqueólogos. O primeiro foi
encontrado em 1990 e legitimado como sendo do mesmo Caifás mencionado em Mateus
26 e João 18. Já o segundo, cuja autenticidade é disputada entre os
especialistas, pertenceria a Tiago, um dos irmãos de Jesus conforme o texto de
Mateus 13:55. Caso se demonstre verdadeiro, este ossuário será a mais antiga
menção do nome de Jesus que temos notícia.
2 – O esqueleto do
crucificado – Um outro ossuário encontrado em 1968 revelou a
ossada de um certo Yehohanan (“João” em aramaico) que morrera crucificado. Seu
calcanhar ainda trazia um pedaço torcido do prego romano. Esse foi o único
exemplar de um crucificado de que temos notícia. Graças ao seu estudo foi
possível levantar importantes detalhes sobre os modos de crucifixão usados no
tempo de Cristo.
3 – Inscrição de Pilatos –
Uma placa comemorativa encontrada em Cesaréia Marítima no ano de 1962 revelou o
nome de Pilatos como prefeito da Judéia. Antes disso, sua existência histórica
era questionada pelos céticos.
4 – Cafarnaum – A
cidade onde Jesus morou foi escavada e preservada para visitação. Ali é
possível se ver os restos de uma sinagoga e uma igreja bizantinas que foram
respectivamente construídas sobre a sinagoga dos dias de Jesus e a casa de
Pedro, o líder dos doze apóstolos.
QUMRAN E OS
MANUSCRITOS DO MAR MORTO
Um isolado sítio arqueológico foi
acidentalmente descoberto por um garoto beduíno em 1947, nas redondezas do Mar
Morto junto ao deserto da Judéia. Ali podem ser vistas as ruínas de Khirbet
Qumran onde, segundo a opinião de muitos, viveram os antigos essênios, uma
facção religiosa judaica que rompera com o partido sacerdotal de Jerusalém.
Mas o achado do garoto foi ainda mais
surpreendente. Ele descobriu numa das grutas locais antigas cópias do Antigo
Testamento e outros livros judaicos que estavam guardados por quase dois mil
anos.
Juntos esses manuscritos (advindos de
pelo menos 11 cavernas) formavam uma enorme biblioteca de textos inteiros ou
fragmentados que contextualizam o judaísmo dos dias de Cristo. E mais, ajudam a
estabelecer a confiança na transmissão texto bíblico, uma vez que não possuímos
nenhum dos originais que saíram das mãos dos profetas.
Ocorre que, até ao achado dos
manuscritos do Mar Morto, as cópias hebraicas mais antigas da Bíblia datavam do
século 10 d.C., ou seja, mais de mil anos depois da produção do último livro
vétero-testamentário. E que certeza teríamos, além da fé, de que não houve
alterações substanciais no texto? Sendo assim, o achado de Qumran foi bastante
providencial pois proveu-nos de cópias da Bíblia Hebraica que datavam de até
250 a.C..
Quando essas cópias foram comparadas
ao texto hebraico massorético (aquele tardio sobre o qual baseavam-se as
traduções modernas) demonstrou-se claramente que elas confirmavam a
fidedignidade da versão que possuíamos. Se a Bíblia tivesse sido drasticamente
alterada ao longo dos séculos, os Manuscritos do Mar Morto demonstrariam isso
pois, afinal, foram produzidos antes mesmo do surgimento do cristianismo.
O achado de Qumran, pois, constitui a
maior descoberta bíblica de todos os tempos.
CONCLUSÃO
Certa vez ao entrar glorioso em
Jerusalém, Jesus declarou em meio à multidão que ainda que os filhos se
calassem, as próprias pedras clamariam (Lc 19:40). Por que não poderíamos ver
na arqueologia um cumprimento destas palavras? De uma maneira silenciosa, porém
bastante ativa, pedras, cacos de cerâmica, restos de fortalezas e antigos
manuscritos clamam que a história é verdadeira, que Deus é tão
real que quase dá para tocá-lo.
A arqueologia é certamente um
presente do céu aos crentes. Seu conhecimento é uma excelente ferramenta na
compreensão, no estudo e na proclamação da Palavra de Deus!
RODRIGO P. SILVA
Teólogo, Filósofo, Mestre em Teologia
Histórica, Doutor em Teologia Bíblia, Especialista em Arqueologia Bíblica pela
Universidade Hebraica de Jerusalém, PhD em Arqueologia pela Andrews University
(EUA), participou de escavações em Israel, Espanha, Sudão e Jordânia,
apresentador do programa Evidências da TV Novo Tempo e
professor do Seminário Adventista Latino-Americano de Teologia, do UNASP,
Engenheiro Coelho, membro da Society of Biblical Literature e
curador-adjunto do Museu de Arqueologia Bíblica Paulo Bork, sediado no UNASP.
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