A Reforma Protestante nos Países Baixos e Escandinávia
Nos países baixos a tirania papal suscitou protesto muito cedo. Setecentos anos antes de Lutero, o pontífice romano foi destemidamente acusado por dois bispos, os quais, tendo sido enviados em embaixada a Roma, se tornaram conhecedores do verdadeiro caráter da “Santa Sé“:
“Sentais-vos no templo como Deus; em vez de pastor vos fizestes lobo para as ovelhas. [...] Enquanto devíeis ser servo dos servos, como chamais a vós mesmos, esforçais-vos por vos tornar senhor dos senhores. [...] Trazeis o desdém aos mandamentos de Deus” [Gerard Brandt, History of the Reformation in and About the Low Countries, livro 1, p. 6].
De século em século, surgiram outros para fazer soar este protesto. A Bíblia valdense foi traduzida em versos para a língua holandesa. Declararam “que havia nela grande vantagem; nada de motejos, fábulas, futilidades, enganos, mas palavras de verdade”. Assim escreveram os amigos da antiga fé, no décimo segundo século [Gerard Brandt, History of the Reformation in and About the Low Countries, livro 1, p. 6].
Começaram então as perseguições de Roma; mas os crentes continuaram a multiplicar-se, declarando que a Bíblia é a única autoridade infalível em matéria de religião e que “nenhum homem deveria ser coagido a crer, mas sim ser ganho pela pregação” [Martynm, v. 2, p. 87].
Menno Simons |
Os ensinos de Lutero encontraram nos Países Baixos homens ardorosos e fiéis para pregar o evangelho. Menno Simons, educado como católico romano e ordenado ao sacerdócio, era completamente ignorante em relação à Escritura, e não queria lê-la com medo de cair em heresia. Entregando-se ao desregramento, esforçou-se por fazer silenciar a voz da consciência, mas em vão. Depois de algum tempo foi levado ao estudo do Novo Testamento; isto, juntamente com os escritos de Lutero, levou-o a aceitar a fé reformada.
Pouco depois testemunhou a morte de um homem, executado porque havia sido rebatizado. Isto o levou a estudar na Bíblia a questão do batismo infantil. Viu que o arrependimento e a fé eram requeridos como condições para o batismo.
Menno retirou-se da igreja romana e dedicou a vida a ensinar as verdades que recebera. Tanto na Alemanha quanto nos Países Baixos surgira uma classe de fanáticos, ultrajando a ordem e a decência, e levando a efeito a insurreição. Menno se opôs com tenacidade aos ensinos errôneos e ferozes planos dos fanáticos. Durante vinte e cinco anos atravessou os Países Baixos e porção norte da Alemanha, exercendo vasta influência, e exemplificando em sua própria vida os preceitos que ensinava. Era um homem de integridade, humilde e gentil, sincero e fervoroso. Grande número se converteu através de seus labores.
Na Alemanha Carlos V havia condenado a Reforma, mas os príncipes mantiveram-se como uma barreira contra sua tirania. Nos Países Baixos seu poder foi maior. Editos perseguidores seguiam-se uns aos outros em rápida sucessão. Ler a Bíblia, ouvi-la ou pregá-la, orar a Deus em secreto, deixar de curvar-se perante as imagens, ou cantar um salmo, eram puníveis com a morte. Milhares pereceram sob Carlos V e Filipe II.
Certa ocasião uma família inteira foi levada perante os inquisidores, acusada de não assistir à missa e de fazer culto em casa. O filho mais moço respondeu:
“Pomo-nos de joelhos e oramos para que Deus nos ilumine a mente e perdoe os pecados; oramos pelo nosso soberano, para que seu reino seja próspero e sua vida feliz; oramos pelos nossos magistrados, para que Deus os preserve.” O pai e um dos filhos foram condenados à fogueira [Wylie, livro 18, cap. 6].
Não somente homens, mas mulheres e moças ostentavam coragem inflexível.
“Esposas tomavam lugar junto aos suplícios de seus maridos e, enquanto estes suportavam o fogo, elas balbuciavam palavras de consolação, ou cantavam salmos para animá-los. Jovens se deitavam vivas nas sepulturas, como se estivessem a entrar em seu quarto para o sono noturno; ou saíam para o cadafalso e para a fogueira, trajando seus melhores vestidos, como se fossem para o casamento” [Wylie, livro 18, cap. 6].
A perseguição servia para aumentar o número das testemunhas da verdade. Ano após ano o monarca persistia em sua obra cruel, mas em vão. Guilherme de Orange finalmente trouxe à Holanda a liberdade de culto a Deus.
Reforma na Dinamarca
Nos países do norte o evangelho encontrou entrada pacífica. Estudantes de Wittenberg, voltando para casa, levaram a fé reformada para a Escandinávia. Os escritos de Lutero também propagaram luz. O povo robusto do norte deixou a corrupção e as superstições de Roma para acolher as verdades vitais da Bíblia.
Hans Tausen |
[Hans] Tausen, “o reformador da Dinamarca”, desde a infância deu mostras de vigoroso intelecto e entrou para o claustro. O exame demonstrou possuir ele talento que prometia bons serviços para a igreja. Concedeu-se ao jovem estudante permissão para escolher uma universidade da Alemanha ou dos Países Baixos, com a condição de que não fosse para Wittenberg e assim se expusesse à heresia. Era o que pensavam os frades.
Tausen foi para Colônia, um dos baluartes do romanismo. Ali logo se desgostou. Aproximadamente por esse mesmo tempo, leu os escritos de Lutero com deleite e desejou grandemente o privilégio de receber instrução pessoal do reformador. Mas para fazer isto, deveria arriscar a perda do apoio de seu superior. Decidiu-se logo, e pouco tempo depois era estudante em Wittenberg.
Retornando à Dinamarca, não revelou seu segredo, mas esforçou-se por levar os companheiros a uma fé mais pura. Abria a Bíblia e pregava-lhes a Cristo como a única esperança de salvação para o pecador. Grande foi a ira do prior, que nele havia fundado elevadas esperanças como defensor de Roma. Foi imediatamente removido de seu mosteiro para outro, e confinado à cela. Através das barras da cela, Tausen comunicava aos companheiros o conhecimento da verdade. Fossem aqueles padres dinamarqueses peritos no plano da igreja de como tratar a heresia, a voz de Tausen jamais teria sido de novo ouvida; mas, em vez de o confiar a alguma masmorra subterrânea, expulsaram-no do mosteiro.
Um edito real, recentemente promulgado, oferecia proteção aos ensinadores da nova doutrina. As igrejas lhe foram abertas, e o povo se reunia em multidão para ouvi-lo. O Novo Testamento em dinamarquês circulava amplamente. Esforços feitos para destruir a obra tiveram como resultado estendê-la, e não muito tempo depois a Dinamarca declarava aceitar a fé reformada.
Progresso na Suécia
Também na Suécia, jovens de Wittenberg levavam a água da vida a seus conterrâneos. Dois líderes da Reforma na Suécia, Olavo e Lourenço Petri, haviam estudado com Lutero e Melâncton. Tal como o grande reformador, Olavo despertava o povo com sua eloqüência, ao passo que Lourenço, assim como Melâncton, era refletido e calmo. Ambos revelavam inflexível coragem. Os padres católicos instigavam o povo ignorante e supersticioso. Olavo Petri, em várias ocasiões, mal pôde escapar com vida. Os reformadores, contudo, eram protegidos do rei, que havia tomado posição em favor de uma reforma e assim recebeu com agrado aqueles hábeis auxiliares na batalha contra Roma.
Na presença do monarca e dos principais homens da Suécia, Olavo Petri defendeu com grande habilidade a fé reformada. Declarou que os ensinos dos Pais da Igreja deveriam ser recebidos somente se estivessem de acordo com as Escrituras; que as doutrinas essenciais da fé são apresentadas na Bíblia de modo claro, assim que todos são capazes de entendê-las.
Esse debate serve para mostrar-nos “a qualidade dos homens que formavam a maior parte do exército dos reformadores. Longe de serem iletrados, sectaristas, controversistas ruidosos, eram homens que haviam estudado a Palavra de Deus e sabiam muito bem como manejar as armas com que o arsenal da Bíblia os supria. [Eram] eruditos e teólogos, homens que se assenhoreavam perfeitamente de todo o sistema de verdades evangélicas, e que ganharam vitória fácil sobre os sofismas das escolas e dos dignitários de Roma” [Wylie, livro 10, cap. 4].
O rei da Suécia aceitou a fé protestante, e a assembléia nacional declarou-se em seu favor. Por desejo do rei, os dois irmãos levaram a cabo a tradução de toda a Bíblia. Foi ordenado pela Dieta que por todo o reino os ministros explicassem as Escrituras e que às crianças nas escolas se ensinasse a leitura da Bíblia.
Liberta da opressão de Roma, a nação atingiu força e grandeza que nunca antes havia alcançado. Um século mais tarde, esta nação até ali fraca — a única da Europa que ousou prestar auxílio — foi em livramento da Alemanha nas terríveis lutas da Guerra dos Trinta Anos. Todo o Norte da Europa parecia a ponto de cair novamente sob a tirania de Roma. Foram os exércitos da Suécia que habilitaram a Alemanha a conquistar a tolerância aos protestantes e a restaurar a liberdade de consciência nos países que haviam abraçado a Reforma.
(Ellen G. White. O Grande Conflito, p. 106-)
terça-feira, 4 de setembro de 2012
A Reforma na França, o chamado de Calvino e a ordem dos Jesuítas
O protesto de Espira e a Confissão de Augsburgo foram seguidos por anos de conflitos e trevas. Enfraquecido por divisões, o protestantismo parecia destinado à destruição.
Entretanto, no momento de seu triunfo aparente, o imperador foi afligido com a derrota. Foi forçado a conceder tolerância às doutrinas cuja destruição fora o anelo de sua vida. Via agora seus exércitos assolados pelas batalhas, os tesouros exauridos, seus muitos reinos ameaçados de revolta, enquanto, por toda parte, a fé que ele se esforçara em vão por suprimir, estava se estendendo. Carlos V estivera a batalhar contra o Poder onipotente. Deus dissera: “Haja luz”, mas o imperador havia procurado perpetuar as trevas. Consumido pela longa luta, abdicou do trono e sepultou-se num claustro.
Na Suíça, ao mesmo tempo em que muitos cantões aceitaram a fé reformada, outros se apegaram com cega persistência ao credo de Roma. A perseguição deu lugar à guerra civil.Zuínglio e muitos outros que a ele se haviam unido na Reforma caíram no campo sangrento de Cappel. Roma estava triunfante e em muitos lugares parecia prestes a recobrar tudo que perdera. Mas Deus não abandonou Sua causa nem Seu povo. Suscitou, em outros países, obreiros para levar avante a Reforma.
Jacques Lefèvre |
Na França, um dos primeiros a receber a luz foi Lefèvre, professor na Universidade de Paris. Em suas pesquisas da literatura antiga, sua atenção foi dirigida para a Bíblia, e introduziu o estudo desta entre os seus alunos. Ele empreendera a preparação de uma história dos santos e mártires, conforme apresentados pelas lendas da igreja. Já havia alcançado considerável progresso nessa obra quando, imaginando que poderia obter auxílio na Bíblia, começou a estudá-la. Nesta encontrou, de fato, os santos, mas não segundo apresentados no calendário católico romano. Desgostoso, abandonou a tarefa que se propusera, e dedicou-se à Palavra de Deus.
Em 1512, antes que Lutero ou Zuínglio houvessem iniciado a obra da Reforma, Lefèvre escreveu:
“É Deus que dá, pela fé, a justiça que, somente pela graça, justifica para a vida eterna” [Wylie, livro 13, cap. 1].
Ao mesmo tempo que ensinava pertencer unicamente a Deus a glória da salvação, declarava também que pertence ao homem o dever de obediência.
Alguns dentre os discípulos de Lefèvre ouviam avidamente suas palavras e, muito tempo depois que a voz do mestre silenciou, prosseguiram anunciando a verdade. Um destes foi Guilherme Farel. Filho de pais piedosos e devoto romanista, ardia em zelo para destruir a todos os que ousassem opor-se à igreja. “Eu rangia os dentes qual lobo furioso”, escreveu ele mais tarde, “quando ouvia alguém falar contra o papa.” Mas a adoração de santos, o culto junto aos altares e o adorno de santos relicários com dádivas, não lhe trouxeram paz ao coração. Fortalecia-se nele a convicção do pecado, a qual todos os atos de penitência não conseguiam banir. Escutou as palavras de Lefèvre:
“A salvação é de graça.” “É unicamente a cruz de Cristo que abre as portas do Céu e fecha as do inferno” [Wylie, livro 13, cap. 2].
Por uma conversão semelhante à de Paulo, Farel volveu-se do cativeiro da tradição para a liberdade dos filhos de Deus.
“Em vez de ter o coração assassino de um lobo devorador, voltou tranqüilamente, qual cordeiro manso e inofensivo, tendo o coração de todo desviado do papa e entregue a Jesus Cristo” [J. H. Merle D’Aubigné. History of the Reformation of the Sixteenth Century, livro 12, cap. 3].
Enquanto [Jacques] Lefèvre espalhou a luz entre os alunos, Farel saiu para anunciar a verdade em público. Um dignitário da igreja, o bispo de Meaux, logo se uniu a eles. Outros ensinadores uniram-se na proclamação do evangelho, conquistando-se assim adeptos nos lares dos artífices e camponeses, tanto quanto no palácio do rei. A irmã de Francisco I aceitou a fé reformada. Com grandes esperanças os reformadores aguardaram o tempo em que a França seria ganha para o evangelho.
Novo testamento em francês
Suas esperanças, porém, não deveriam realizar-se. Provas e perseguições aguardavam os discípulos de Cristo. Entretanto, houve um tempo de paz, de modo que pudessem adquirir forças a fim de enfrentar a tempestade; a Reforma obteve rápidos progressos. Lefèvre empreendeu a tradução do Novo Testamento; ao mesmo tempo em que a Bíblia alemã de Lutero saía do prelo em Wittenberg, era publicado o Novo Testamento em francês, em Meaux. Em breve os camponeses deste lugar estavam de posse das Santas Escrituras. Os trabalhadores no campo e os artífices nas cidades, suavizavam a labuta diária conversando acerca das preciosas verdades da Bíblia. Embora pertencessem à mais humilde classe, camponeses indoutos e de rudes trabalhos que eram, viu-se em sua vida o poder reformador e enobrecedor da graça divina.
A luz acendida em Meaux derramou seus raios ao longe. Aumentava todos os dias o número de conversos. O rancor da hierarquia foi por algum tempo contido pelo rei, mas os líderes papais finalmente prevaleceram. Ateou-se a fogueira. Muitos testificaram da verdade entre as chamas.
Nos salões senhoriais do castelo e do palácio, houve pessoas da nobreza por quem a verdade era mais apreciada que a riqueza, posição social, ou a própria vida. Luís de Berquin era de nascimento nobre, devotado ao estudo, polido nas maneiras e de moral irrepreensível. “Ele coroava todas as suas virtudes por devotar ao luteranismo uma aversão especial.” Mas, providencialmente, guiado à Bíblia, maravilhou-se de encontrar ali “não as doutrinas de Roma, mas as de Lutero”. Entregou-se completamente à causa do evangelho.
Os romanistas da França arrojaram-no à prisão como herege, mas foi posto em liberdade pelo rei. Durante anos, Francisco claudicou entre Roma e a Reforma. Berquin foi três vezes aprisionado pelas autoridades papais, tão-somente para ser libertado pelo monarca, que se recusava a sacrificá-lo à maldade do clero. Berquin foi repetidamente advertido do perigo que o ameaçava na França, e com ele se insistiu para que seguisse os passos dos que haviam encontrado segurança no exílio voluntário.
Corajoso Berquin
O zelo de Berquin, contudo, apenas se tornou mais forte. Decidiu-se por medidas ainda mais ousadas. Não somente permaneceria na defesa da verdade, como ainda atacaria o erro. Os mais ativos de seus oponentes eram os ilustrados monges do departamento teológico da Universidade de Paris, que se contavam entre as mais elevadas autoridades eclesiásticas da nação. Dos escritos desses doutores, Berquin extraiu doze proposições que declarou publicamente estarem “em oposição à Bíblia”, e apelou ao rei no sentido de agir como juiz na controvérsia.
O monarca, contente pela oportunidade de humilhar o orgulho dos altivos monges, ordenou aos romanistas que defendessem sua causa pela Escritura Sagrada. Esta arma pouco lhes adiantaria; tortura e fogueira eram as armas que melhor sabiam manejar. Agora viam-se prestes a cair no fosso em que haviam imaginado submergir Berquin. Procuravam em torno de si algum meio de escape.
“Exatamente por este tempo uma imagem da virgem apareceu mutilada na esquina de uma das ruas.” Multidões acorreram ao local, com expressões de lamento e indignação. O rei ficou profundamente abalado. “São estes os frutos das doutrinas de Berquin”, exclamavam os monges. “Tudo está a ponto de ser subvertido — religião, leis, o próprio trono — por esta conspiração luterana” [J. H. Merle D’Aubigné. History of the Reformation of the Sixteenth Century, livro 12, cap. 3].
O rei saiu de Paris, e os monges ficaram assim em liberdade para executar sua vontade. Berquin foi julgado e condenado à morte; sob o receio de que Francisco se interpusesse para salvá-lo, a sentença foi executada no próprio dia de seu pronunciamento. Ao meio-dia reuniu-se imensa multidão para testemunhar o evento, e muitos viram com espanto e temor que a vítima fora escolhida dentre as mais valorosas e nobres famílias da França. Espanto, ira, escárnio e ódio figadal entenebreciam o rosto daquela multidão agitada, mas não havia sinal de tristeza naquelas faces. O mártir estava cônscio apenas da presença do Senhor.
O semblante de Berquin estava radiante com a luz do Céu. Trajava “uma capa de veludo, um gibão de cetim e damasco, e meias douradas” [D’Aubigné. History of the Reformation in Europe in the Time of Calvin, livro 2, cap. 16]. Estava para dar testemunho de sua fé perante o Rei dos reis, e nenhum sinal de lamento devia empanar sua alegria.
Enquanto o cortejo se movia vagarosamente através das ruas apinhadas, as pessoas notavam com admiração o alegre triunfo que o mártir trazia no olhar e no porte. “Esse está”, diziam, “como alguém que se senta num templo e medita sobre coisas santas.”
Berquin na fogueira
Junto à fogueira, Berquin esforçou-se por dirigir algumas palavras ao povo; mas os monges começaram a gritar, e os soldados a bater as armas, e o rumor abafou a voz do mártir. Assim, em 1529, a mais alta autoridade eclesiástica da culta Paris “deu à populaça de 1793 o indigno exemplo de sufocar no cadafalso as palavras sagradas do moribundo” [Wylie, livro 13, cap. 9]. Berquin foi estrangulado, e seu corpo consumido pelas chamas.
Ensinadores da fé reformada partiram para outros campos. Lefèvre tomou o rumo da Alemanha. Farel voltou para sua cidade natal, na França oriental, a fim de disseminar a luz no lugar de sua infância. A verdade por ele ensinada encontrou ouvintes. Logo foi ele banido da cidade. Atravessou as aldeias, ensinando nas casas particulares e nos prados isolados, encontrando abrigo nas florestas e entre as cavernas rochosas que haviam sido sua guarida nos tempos de rapaz.
Como nos dias apostólicos, a perseguição contribuiu “para o progresso do evangelho” (Filipenses 1:12). Expulsos de Paris e Meaux, eles “iam por toda parte pregando a palavra” (Atos dos Apóstolos 8:4). E assim a luz teve acesso a muitas das remotas províncias da França.
O chamado de Calvino
John Calvino |
Em uma das escolas de Paris havia um jovem pensativo, quieto e que dava mostras de notável correção de vida, ardor intelectual e devoção religiosa. Seu gênio e aplicação logo o fizeram o orgulho de sua escola, e tinha-se como certo que João Calvino seria um dos mais habilidosos defensores da igreja.
Mas um raio da luz divina penetrou pelas paredes do escolasticismo e superstição em que Calvino se achava encerrado. Olivetan, primo de Calvino, unira-se aos reformadores. Os dois parentes discutiam as questões que estavam perturbando a cristandade. “Não há senão duas espécies de religião no mundo”, disse Olivetan, o protestante. “Aquela [...] que os homens inventaram, e na qual [...] eles se salvam por cerimônias e boas obras; a outra religião é a que está revelada na Bíblia, e que ensina o homem a esperar pela salvação unicamente da livre graça de Deus.”
“Não quero nenhuma das tuas novas doutrinas”, exclamou Calvino; “achas que tenho vivido em erro todos os meus dias?” [Wylie, livro 13, cap. 9].
Contudo, sozinho em seu quarto, ponderou nas palavras do primo. Viu-se sem intercessor na presença do Juiz santo e justo. Boas obras, as cerimônias da igreja, tudo era impotente para expiar o pecado. Confissão e penitência não podiam reconciliar seu coração com Deus.
Testemunho junto à fogueira
Visitando casualmente uma das praças públicas, Calvino testemunhou ali a queima de um herege. Entre as torturas daquela morte cruel e sob a mais terrível condenação da igreja, o mártir manifestou fé e coragem que o jovem estudante dolorosamente contrastou com seu próprio desespero e escuridão. Na Bíblia, sabia ele, os “hereges” fundamentavam sua fé. Resolveu estudá-la e descobrir o segredo da alegria deles.
Na Bíblia ele encontrou a Cristo. “Ó Pai”, exclamou Calvino, “Seu sacrifício apaziguou a Tua ira; Seu sangue lavou minhas impurezas; Sua cruz suportou minha maldição; Sua morte fez expiação por mim. [...] Tocaste-me o coração, a fim de que eu abominasse todos os outros méritos, com exceção dos de Jesus” [Martyn, v. 3, cap. 13].
Resolveu dedicar a vida ao evangelho. Sendo naturalmente tímido, desejava também dedicar-se ao estudo. Os ardorosos rogos dos amigos, entretanto, o persuadiram finalmente a tornar-se pregador público. Suas palavras foram como o orvalho que caía para refrigerar a terra. Encontrava-se então numa cidade provinciana, sob a proteção da princesa Margarida, a qual, amando o evangelho, estendia seu amparo aos discípulos do mesmo. O trabalho de Calvino começou nos lares do povo. Os que ouviam a mensagem levavam as boas novas a outros. Ia ele avançando, e lançava o fundamento de igrejas que deveriam dar corajoso testemunho da verdade.
Paris deveria receber outro convite para aceitar o evangelho. O apelo de Lefèvre e Farel fora rejeitado, mas de novo a mensagem deveria ser ouvida por todas as classes naquela grande capital. O rei não havia ainda tomado inteiramente sua posição ao lado de Roma e contra a Reforma. Margarida decidiu que a fé reformada seria pregada em Paris. Ordenou a um ministro protestante que pregasse nas igrejas da cidade. Sendo isto proibido pelos dignitários papais, abriu ela as portas do palácio. Foi anunciado que todos os dias seria pregado um sermão, e o povo era convidado a comparecer. Milhares reuniam-se diariamente.
O rei ordenou que duas das igrejas de Paris fossem abertas. Nunca antes a cidade fora tão comovida pela Palavra de Deus. Temperança, pureza, ordem e laboriosidade estavam ocupando o lugar de embriaguez, libertinagem, contenda e ociosidade. Ao passo que muitos aceitavam o evangelho, a maioria o rejeitava. Os romanistas conseguiram readquirir a ascendência. De novo se fecharam as igrejas e ateou-se a fogueira.
Calvino ainda estava em Paris. Finalmente as autoridades resolveram levá-lo às chamas. Ele não tinha idéia do perigo, quando amigos vieram precipitadamente a seu quarto, com a notícia de que oficiais estavam a caminho para prendê-lo. Naquele instante ouviu-se uma pancada à porta. Não havia um momento a perder. Amigos detiveram os oficiais à porta, enquanto outros ajudavam o reformador a descer por uma janela, e assim ele conseguiu chegar rapidamente à cabana de um trabalhador, amigo da Reforma. Disfarçou-se nos trajes de seu hospedeiro e, levando ao ombro uma enxada, partiu em viagem. Caminhando rumo ao sul, encontrou novamente refúgio nos domínios de Margarida.
Calvino não poderia permanecer inativo por muito tempo. Logo que a tempestade amainou um pouco, procurou novo campo de trabalho em Poitiers, onde as novas opiniões já encontravam aceitação. Pessoas de todas as classes ouviam alegremente o evangelho. Aumentando o número de ouvintes, foi considerado mais seguro reunirem-se fora da cidade. Uma caverna ao lado de uma garganta, onde árvores e pedras salientes tornavam a reclusão ainda mais completa, foi o local escolhido para as reuniões. Nesse ponto isolado a Bíblia era lida e explicada. Ali, pela primeira vez, foi celebrada a ceia do Senhor pelos protestantes da França. Dessa pequena igreja foram enviados fiéis evangelistas.
Mais uma vez Calvino voltou a Paris, mas encontrou fechadas para o trabalho praticamente todas as portas. Finalmente resolveu partir para a Alemanha. Apenas deixara a França, quando irrompeu sobre os protestantes uma tempestade. Os reformadores franceses decidiram-se a desferir contra a superstição de Roma um golpe audaz, que despertaria a nação inteira. Em uma noite foram afixados por toda a França cartazes que atacavam a missa. Esse movimento zeloso, mas mal-interpretado, ofereceu aos romanistas o pretexto para exigirem a completa destruição dos “hereges”, considerando-os como agitadores perigosos à estabilidade do trono e à paz da nação.
Um dos cartazes foi colocado à porta do quarto particular do rei. A audácia sem precedentes, de introduzir à presença do rei estas asserções surpreendentes, suscitou a ira real. Sua raiva encontrou expressão nestas terríveis palavras:
“Sejam sem distinção agarrados todos os que são suspeitos de luteranismo. Vou exterminar a todos” [D’Aubigné. History of the Reformation in Europe in the Time of Calvin, livro 2, cap. 30]. O rei decidiu pôr-se completamente do lado de Roma.
Reinado do terror
Um pobre adepto da fé reformada, que se havia acostumado a convocar todos os crentes para as assembléias secretas, foi apanhado. Sob a ameaça de morte instantânea na fogueira, foi-lhe ordenado que conduzisse o emissário papal à casa de todos os protestantes na cidade. O medo às chamas prevaleceu, de modo que ele concordou em fazer-se traidor dos irmãos. Morin, o detetive real, junto com o traidor, vagarosa e silenciosamente passou pelas ruas da cidade. Chegando defronte da casa de um luterano, o traidor fazia um sinal, mas nenhuma palavra era proferida. O cortejo fazia alto, a casa era invadida, a família era arrastada e acorrentada, e o terrível séquito prosseguia em procura de novas vítimas. “Morin fez abalar toda a cidade. [...] Era o reinado do terror” [D’Aubigné. History of the Reformation in Europe in the Time of Calvin, livro 2, cap. 30].
As vítimas foram mortas com tortura cruel, sendo ordenado especialmente que o fogo fosse abaixado, a fim de prolongar-lhes a agonia. Morreram, porém, como vencedores. Sua constância foi inabalável, imperturbada a sua paz. Os perseguidores sentiram-se derrotados.
“Toda a Paris habilitou-se a ver que espécie de homens as novas opiniões produziram. Não havia púlpito como a fogueira do mártir. A serena alegria que iluminava o rosto daqueles homens ao se encaminharem [...] para o lugar da execução, [...] pleiteava com irresistível eloqüência em prol do evangelho” [Wylie, livro 13, cap. 20].
Os protestantes eram acusados de conspirar para o massacre dos católicos, subverter o governo e assassinar o rei. Sequer uma sombra de provas podia ser apresentada em apoio às alegações. Contudo, as crueldades infligidas aos inocentes protestantes acumularam um peso de retribuições e, séculos mais tarde, ocasionaram a mesma sorte que eles haviam predito estar iminente sobre o rei, seu governo e seus súditos. Porém, foi produzida pelos incrédulos e os próprios romanistas. A supressão do protestantismo deveria trazer sobre a França essas horrendas calamidades.
Suspeita, desconfiança e terror invadiam agora todas as classes sociais. Centenas fugiram de Paris, constituindo-se exilados voluntários de sua terra natal, dando assim em muitos casos a primeira demonstração de que favoreciam a fé reformada. Os romanistas olharam em redor de si com espanto, ao pensar nos “hereges” que, sem o suspeitarem, haviam sido tolerados entre eles.
Declara-se abolida a imprensa
Francisco I deleitara-se em reunir em sua corte homens de letras de todos os países. Agora, inspirado pelo zelo em suprimir a heresia, este patrono do saber promulgou um edito declarando abolida a imprensa em toda a França! Francisco I representa um exemplo, dentre os muitos registrados, de que a cultura intelectual não é salvaguarda contra a intolerância e perseguição religiosas.
Os padres exigiram que a afronta feita aos altos Céus, com a condenação da missa, fosse expiada com sangue. O dia 21 de Janeiro de 1535 foi marcado para a terrível cerimônia. Diante de cada porta havia uma tocha acesa em honra ao “santo sacramento”. Antes de raiar o dia, formou-se a procissão, no palácio do rei.
“A hóstia era levada pelo bispo de Paris, sob magnificente pálio, [...] carregado por quatro príncipes de sangue. [...] Em seguida à hóstia caminhava o rei. [...] Francisco I naquele dia não levava a coroa, nem vestes de Estado” [ Wylie, livro 13, cap. 21]. Em cada altar ele se curvava em humilhação, não pelos vícios que lhe aviltavam a vida, nem pelo sangue inocente que lhe manchava as mãos, mas pelo “pecado mortal” de seus súditos que haviam ousado condenar a missa.
No grande salão do palácio do bispo o próprio monarca discursou com palavras de comovedora eloqüência, deplorando “o crime, a blasfêmia, o tempo de tristeza e desgraça” que sobrevieram à nação. Apelou a que todo súdito leal o auxiliasse na extirpação da pestilenta “heresia” que ameaçava a França de ruína. Lágrimas abafaram-lhe as palavras, e toda a assembléia chorou, exclamando em uníssono:
“Viveremos e morreremos pela religião católica!” [D’Aubigné. History of the Reformation in Europe in the Time of Calvin, livro 4, cap. 12].
“A graça que traz a salvação” aparecera, mas a França, depois de iluminada por seu fulgor, desviou-se, preferindo as trevas à luz. Tinham chamado ao mal bem, e ao bem mal, até se tornarem vítimas voluntárias de seu próprio engano. Haviam rejeitado voluntariamente a luz que os teria salvo do engano, da nódoa pelo crime de sangue.
Novamente se formou a procissão. “A pequenas distâncias haviam-se erigido cadafalsos, nos quais certos cristãos protestantes deveriam ser queimados vivos, e arranjos foram feitos para que as fogueiras fossem acesas no momento em que o rei se aproximasse e a procissão parasse para testemunhar a execução” [Wylie, livro 13, cap. 21].
Não houve vacilação por parte das vítimas. Ante a exigência de retratação, um dentre os mártires respondeu:
“Creio unicamente no que os profetas e apóstolos anteriormente pregaram, e no que creu a multidão dos santos. Minha fé tem uma confiança em Deus que resistirá a todos os poderes do inferno” [D’Aubigné. History of the Reformation in Europe in the Time of Calvin, livro 4, cap. 12].
Atingindo seu ponto de partida, no palácio real, a multidão dispersou-se e o rei e os prelados retiraram-se, congratulando-se com as realizações do dia, e propondo-se a prosseguir até a completa destruição da “heresia”.
O evangelho da paz que a França rejeitara, havia de ser efetivamente desarraigado, e terríveis seriam os resultados. Em 21 de Janeiro de 1793, passou pelas ruas de Paris outra procissão.
“De novo era o rei a figura principal; novamente havia tumulto e aclamações; repetiu-se o clamor pedindo mais vítimas; reergueram-se negros cadafalsos; e de novo encerraram-se as cenas do dia com horríveis execuções; Luís XVI, lutando de mãos com seus carcereiros e executores, era arrastado para o cepo e ali seguro violentamente até cair o machado e sua cabeça decepada rolar no tablado” [Wylie, livro 13, cap. 21]. Perto do mesmo local dois mil e oitocentos seres humanos pereceram pela guilhotina.
A Reforma apresentara ao mundo a Bíblia aberta. O amor infinito manifestara aos homens os princípios do Céu. Quando a França rejeitou a dádiva do Céu, lançou as sementes da ruína. A inevitável operação de causa e efeito resultou na Revolução e no Reinado do Terror.
O ousado e ardoroso Farel fora obrigado a fugir da terra de seu nascimento para a Suíça. Todavia continuou a exercer decidida influência sobre a Reforma na França. Com o auxílio de outros exilados, os escritos dos reformadores alemães foram traduzidos para o francês e, juntamente com a Bíblia francesa, foram impressos em grande quantidade. Através de colportores estas obras foram extensamente vendidas na França.
Farel entrou para o seu trabalho na Suíça com as humildes vestes de mestre-escola, cautelosamente introduzindo as verdades da Bíblia. Houve alguns que creram, mas os padres se apresentaram para deter o trabalho, e o povo supersticioso se ergueu para se opor ao mesmo.
“Este não pode ser o evangelho de Cristo”, insistiam os padres, “sendo que a pregação disto não traz paz, mas guerra” [Wylie, livro 14, cap. 3].
De vila em vila ia ele, suportando fome, frio e cansaço, e por toda parte em perigo de vida. Pregava nas praças, nas igrejas, e por vezes nos púlpitos das catedrais. Mais de uma vez foi espancado quase até morrer. Contudo, prosseguia. Uma após outra, via vilas e cidades que haviam sido redutos do papado, abrirem suas portas ao evangelho.
Farel desejara implantar as normas protestantes em Genebra. Se esta cidade pudesse ser ganha, seria um centro para a Reforma na França, na Suíça e na Itália. Muitas das cidades e aldeias vizinhas foram ganhas.
Com um único companheiro, entrou em Genebra. Mas foi-lhe permitido pregar apenas dois sermões. Os padres chamaram-no perante um concílio eclesiástico, ao qual chegaram com armas escondidas debaixo das vestes, decididos a tirar-lhe a vida. Fora do salão foi reunida uma multidão furiosa para garantir sua morte, caso conseguisse escapar ao concílio. A presença dos magistrados e de uma força armada, contudo, salvou-o. Cedo, na manhã seguinte, foi conduzido através do lago para um lugar de segurança. Assim terminou seu primeiro esforço para evangelizar Genebra.
Para a próxima prova foi escolhido um instrumento mais humilde — um jovem tão modesto na aparência, que foi tratado friamente até mesmo pelos professos amigos da Reforma. Mas que poderia ele fazer onde Farel havia sido rejeitado! “Deus [...] escolheu as coisas fracas do mundo para envergonhar as fortes” (1 Coríntios 1:27).
Froment, o mestre-escola
Froment iniciou seu trabalho como mestre-escola. As crianças repetiam em seus lares as verdades que ele ensinava na escola. Logo os pais foram ouvir a explicação da Bíblia. Novos Testamentos e folhetos foram livremente distribuídos. Depois de algum tempo esse obreiro também foi obrigado a fugir, mas as verdades que ensinara tinham alcançado a mente das pessoas. A Reforma havia sido plantada. Os pregadores retornaram, e o culto protestante foi finalmente estabelecido em Genebra. A cidade já se havia declarado pela Reforma quando Calvino entrou por suas portas. Estava ele a caminho de Basiléia quando foi obrigado a tomar um desvio por Genebra.
Nessa visita Farel reconheceu a mão de Deus. Embora Genebra houvesse aceitado a fé reformada, a obra de regeneração devia ainda ser realizada no coração pelo poder do Espírito Santo, e não por decretos de concílios. O povo de Genebra repelira a autoridade de Roma, mas não se mostrava tão pronto para renunciar aos vícios que haviam florescido.
Em nome de Deus, Farel conjurou solenemente o jovem evangelista a que ficasse e ali trabalhasse. Calvino recuou, alarmado. Temia o contato com o espírito ousado e mesmo violento daquele filho de Genebra. Desejava encontrar um silencioso retiro para o estudo, e ali, pela imprensa, instruir e edificar igrejas. Entretanto, não ousou recusar-se. Pareceu-lhe “que a mão de Deus estivesse estendida do Céu, tomando-o e fixando-o irrevogavelmente no lugar que ele estava tão impaciente por deixar” [D’Aubigné. History of the Reformation in Europe in the Time of Calvin, livro 9, cap. 17].
O trovão do anátema
Os anátemas [maldição, opróbrio, excomunhão] do papa trovejaram contra Genebra. Como poderia esta pequena cidade resistir à poderosa hierarquia que forçara reis e imperadores à submissão?
Passados os primeiros triunfos da Reforma, Roma convocou novas forças a fim de empreender sua destruição. Foi criada a ordem dos jesuítas — o mais cruel, sem escrúpulos e poderoso de todos os defensores do papado. Insensíveis às exigências das afeições naturais, tendo a consciência inteiramente silenciada, não conheciam nenhuma regra e nenhum dever, a não ser os de sua própria ordem.
O evangelho de Cristo habilitara seus adeptos a enfrentar o sofrimento, a não desfalecer diante do frio, fome, labutas e pobreza, e a desfraldar a verdade em face do instrumento de tortura, do calabouço e da fogueira. O jesuitismo inspirou seus seguidores com um fanatismo que os habilitava a suportar semelhantes perigos, e a opor-se ao poder da verdade com todas as armas do engano. Não havia crime demasiado grande para cometer, nenhum engano demasiado vil para praticar, disfarce algum por demais difícil para assumir. Era seu estudado objetivo subverter o protestantismo e restabelecer a supremacia papal.
Ostentavam uma aparência de santidade, visitando prisões e hospitais, ministrando aos doentes e pobres e levando o sagrado nome de Jesus, que andou fazendo o bem. Entretanto, sob esse exterior irrepreensível, propósitos criminosos e mortíferos freqüentemente se ocultavam.
Era princípio fundamental da ordem que os fins justificam os meios. Mentira, roubo, perjúrio e assassínio seriam até recomendáveis se servissem aos interesses da igreja. Sob vários disfarces, os jesuítas abriam caminho aos cargos do governo, subindo até conselheiros dos reis e moldando a política das nações. Tornavam-se servos para agirem como espias de seus senhores. Estabeleceram colégios para príncipes e nobres, e escolas para o povo comum. Os filhos de pais protestantes eram impelidos à observância dos ritos papais. Assim, a liberdade pela qual os pais tinham lutado e derramado seu sangue, era traída pelos filhos. Aonde quer que iam os jesuítas, eram seguidos de uma revificação do papado.
Para dar-lhes maior poder, foi promulgada uma bula restabelecendo a inquisição. Esse terrível tribunal foi novamente instalado pelos chefes papais, e atrocidades demasiado terríveis para suportar a luz do dia foram repetidas em suas masmorras secretas. Em muitos países, milhares e milhares da própria flor da nação, dos mais intelectuais e altamente educados, foram mortos ou obrigados a fugir para outros países.
Vitórias da Reforma
Tais foram os meios que Roma invocou a fim de apagar a luz da Reforma e restaurar a ignorância e superstição da Idade Escura. Mas sob a bênção de Deus e os trabalhos daqueles homens nobres que Ele suscitou a fim de suceder a Lutero, o protestantismo não foi esfacelado. Sua força não veio das armas dos príncipes. As menores e menos poderosas nações se tornaram o seu baluarte. Foi na pequena Genebra; foi na Holanda, lutando contra a tirania da Espanha; foi na gelada e estéril Suécia, que se ganharam vitórias em prol da Reforma.
Durante quase trinta anos Calvino trabalhou em Genebra em favor do avançamento da Reforma pela Europa toda. Sua conduta não era irrepreensível, tampouco suas doutrinas destituídas de erro. Mas ele foi um instrumento para a promulgação de verdades de especial importância, na manutenção de princípios do protestantismo contra a maré do papado que refluía rapidamente, e na promoção da simplicidade e pureza de vida nas igrejas reformadas.
De Genebra saíram publicações e ensinadores para disseminar as doutrinas reformadas. Daquele ponto os perseguidos de todos os países esperavam instrução e encorajamento. A cidade de Calvino tornou-se um refúgio para os acossados reformadores de toda a Europa ocidental. Eram afetuosamente recebidos e tratados com ternura; encontrando ali um lar, abençoavam a cidade de sua adoção por meio de sua habilidade, saber e piedade. João Knox, o bravo reformador escocês; não poucos puritanos ingleses; protestantes da Holanda e da Espanha, além dos huguenotes da França, levaram de Genebra a tocha da verdade para iluminar as trevas de suas terras natais.
(Ellen G. White. O Grande Conflito, p. 95-105)
sábado, 1 de setembro de 2012
A Dieta de Espira e o protesto dos príncipes cristãos da Alemanha
Um dos mais nobres testemunhos já proferidos pela Reforma foi o protesto apresentado pelos príncipes cristãos da Alemanha, na Dieta de Espira, em 1529. A coragem e firmeza daqueles homens de Deus obtiveram, para os séculos que se seguiram, a liberdade de consciência, dando à igreja reformada o nome de Protestante.
A providência divina repelira as forças que se opunham à verdade. Carlos V estava inclinado a aniquilar a Reforma, mas sempre que levantou a mão para dar o golpe foi obrigado a desviá-lo. Repetidas vezes, no momento crítico, os exércitos dos turcos apareceram na fronteira, ou o rei da França, ou mesmo o próprio papa, faziam guerra contra ele. Assim, entre a contenda e o tumulto das nações, a Reforma foi deixada a fortalecer-se e expandir-se.
Finalmente, contudo, os soberanos católicos estabeleceram causa comum contra os reformadores. O imperador convocou uma Dieta a reunir-se em Espira, em 1529, com o propósito de destruir a heresia. Se os meios pacíficos falhassem, Carlos estaria disposto a recorrer à espada.
Os romanistas reunidos em Espira manifestaram sua hostilidade para com os reformadores. Disse Melâncton: “Somos a execração e a escória do mundo; mas Cristo olhará para o Seu pobre povo e o preservará” [J. H. Merle D’Aubigné, History of the Reformation of the Sixteenth Century, livro 13, cap. 5].
O povo de Espira tinha sede da Palavra de Deus e, a despeito da proibição, milhares se congregavam para os serviços realizados na capela do eleitor da Saxônia. Isto apressou a crise. A tolerância religiosa havia sido estabelecida legalmente, e os estados evangélicos estavam resolvidos a opor-se à violação de seus direitos. O lugar de Lutero foi preenchido por seus cooperadores e pelos príncipes que Deus suscitara para defender Sua causa. Frederico da Saxônia fora arrebatado pela morte, mas o duque João, seu sucessor, aceitou alegremente a Reforma e manifestava grande coragem.
Os padres demandavam que os Estados que haviam aceito a Reforma se submetessem à jurisdição romana. Os reformadores, por outro lado, não poderiam consentir que Roma pusesse de novo sob seu domínio Estados que haviam recebido a Palavra de Deus.
Foi finalmente proposto que onde a Reforma não se houvesse estabelecido, o edito de Worms deveria ser rigorosamente posto em execução; e que “onde o povo não pudesse conformar-se com ele sem perigo de revolta, não se deveria ao menos efetuar qualquer nova Reforma, [...] não deveria haver oposição à celebração da missa, e nem se permitir que qualquer católico romano abraçasse o luteranismo”. Essa medida foi aprovada pela Dieta, para grande satisfação dos sacerdotes e prelados.
Questões fundamentais em jogo
Se esse edito fosse executado, “a Reforma não poderia nem estender-se [...] nem estabelecer-se sobre sólidos fundamentos [...] onde já existia” [J. H. Merle D’Aubigné, History of the Reformation of the Sixteenth Century, livro 13, cap. 5]. A liberdade seria proibida. Não se permitiriam conversões. As esperanças do mundo pareciam a ponto de se extinguir.
Os do partido evangélico se entreolharam, pálidos de terror: “Que se poderá fazer?” “Os chefes da Reforma se submeterão e aceitarão o edito? [...] Aos príncipes luteranos era garantido o livre exercício de sua religião. O mesmo favor era estendido a todos os seus súditos que, antes da aprovação daquela medida, haviam abraçado as idéias reformadas. Não deveria isto contentá-los? [...]
“Felizmente consideraram o princípio sobre o qual aquele acordo se baseava, e agiram com fé. Qual era o princípio? Era o direito de Roma em coagir a consciência e proibir a livre pesquisa. Mas não deveriam eles próprios e seus súditos protestantes gozar de liberdade religiosa? Sim, como um favor especialmente estipulado naquele acordo, mas não como um direito. [...] A aceitação do acordo proposto teria sido admissão virtual de que a liberdade religiosa se devesse limitar à Saxônia reformada; quanto ao resto de toda a cristandade, a livre investigação e a profissão da fé reformada seriam crimes, e deveriam ser castigados com a masmorra e a fogueira. Poderiam eles consentir em localizar a liberdade religiosa? [...] Poderiam os reformadores alegar que eram inocentes do sangue daquelas centenas e milhares que, em conseqüência desse acordo, teriam de perder a vida nas terras papais?” [Wylie, livro 9, cap. 15].
“Rejeitemos esse decreto”, disseram os príncipes. “Em assuntos de consciência a maioria não tem poder.” Proteger a liberdade de consciência é dever do Estado, e este é o limite de sua autoridade em matéria de religião.
Os romanistas decidiram-se a derrubar o que denominaram “ousada obstinação”. Dos representantes das cidades livres foi exigido que declarassem se acederiam ou não aos termos da proposta. Estes pediram prazo, mas em vão. Quase a metade se declarou pela Reforma, e estes bem sabiam que sua posição os assinalava para a futura condenação e perseguição. Disse um deles: “Devemos ou negar a Palavra de Deus, ou ser queimados” [J. H. Merle D’Aubigné, History of the Reformation of the Sixteenth Century, livro 9, cap. 15].
Posição nobre dos príncipes
O rei Fernando, representante do imperador, experimentou a arte da persuasão. “Pediu aos príncipes que aceitassem o decreto, assegurando-lhes que o imperador grandemente se agradaria deles.” Mas aqueles homens leais responderam calmamente: “Obedeceremos ao imperador em tudo que possa contribuir para manter a paz e a honra de Deus.”
O rei finalmente anunciou que “a única maneira de agir que lhes restava, seria submeter-se à maioria”. Tendo assim falado, retirou-se, não dando aos reformadores oportunidade para replicar. “Sem nenhum resultado, enviaram uma delegação pedindo ao rei que voltasse.” Ele respondeu somente: “É questão decidida; a submissão é tudo o que resta” [J. H. Merle D’Aubigné, History of the Reformation of the Sixteenth Century, livro 9, cap. 15].
O partido imperial estava convicto de que a causa do imperador e do papa era forte, e a dos reformadores, fraca. Se os reformadores tivessem confiado unicamente no auxílio humano teriam sido tão impotentes como o supunham os adeptos do papa. Mas eles apelaram “do relatório da Dieta para a Palavra de Deus, e do imperador Carlos para Jesus Cristo, Rei dos reis e Senhor dos senhores”.
Como Fernando se recusasse a tomar em consideração suas convicções de consciência, os príncipes se decidiram a não tomar em conta a sua ausência, mas levar sem demora seu protesto perante o concílio nacional. Foi redigida e apresentada à Dieta esta solene declaração:
“Protestamos pelos que se acham presentes [...] que nós, por nós e pelo nosso povo, não concordamos de maneira alguma com o decreto proposto, nem aderimos ao mesmo em tudo que seja contrário a Deus, à Sua santa Palavra, ao nosso direito de consciência, à nossa salvação. [...] Por essa razão rejeitamos o jugo que nos é imposto. [...] Ao mesmo tempo estamos na expectativa de que Sua Majestade imperial procederá em relação a nós como príncipe cristão que ama a Deus acima de todas as coisas; e declaramo-nos prontos a tributar-lhe, bem como a vós, graciosos fidalgos, toda a afeição e obediência que sejam nosso dever justo e legítimo” [J. H. Merle D’Aubigné, History of the Reformation of the Sixteenth Century, livro 13, cap. 6].
A maioria foi tomada de espanto e alarma ante a ousadia dos que protestavam. Dissensão, contenda e derramamento de sangue pareciam inevitáveis. Os reformadores, porém, confiando no braço da Onipotência, estavam “cheios de coragem e firmeza”.
“Os princípios contidos nesse célebre protesto [...] constituem a própria essência do protestantismo. [...] O protestantismo coloca o poder da consciência acima do magistrado, e a autoridade da Palavra de Deus acima da igreja visível. [...] Ele diz com os profetas e apóstolos: ‘Mais importa obedecer a Deus do que aos homens.’ Na presença da coroa de Carlos V, ele ergue a coroa de Jesus Cristo” [J. H. Merle D’Aubigné, History of the Reformation of the Sixteenth Century, livro 13, cap. 6]. O protesto de Espira foi um testemunho solene contra a intolerância religiosa, e uma afirmação do direito de todos os homens adorarem a Deus de acordo com sua própria consciência.
A experiência desses nobres reformadores contém uma lição para todas as eras subseqüentes. Satanás ainda se opõe a que sejam as Escrituras adotadas como guia da vida. Em nosso tempo se observa a necessidade de uma volta ao grande princípio protestante — a Bíblia, e a Bíblia somente, como regra de fé e prática. Satanás ainda está trabalhando a fim de destruir a liberdade religiosa. O poder anticristão que os protestantes de Espira rejeitaram está hoje com renovado vigor procurando restabelecer sua supremacia perdida.
A Dieta de Augsburgo
O rei Fernando havia se negado a ouvir os príncipes evangélicos, mas, a fim de acalmar as dissensões que perturbavam o império, Carlos V, no ano que se seguiu ao protesto de Espira, convocou uma Dieta em Augsburgo. Anunciou sua intenção de presidi-la pessoalmente. Os líderes protestantes foram convocados.
Os conselheiros do eleitor da Saxônia instaram com ele para que não comparecesse à Dieta: “Não é arriscar tudo, ir e encerrar-se alguém dentro dos muros de uma cidade, com um poderoso inimigo?” Outros, porém, nobremente declaravam: “Portem-se tão-somente os príncipes com coragem, e a causa de Deus está salva.” “Deus é fiel; Ele não nos abandonará”, disse Lutero [J. H. Merle D’Aubigné, History of the Reformation of the Sixteenth Century, livro 14, cap. 2].
O eleitor partiu para Augsburgo. Muitos o seguiram com semblante triste e coração perturbado. Mas Lutero, que os acompanhou até Coburgo, reviveu-lhes a fé cantando o hino escrito para aquela viagem: “Castelo Forte.” Muitos corações sobrecarregados aliviaram-se ao som dos acordes inspirados.
Os príncipes reformados resolveram redigir uma declaração de suas opiniões, com as provas das Escrituras, a fim de apresentá-la à Dieta. A tarefa de sua preparação foi confiada a Lutero, Melâncton e seus companheiros. Esta Confissão foi aceita pelos protestantes, reunindo-se os mesmos para assinar o documento.
Os reformadores insistiam em que sua causa não fosse confundida com questões políticas. Ao virem para a frente os príncipes cristãos a fim de assinar a Confissão, Melâncton se interpôs, dizendo: “Compete aos teólogos e ministros propor estas coisas; reservemos para outros assuntos a autoridade dos poderosos da Terra.” “Deus não permita”, replicou João da Saxônia, “que me excluais. Estou resolvido a fazer o que é reto sem me perturbar acerca de minha coroa. Desejo confessar o Senhor. Meu chapéu de eleitor e meus arminhos não são para mim tão preciosos como a cruz de Jesus Cristo.” Disse outro dos príncipes ao tomar a pena: “Se a honra de meu Senhor Jesus Cristo o exige, estou pronto [...] para deixar meus bens e a vida.” “Renunciaria de preferência a meus súditos e a meus domínios, deixaria de preferência o país de meus pais com o bordão na mão”, prosseguiu ele, “a receber qualquer outra doutrina que não a que se contém nesta Confissão” [J. H. Merle D’Aubigné, History of the Reformation of the Sixteenth Century, livro 14, cap. 6].
Chegou o tempo designado. Carlos V, rodeado de seus eleitores e príncipes, deu audiência aos reformadores protestantes. Naquela augusta assembléia as verdades do evangelho foram claramente apresentadas, e indicados os erros da igreja papal. Aquele dia foi declarado “o maior dia da Reforma, e um dos mais gloriosos na história do cristianismo e da humanidade” [J. H. Merle D’Aubigné, History of the Reformation of the Sixteenth Century, livro 14, cap. 7].
O monge de Wittenberg estivera sozinho em Worms. Agora, em seu lugar estavam os mais nobres e poderosos príncipes do império. “Estou jubilosíssimo”, escreveu Lutero, “de que eu tenha vivido até esta hora, na qual Cristo é publicamente exaltado por tão ilustres pessoas que O confessam, e numa assembléia tão gloriosa.”
Aquilo que o imperador proibiu que fosse pregado do púlpito, era proclamado em palácio; aquilo que muitos tinham considerado inconveniente que os próprios servos ouvissem, era com admiração ouvido pelos senhores e fidalgos do império. [...] Príncipes coroados eram os pregadores, e o sermão era a régia verdade de Deus. “Desde a era apostólica nunca houve obra maior nem mais magnificente Confissão” [J. H. Merle D’Aubigné, History of the Reformation of the Sixteenth Century, livro 14, cap. 7].
Um dos princípios mais firmemente mantidos por Lutero era que não deveria haver recurso ao poder secular em apoio à Reforma. Regozijava-se de que o evangelho fosse confessado pelos príncipes do império; mas quando eles se propuseram unir-se numa liga defensiva, o reformador declarou que “a doutrina do evangelho seria defendida por Deus somente. [...] Todas as precauções políticas sugeridas eram, em sua opinião, atribuíveis ao temor indigno e à pecaminosa desconfiança” [J. H. Merle D’Aubigné, History of the Reformation of the Sixteenth Century, livro 10, cap. 14].
Em data posterior, referindo-se à aliança sugerida pelos príncipes reformados, Lutero declarou que a única arma empregada nesta luta deveria ser a “espada do Espírito”. Escreveu ele ao eleitor da Saxônia:
“Não podemos perante nossa consciência aprovar a aliança proposta. [...] Temos de tomar a cruz de Cristo. Seja Vossa Alteza sem temor. Faremos mais com nossas orações do que todos os nossos inimigos com sua jactância” [J. H. Merle D’Aubigné, History of the Reformation of the Sixteenth Century, livro 14, cap. 1].
Do local secreto da oração proveio o poder que abalou o mundo na grande Reforma. Em Augsburgo, Lutero “não passou um só dia sem dedicar pelo menos três horas à oração”. Na intimidade de sua recâmara era ele ouvido a lutar com Deus em palavras “cheias de adoração, temor e esperança”. Escreveu ele a Melâncton:
“Se a causa é injusta, abandonai-a; se a causa é justa, por que desmentiríamos as promessas dAquele que nos manda dormir sem temor?” [J. H. Merle D’Aubigné, History of the Reformation of the Sixteenth Century, livro 14, cap. 6].
Os reformadores protestantes haviam edificado sobre Cristo. As portas do inferno não prevaleceriam contra eles!
(Ellen G. White. O Grande Conflito, p. 90-94)
quarta-feira, 29 de agosto de 2012
O desaparecimento de Lutero e o progresso da Reforma na Alemanha
Castelo de Wartburg onde Lutero traduziu a Bíblia |
O desaparecimento misterioso de Lutero provocou consternação por toda a Alemanha. Circulavam rumores disparatados, e muitos criam que ele havia sido assassinado. Houve grande lamentação e muitos se comprometiam, sob juramento solene, a vingar sua morte.
Embora a princípio se sentissem felizes com a suposta morte de Lutero, seus inimigos encheram-se de temor agora que ele se tornara um cativo. “O único meio que resta para nos salvarmos”, disse um deles, “consiste em acender tochas e sair à procura de Lutero pelo mundo inteiro, a fim de reintegrá-lo à nação que está chamando por ele” [J. H. Merle D’Aubigné. History of the Reformation of the Sixteenth Century, livro 9, cap. 1]. As notícias de que ele estava em segurança, embora prisioneiro, acalmaram o povo, ao passo que seus escritos eram lidos com maior sofreguidão do que nunca antes. Um número crescente de pessoas aderiu à causa do heróico homem que defendera a Palavra de Deus.
A semente que Lutero lançara germinou por toda parte. Sua ausência cumpriu uma obra que sua presença não teria conseguido realizar. Agora que seu grande chefe fora removido, outros obreiros avançavam a fim de que não fosse impedida a obra tão nobremente iniciada.
Satanás tentou agora enganar e destruir o povo apresentando-lhe uma contrafação em lugar da verdadeira obra. Assim como houve falsos cristos no primeiro século da igreja cristã, surgiram também falsos profetas no século décimo sexto.
Alguns poucos homens imaginaram haver recebido revelações especiais do Céu, pretendendo ter sido divinamente comissionados a levar avante a obra de Reforma, a qual, declaravam eles, fora apenas fracamente iniciada por Lutero. Na verdade, estavam desfazendo o próprio trabalho que ele realizara. Rejeitavam o princípio da Reforma — que a Palavra de Deus é a regra todo-suficiente de fé e prática. Eles substituíram esse guia infalível pelo padrão incerto de seus próprios sentimentos e impressões.
Outros, que eram naturalmente propensos ao fanatismo, se uniram a eles. A ação desses entusiastas criou grande confusão. A pregação de Lutero tinha levado o povo a sentir a necessidade de reforma, e agora algumas pessoas realmente sinceras foram transviadas pelas pretensões dos novos “profetas”.
Os líderes do movimento instaram com Melâncton para que aceitasse suas pretensões. “Nós somos enviados por Deus para instruir o povo. Temos mantido conversação familiar com o Senhor; sabemos o que acontecerá; em uma palavra, somos apóstolos e profetas, e apelamos para o Dr. Lutero.”
Os reformadores ficaram perplexos. Disse Melâncton: “Há efetivamente espírito extraordinário nestes homens; mas que espírito? [...] De um lado, acautelemo-nos de entristecer o Espírito de Deus, e de outro, de sermos desgarrados pelo espírito de Satanás” [J. H. Merle D’Aubigné. History of the Reformation of the Sixteenth Century, livro 9, cap. 7].
O fruto dos novos ensinos torna-se evidente
O povo foi levado a negligenciar a Bíblia ou a lançá-la inteiramente de lado. Estudantes, repelindo toda restrição, abandonavam os estudos e retiravam-se da universidade. Os homens que se julgavam competentes para reanimar e controlar a obra da Reforma, conseguiram unicamente levá-la às bordas da ruína. Os romanistas recuperaram então sua confiança, e exclamaram exultantemente: “Mais uma luta, e tudo será nosso.”
Lutero, em Wartburgo, ouvindo o que ocorrera, disse com profundo pesar: “Sempre esperei que Satanás nos mandaria esta praga” [J. H. Merle D’Aubigné. History of the Reformation of the Sixteenth Century, livro 9, cap. 7]. Percebeu o verdadeiro caráter destes pretensos “profetas”. A oposição do papa e do imperador não lhe causara tão grande angústia quanto agora. Dos professos “amigos” da Reforma haviam surgido seus piores inimigos, provocando contenda e criando confusão.
Lutero fora compelido à frente pelo Espírito de Deus, e levado além do que ele pessoalmente teria ido. Contudo, muitas vezes estremecia pelos resultados de seu trabalho. “Se eu soubesse que minha doutrina tivesse prejudicado um homem — um só homem — por humilde e obscuro que fosse — o que não pode ser, pois que é o próprio evangelho — eu preferiria morrer dez vezes a não retratar-me” [J. H. Merle D’Aubigné. History of the Reformation of the Sixteenth Century, livro 9, cap. 7].
A própria cidade de Wittenberg estava caindo sob o poder do fanatismo e da anarquia. Por toda a Alemanha os inimigos de Lutero o estavam acusando. Em amargura de espírito ele perguntou: “Poderá, então, ser esse o fim desta grande obra de Reforma?” De novo, lutando com Deus em oração, seu coração se encheu de paz. “A obra não é minha, mas Tua”, disse ele. Tomou então a decisão de retornar a Wittenberg.
Achava-se sob a condenação do império. Os inimigos tinham a liberdade de tirar-lhe a vida, e aos amigos era vedado auxiliá-lo ou abrigá-lo. Via, porém, que a obra do evangelho estava em perigo, e em nome do Senhor saiu destemidamente para batalhar pela verdade. Numa carta ao eleitor, Lutero disse: “Estou indo a Wittenberg sob proteção muito maior que a de príncipes e eleitores. Não penso em solicitar o apoio de Vossa Alteza, e longe de desejar sua proteção, eu mesmo, antes, o protegerei. [...] Não há espada que possa favorecer esta causa. Deus, sozinho, deve fazer tudo.” Numa segunda carta, Lutero acrescentou: “Estou pronto para incorrer no desagrado de Vossa Alteza e na ira do mundo inteiro. Não são os habitantes de Wittenberg minhas ovelhas? Não deveria eu, em sendo necessário, expor-me à morte por sua causa?” [J. H. Merle D’Aubigné. History of the Reformation of the Sixteenth Century, livro 9, cap. 8].
O poder da Palavra
Logo circulou por toda Wittenberg a notícia de que Lutero voltara e deveria pregar. A igreja transbordou. Com grande sabedoria e mansidão, ele instruiu e reprovou:
“A missa é coisa má; Deus Se opõe a ela; deve ser abolida. [...] Mas que ninguém seja dela arrancado pela força. [...] A Palavra de Deus [...] deve agir, e não nós. [...] Temos o direito de falar: não temos o direito de agir. Preguemos; o resto pertence a Deus. Se eu empregasse a força, o que haveria de lucrar? Deus Se apodera do coração; e quando o coração é tomado, tudo está ganho.
“Pregarei, discutirei, escreverei; mas não constrangerei a ninguém, pois a fé é ato voluntário. [...] Levantei-me contra o papa, seus partidários e as indulgências, mas sem violência ou tumulto. Apresentei a Palavra de Deus; preguei e escrevi — isso é tudo que fiz. Contudo, enquanto eu dormia [...] a palavra que eu preguei subverteu o papado, de maneira tal que nunca um imperador ou príncipe lhe aplicou semelhante golpe. E, entretanto, nada fiz; sozinha, a Palavra fez tudo” [J. H. Merle D’Aubigné. History of the Reformation of the Sixteenth Century, livro 9, cap. 8]. A Palavra de Deus quebrou o encanto da provocação fanática. O evangelho trouxe de novo para o caminho da verdade o povo transviado.
Alguns anos mais tarde o fanatismo irrompeu com resultados ainda mais terríveis. Disse Lutero: “Para eles as Escrituras Sagradas não eram senão letra morta, e todos começaram a clamar: ‘O Espírito! O Espírito!’ Mas com certeza não seguirei para onde o seu espírito os conduz” [J. H. Merle D’Aubigné. History of the Reformation of the Sixteenth Century, livro 10, cap. 10].
Thomas Münzer, o mais ativo dos fanáticos, era homem de considerável habilidade, mas não aprendera a verdadeira religião: “Tinha o desejo de reformar o mundo, e esquecia-se, como o fazem todos os entusiastas, de que a reforma deveria começar consigo mesmo” [J. H. Merle D’Aubigné. History of the Reformation of the Sixteenth Century, livro 9, cap. 8]. Não estava disposto a ficar em segundo lugar, nem mesmo em relação a Lutero. Ele próprio pretendia haver sido divinamente incumbido de introduzir a verdadeira reforma: “Aquele que possui este espírito, possui a verdadeira fé, ainda que em sua vida nunca houvesse visto as Escrituras” [J. H. Merle D’Aubigné. History of the Reformation of the Sixteenth Century, livro 10, cap. 10].
Os ensinadores fanáticos se deixaram levar por sentimentos, considerando todo pensamento e impulso como sendo a voz de Deus. Alguns até mesmo queimavam suas Bíblias. As doutrinas de Münzer foram recebidas com entusiasmo por milhares. Logo ele declarava que obedecer aos príncipes era tentar servir simultaneamente a Deus e a Belial.
Os ensinos revolucionários de Münzer levaram o povo a romper com todo domínio. Seguiram-se terríveis cenas de contenda, e os campos da Alemanha se encharcaram de sangue.
Agonia oprime Lutero
Os príncipes romanistas declararam que aquela rebelião era fruto das doutrinas de Lutero. Tal acusação só poderia causar grande angústia ao reformador, e isto porque a causa da verdade estava sendo classificada com o mais desprezível fanatismo. Por outro lado, os chefes da revolta odiavam Lutero. Este não apenas se opusera às pretensões de divina inspiração que aqueles reclamavam, como ainda os declarara rebeldes à autoridade civil. Em represália, denunciaram-no como um vil pretensioso.
Os romanistas esperavam testemunhar a queda da Reforma. Culpavam Lutero até mesmo dos erros que ele tão zelosamente se esforçou por corrigir. A facção fanática, pretendendo falsamente haver sido tratada com injustiça, conseguiu ganhar simpatias, vindo seus membros a ser vistos como mártires. Assim, aqueles que se encontravam em oposição à Reforma eram vistos com piedade e elogiados. Essa obra pertencia ao mesmo espírito de rebelião que se manifestou primeiramente no Céu.
Satanás está constantemente procurando enganar os homens e levá-los a chamar ao pecado justiça, e à justiça, pecado. Santidade falsificada, santificação espúria, são ainda hoje manifestações do mesmo espírito que as produziu nos dias de Lutero, desviando a mente das Escrituras e conduzindo os homens a seguir sentimentos e impressões em lugar da lei de Deus.
Destemidamente, Lutero defendeu o evangelho dos ataques. Com a Palavra de Deus, guerreou outra vez contra a usurpadora autoridade do papa, ao mesmo tempo que se mantinha firme como uma rocha contra o fanatismo que pretendia estar aliado à Reforma.
Cada um desses elementos oponentes estava pondo de parte as Sagradas Escrituras, exaltando a sabedoria humana como a fonte de verdade. O racionalismo deifica a razão e dela faz o critério para a religião. O romanismo, pretendendo uma inspiração que descende ininterruptamente dos apóstolos, oferece oportunidade para a extravagância e corrupção se ocultarem sob a comissão “apostólica”. A inspiração pretendida por Münzer procedia das divagações da imaginação. O verdadeiro cristianismo recebe a Palavra de Deus como a prova de toda inspiração.
De volta de Wartburgo, Lutero completou sua tradução do Novo Testamento, que logo depois foi entregue ao povo da Alemanha em sua própria língua. Essa tradução foi recebida com grande alegria por todos os que amavam a verdade.
Os padres estavam alarmados com a idéia de que o povo comum seria agora capaz de discutir com eles a respeito da Palavra de Deus, e de que sua própria ignorância seria assim exposta. Roma convocou toda a sua autoridade para impedir a disseminação das Escrituras. Contudo, quanto mais ela proibia a Bíblia, maior era a ansiedade do povo por saber o que a mesma realmente ensinava. Todos os que sabiam ler estavam ávidos por estudar por si mesmos e não podiam satisfazer-se antes que confiassem à memória grandes porções da Palavra. Lutero iniciou imediatamente a tradução do Antigo Testamento.
Os escritos de Lutero foram bem recebidos, tanto nas cidades quanto nas aldeias. “O que Lutero e seus amigos compunham, outros faziam circular. Monges, convictos das obrigações ilícitas dos mosteiros, mas demasiado ignorantes para proclamar a Palavra de Deus, [...] vendiam os livros de Lutero e de seus amigos. Logo se espalharam pela Alemanha esses ousados colportores” [J. H. Merle D’Aubigné. History of the Reformation of the Sixteenth Century, livro 9, cap. 11].
A Bíblia é estudada por toda parte
À noite os professores das escolas das aldeias liam em voz alta aos pequenos grupos reunidos à sua volta. Com cada esforço, algumas pessoas eram convencidas da verdade. “A revelação das Tuas palavras esclarece, e dá entendimento aos simples” (Salmos 119:130).
Os romanistas, que haviam deixado o estudo das Escrituras aos padres e monges, chamavam por eles agora, para que refutassem os novos ensinos. Mas, ignorantes acerca das Escrituras, sacerdotes e frades eram totalmente derrotados. “Infelizmente”, escreveu um autor católico, “Lutero persuadiu seus seguidores a não depositar fé em qualquer outro oráculo além das Escrituras Sagradas” [J. H. Merle D’Aubigné. History of the Reformation of the Sixteenth Century, livro 9, cap. 11].
Multidões se reuniam para ouvir a verdade advogada por homens de pouca instrução. A vergonhosa ignorância dos grandes homens tornava-se evidente à medida que seus argumentos eram defrontados pelos singelos ensinos da Palavra de Deus. Operários, soldados, mulheres e mesmo crianças, estavam mais familiarizados com os ensinos da Bíblia do que os padres e ilustres doutores.
Jovens de espírito lúcido dedicavam-se ao estudo, investigando as Escrituras e familiarizando-se com as obras-primas da Antiguidade. Possuindo mentes ativas e corações intrépidos, esses jovens logo adquiriram tal saber que durante longo período de tempo ninguém podia competir com eles. [...] O povo encontrara nos novos ensinos aquilo que lhes supria as necessidades espirituais, e afastou-se daqueles que por tanto tempo o tinham alimentado com inúteis bolotas de ritos supersticiosos e tradições humanas.
Quando se acendeu a perseguição contra os ensinadores da verdade, deram atenção às palavras de Cristo: “Quando, porém, vos perseguirem numa cidade, fugi para outra” (Mateus 10:23). Os fugitivos encontraram portas abertas em outros lugares, e ali pregaram a Cristo, algumas vezes na igreja, ou nas casas particulares, ou ao ar livre. A verdade propagava-se com irresistível poder.
Em vão as autoridades eclesiásticas e civis recorriam à prisão, tortura, fogo e espada. Milhares de crentes selaram a fé com seu sangue, e não obstante a perseguição serviu apenas para propagar a verdade. O fanatismo que Satanás se esforçou por confundir com esta, teve como resultado tornar mais claro o contraste entre a obra de Satanás e a de Deus.
(Ellen G. White. O Grande Conflito, p. 85-89)
sexta-feira, 24 de agosto de 2012
domingo, 12 de agosto de 2012
Ulrico Zuínglio - A luz acende-se na Suíça
Poucas semanas depois do nascimento de Lutero na cabana de um mineiro, na Saxônia, nasceu Ulrico Zuínglio, na choupana de um pastor entre os Alpes. Criado entre cenas de grandiosidade natural, sua mente foi precocemente impressionada com a majestade de Deus. Ao lado da avó, ouvia as poucas e preciosas histórias bíblicas que ela rebuscara entre as lendas e tradições da igreja.
Com a idade de treze anos foi a Berna, que possuía então a mais conceituada escola da Suíça. Ali, contudo, surgiu um perigo. Os frades fizeram todos os esforços possíveis a fim de atraí-lo a um convento. Providencialmente, seu pai recebeu a notícia do intuito dos frades. Viu que a utilidade futura do filho estava em perigo, e ordenou-lhe que voltasse para casa.
A ordem foi obedecida, mas o jovem não poderia estar contente por muito tempo em seu vale natal, de modo que logo retomou os estudos, dirigindo-se, depois de algum tempo, a Basiléia. Foi ali que Zuínglio ouviu pela primeira vez o evangelho da livre graça de Deus. Wittembach, ao estudar o grego e o hebraico, fora conduzido às Escrituras Sagradas, e assim raios de luz divina se derramaram na mente dos estudantes sob sua instrução. Ele declarava que a morte de Cristo é o único resgate do pecador. Para Zuínglio estas palavras foram como que o primeiro raio de luz que precede a aurora.
Logo Zuínglio foi chamado de Basiléia para o serviço ativo. Seu primeiro trabalho foi numa paróquia alpina. Ordenado sacerdote, “dedicou-se totalmente à pesquisa da verdade divina” (Wylie, livro 8, cap. 5).
Quanto mais pesquisava as Escrituras, mais claro aparecia o contraste entre suas verdades e as heresias de Roma. Ele se submeteu à Bíblia como a Palavra de Deus, única regra suficiente e infalível. Viu que ela deveria ser seu próprio intérprete. Procurou todo auxílio a fim de obter compreensão ampla e correta de seu sentido, e invocou a ajuda do Espírito Santo. “Comecei a rogar a Deus a Sua luz”, escreveu ele mais tarde, “e as Escrituras foram-se tornando muito mais fáceis para mim” (Wylie, livro 8, cap. 6).
A doutrina pregada por Zuínglio não foi recebida de Lutero. Era a doutrina de Cristo. “Se Lutero prega a Cristo”, disse o reformador suíço, “ele faz o que eu estou fazendo. [...] Nunca uma só palavra foi por mim escrita a Lutero, nem por Lutero a mim. E por quê? [...] Para que se pudesse mostrar o quanto o Espírito de Deus é coerente, visto que nós dois, sem qualquer combinação, ensinamos a doutrina de Cristo com tal uniformidade” (J. H. Merle D’Aubigné, History of the Reformation of the Sixteenth Century, livro 8, cap. 9).
Em 1516 Zuínglio foi convidado a pregar no convento de Einsiedeln. Ali deveria, como reformador, exercer uma influência que seria sentida muito além de seus Alpes nativos.
Entre as principais atrações de Einsiedeln havia uma imagem da Virgem, que diziam ter o poder de operar milagres. Sobre o portal do convento havia a inscrição: “Aqui se pode obter remissão plenária dos pecados” (J. H. Merle D’Aubigné, History of the Reformation of the Sixteenth Century, livro 8, cap. 5). Multidões acorriam ao relicário da Virgem, vindas de todas as partes da Suíça, e mesmo da França e da Alemanha. Zuínglio aproveitou a oportunidade para proclamar àqueles escravos das superstições a liberdade mediante o evangelho.
“Não imagineis”, disse ele, “que Deus está neste templo mais do que em qualquer outra parte da criação. [...] Podem obras sem proveito, longas peregrinações, ofertas, imagens, invocações da Virgem ou dos santos assegurar-vos a graça de Deus? [...] Que eficácia tem um capuz luzidio, cabeça bem rapada, vestes bem compridas e flutuantes, ou chinelas bordadas a ouro? Cristo, que uma vez foi oferecido sobre a cruz, é o sacrifício e vítima, que por toda a eternidade proveu satisfação para os pecados dos crentes” (J. H. Merle D’Aubigné, History of the Reformation of the Sixteenth Century, livro 8, cap. 5).
Para muitos representava uma amarga decepção ouvir que sua penosa viagem fora sem proveito. O perdão livremente oferecido em Cristo era algo que não podiam compreender. Estavam satisfeitos com o caminho que Roma lhes indicara. Era mais fácil confiar sua salvação aos padres e ao papa do que procurar pureza de coração.
Outra classe, entretanto, recebeu com alegria as novas da redenção por meio de Cristo. Pela fé aceitaram o sangue do Salvador como sua propiciação. Estes voltavam para casa a fim de revelar a outros a preciosa luz que haviam recebido. A verdade era assim levada de aldeia em aldeia, de cidade em cidade, e o número de peregrinos ao relicário da Virgem diminuiu grandemente. Houve decréscimo nas ofertas e, conseqüentemente, no salário de Zuínglio, que delas era tirado. Mas isto apenas lhe causava alegria, vendo ele que o poder da superstição estava sendo quebrado. A verdade estava ganhando o coração do povo.
Zuínglio é chamado a Zurique
Depois de três anos Zuínglio foi chamado a pregar na catedral de Zurique, que era então a mais importante cidade da confederação suíça. A influência exercida ali seria amplamente sentida. Os eclesiásticos se puseram a instruí-lo quanto a seus deveres:
“Farás todo o esforço, para coletar as receitas do capítulo, sem desprezar a menor. [...] Serás diligente em aumentar as rendas que se arrecadam dos doentes, das missas e de toda ordenança eclesiástica em geral.” “Quanto à administração dos sacramentos, à pregação e ao cuidado do rebanho, [...] podes empregar um substituto, e particularmente no pregar” (J. H. Merle D’Aubigné, History of the Reformation of the Sixteenth Century, livro 8, cap. 6).
Zuínglio ouviu em silêncio esta ordem, e disse em resposta: “A vida de Cristo tem por demasiado tempo sido ocultada do povo. Pregarei acerca do evangelho todo de Mateus. [...] À glória de Deus, ao louvor de Seu único Filho, à salvação real das pessoas e à sua edificação na verdadeira fé, é que eu consagrarei meu ministério.”
O povo afluía em grande número para ouvir sua pregação. Iniciou seu ministério abrindo os evangelhos, lendo e explicando aos ouvintes a vida, ensinos e morte de Cristo. “É a Cristo”, dizia ele, “que eu desejo conduzir-vos — a Cristo, a verdadeira fonte da salvação.” Estadistas, eruditos, operários e camponeses escutavam suas palavras. Destemidamente reprovava ele os males e corrupções dos tempos. Muitos voltavam da catedral louvando a Deus. “Este homem”, diziam, “é um pregador da verdade. Ele será nosso Moisés, para tirar-nos das trevas egípcias” (J. H. Merle D’Aubigné, History of the Reformation of the Sixteenth Century, livro 8, cap. 6).
Depois de algum tempo surgiu a oposição. Os monges o atacavam com zombarias e escárnios; outros recorriam à insolência e ameaças. Zuínglio, porém, suportou tudo com paciência.
Na ocasião em que Deus Se prepara para quebrar as algemas da ignorância e da superstição, Satanás age com maior poder a fim de enredar os homens em trevas e segurá-los ainda mais firmemente em seus aguilhões. Roma prosseguiu com renovada energia a abrir seu mercado por toda a cristandade, oferecendo o perdão em troca de dinheiro. Cada pecado tinha o seu preço, e aos homens se concedia livre permissão para o crime, contanto que o tesouro da igreja se conservasse cheio. Assim, os dois movimentos prosseguiram: Roma permitindo o pecado e fazendo dele sua fonte de renda, e os reformadores condenando o pecado e apontando para Cristo como a propiciação e libertação.
Venda de indulgências na Suíça
Na Alemanha a venda de indulgências era dirigida pelo infame Tetzel. Na Suíça o tráfico foi posto sob o controle de Sansão, monge italiano. Sansão já havia conseguido imensas somas da Alemanha e Suíça, para encher o tesouro papal. Atravessara então a Suíça, despojando pobres camponeses de seus escassos ganhos e extorquindo ricos donativos das classes abastadas. O reformador imediatamente começou a se opor a ele. Tal foi o êxito de Zuínglio ao expor as pretensões do frade, que este foi obrigado a partir para outras localidades. Em Zurique, Zuínglio pregou zelosamente contra os vendedores de perdão. Quando Sansão se aproximou do lugar, conseguiu entrada através de um estratagema. Contudo, foi mandado embora sem a venda de um único perdão, e logo depois deixou a Suíça.
A peste, ou “Grande Morte”, varreu a Suíça em 1519. Muitos foram levados a ver quão vãos e inúteis eram os perdões que haviam comprado; anelavam um fundamento mais seguro para a sua fé. Zuínglio, em Zurique, caiu enfermo, e circulou amplamente a notícia de que falecera. Naquela hora de provação ele contemplou em fé o Calvário, confiando na todo-suficiente propiciação pelo pecado. Ao retornar do vale da sombra da morte, foi para pregar o evangelho com fervor ainda maior do que antes. O próprio povo tinha acabado de assistir os doentes e moribundos e sentia, como nunca antes, o valor do evangelho.
Zuínglio chegara a uma compreensão mais clara das verdades da Bíblia e experimentara mais completamente em si mesmo o seu poder renovador. “Cristo”, disse ele, “[...] adquiriu-nos uma redenção intérmina. [...] Sua paixão é [...] um sacrifício eterno, e eternamente eficaz para curar; satisfaz para sempre a justiça divina, em favor de todos os que nela confiam com firme e inabalável fé. [...] Onde quer que haja fé em Deus, ali se desperta um zelo que insta com os homens e os impele às boas obras” (J. H. Merle D’Aubigné, History of the Reformation of the Sixteenth Century, livro 8, cap. 9).
Passo a passo a Reforma avançava em Zurique. Alarmados, seus inimigos levantaram-se em ativa oposição. Repetidos ataques foram lançados contra Zuínglio. O ensinador de heresias deveria ser reduzido ao silêncio. O bispo de Constança enviou três delegados ao conselho de Zurique, acusando Zuínglio de ameaçar a paz e a boa ordem da sociedade. Se a autoridade da igreja fosse posta de lado, insistia ele, o resultado seria a desordem universal.
O conselho recusou-se a agir contra Zuínglio, e Roma preparou-se para novo ataque. O reformador exclamou: “Eles que venham; eu os temo como o rochedo teme as ondas que trovejam a seus pés” (Wylie, livro 8, cap. 11). Os esforços dos eclesiásticos apenas fortaleceram a causa que procuravam destruir. A verdade continuou a ser espalhada. Na Alemanha seus adeptos, abatidos com o desaparecimento de Lutero, tomaram novo ânimo quando viram o progresso do evangelho na Suíça. Estabelecendo-se a Reforma em Zurique, seus frutos eram mais amplamente vistos na supressão do vício e na promoção da ordem.
Disputa com os romanistas
Vendo quão pouco fora alcançado pela perseguição no sentido de suprimir a obra de Lutero na Alemanha, os romanistas decidiram entrar em disputa com Zuínglio. Garantiriam a vitória escolhendo não apenas o local do debate, como também os juízes que decidiriam entre os contendores. E, se pudessem manter Zuínglio em seu poder, teriam cuidado em que ele não escapasse. Esse propósito, contudo, foi cuidadosamente ocultado.
Foi designado que o debate ocorresse em Baden. Mas o Conselho de Zurique, suspeitando dos desígnios dos romanistas e advertido pelas fogueiras acesas nos cantões papais para os que professavam o evangelho, proibiu seu pastor de expor-se àquele perigo. Ir a Baden, onde o sangue dos mártires da verdade acabara de ser derramado, seria ir para a morte certa. Oecolampadius e Haller foram escolhidos para representar os reformadores, ao passo que o famoso Dr. Eck, apoiado por uma hoste de ilustres doutores e prelados, era o defensor de Roma.
Os secretários foram todos escolhidos pelos romanistas, e a outros foi vedado tomar notas, sob pena de morte. Entretanto, um estudante que assistia à discussão fazia cada noite um relato dos argumentos apresentados durante o dia. Dois outros estudantes faziam a entrega desses papéis, juntamente com as cartas diárias de Oecolampadius, a Zuínglio, em Zurique. O reformador respondia, oferecendo conselhos. Para iludir a vigilância dos guardas estacionados às portas da cidade, esses mensageiros levavam sobre a cabeça cestos de aves domésticas, e era-lhes permitido passar sem impedimento.
Zuínglio “trabalhou mais”, disse Myconius, “com suas meditações, noites de vigília e conselhos transmitidos a Baden, do que teria feito discutindo pessoalmente no meio de seus inimigos” (J. H. Merle D’Aubigné, History of the Reformation of the Sixteenth Century, livro 11, cap. 13).
Os romanistas tinham ido a Baden com as mais ricas vestes e resplendentes jóias. Viviam luxuosamente e suas mesas eram servidas com as mais custosas iguarias e vinhos seletos. Em acentuado contraste apareciam os reformadores, cuja dieta frugal os conservava apenas pouco tempo à mesa. O hospedeiro de Oecolampadius, procurando ocasião de observá-lo em seu quarto, encontrava-o sempre empenhado no estudo ou em oração, e referiu que o herege era, ao menos, “muito piedoso”.
Na conferência, “Eck subiu altivamente a um púlpito esplendidamente ornamentado, enquanto o humilde Oecolampadius, modestamente vestido, foi obrigado a tomar assento defronte de seu oponente, em um banco tosco”. A voz tonitruante e a ilimitada confiança de Eck nunca lhe faltaram. Quando melhores argumentos falhavam, recorria a insultos e mesmo a blasfêmias.
Oecolampadius, modesto e não confiante em si próprio, temera o combate. Posto que gentil e cortês nas maneiras, mostrou-se capaz e persistente. O reformador apegou-se tenazmente às Escrituras. “O costume”, dizia ele, “não tem força alguma em nossa Suíça, a menos que esteja de acordo com a constituição; ora, em assunto de fé, a Bíblia é a nossa constituição” (J. H. Merle D’Aubigné, History of the Reformation of the Sixteenth Century, livro 11, cap. 13).
O raciocínio calmo e claro do reformador, tão gentil e modestamente apresentado, falava aos espíritos que se desviavam desgostosos das afirmações jactanciosas de Eck.
A discussão prosseguiu por dezoito dias. Os representantes do papa se arrogaram a vitória. A maior parte dos delegados ficou ao lado de Roma, e a Dieta declarou vencidos os reformadores, e notificou que eles, juntamente com Zuínglio, seu chefe, estavam separados da igreja. Mas a contenda resultou em forte impulso para a causa protestante. Não muito tempo depois, as importantes cidades de Berna e Basiléia se declararam pela Reforma.
(Ellen G. White. O Grande Conflito, p. 79-83)
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